Da REDAÇÃO
Ex-ministros alertam para “catástrofe de dimensões históricas”
Cinco ex-ministros da Justiça enviaram uma carta aberta ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva pedindo que ele assuma o comando direto das ações de segurança pública no Rio de Janeiro. O documento, divulgado pela colunista Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, afirma que o país chegou “ao limite” após a Operação Contenção, que deixou 121 mortos, e recomenda a criação urgente de uma Secretaria Especial da Presidência com prerrogativas ministeriais — primeiro passo para a recriação do Ministério da Segurança Pública.
Segundo os signatários, a operação conduzida pelo governo de Cláudio Castro foi “mal preparada e mal explicada” e representou “uma política de guerra” que colocou “as estruturas de Polícia do Estado do Rio de Janeiro em confronto com a totalidade da população ali residente e não somente com os grupos de faccionados”.
A carta descreve a ação como uma “catástrofe de dimensões históricas e consequências negativas ainda não aferíveis para a República e a Democracia no país”.
Proposta de nova estrutura sob comando direto do Planalto
Os ex-ministros propõem que Lula crie uma Secretaria Especial da Presidência, dirigida por alguém com status de ministro, para coordenar de forma centralizada as políticas de segurança. A nova estrutura, afirmam, teria como função “liderar a desconstrução da situação de crise engendrada pelas ações ocorridas no Rio de Janeiro” e “iniciar a formatação institucional do Ministério de Segurança Pública no país”.
O texto acrescenta que “a situação poderá se disseminar para outros Estados da União, o que clama por estratégias especiais focadas, preditivas e antecipatórias”, defendendo que o governo federal atue antes que novas tragédias ocorram.
Para os ex-ministros, a atuação isolada do governo do Rio revelou falhas graves de comando e planejamento. “Por razões ainda insondáveis, o apoio oferecido pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública não tem sido requisitado pelo Governo do Rio, que resolveu agir de forma isolada”, afirma a carta.
Quem assina e quais nomes apoiam
O documento é assinado pelos ex-ministros da Justiça Aloysio Nunes Ferreira, José Carlos Dias, Miguel Reale Jr., Nelson Jobim — que atuaram no governo de Fernando Henrique Cardoso — e Tarso Genro, ministro no segundo governo Lula.
A carta também conta com o apoio de juristas, ex-secretários de segurança, professores e advogados, como José Dirceu, Luiz Eduardo Soares, Técio Lins e Silva, Oscar Vilhena Vieira, Benedito Mariano, Flávio Wolf de Aguiar e Lenio Streck, entre outros.
Tarso Genro sugeriu que a nova secretaria funcione “nos moldes da estrutura criada por Lula durante as enchentes no Rio Grande do Sul”, que articulou ministérios em torno de um gabinete de crise nacional. O objetivo seria aplicar o mesmo modelo à segurança pública, com planejamento e integração.
“Política de guerra” e crítica à letalidade
O documento dedica parte significativa à crítica das operações policiais de alta letalidade. “Incursões policiais sistemáticas já se mostraram, ao longo de décadas, uma forma inadequada para enfrentar as facções criminosas, porque colocam em risco toda a população que vive sob o domínio tirânico do crime organizado”, escrevem os ex-ministros.
Eles destacam que muitas das pessoas mortas não tinham antecedentes criminais, e que, mesmo entre as que tinham, “não se tem clareza sobre as circunstâncias em que foram mortas”. Para o grupo, “o fato de ter antecedentes não expressa — num Estado Democrático de Direito — licença sumária para eliminação de qualquer indivíduo”.
A carta também aponta que as ações violentas acabam fortalecendo o poder das facções, pois “a sequência destas operações tem resultado no reforço dos poderes paralelos instaurados nas regiões, que sempre se alimentam da violência para exaltar e propagar o seu poder”.
Apoio ao trabalho de Lewandowski
Os ex-ministros elogiam o “meritório esforço estratégico” do Ministério da Justiça e Segurança Pública, sob comando de Ricardo Lewandowski, que tem tentado coordenar políticas de segurança integradas e de inteligência. Segundo o grupo, o ministério tem oferecido apoio ao Rio, mas o governo estadual optou por agir sozinho.
“O mérito do Ministério da Justiça está em oferecer apoio a todos os estados, mas o Rio, por razões ainda insondáveis, recusou esse apoio”, diz o texto. Para eles, a ausência de coordenação entre União e estados compromete a efetividade das políticas públicas e aumenta os riscos de novas tragédias.
Novo projeto nacional de segurança
A carta defende ainda um “novo Projeto Nacional de Segurança Pública”, baseado em inteligência policial, combate ao racismo institucional, valorização dos trabalhadores da segurança e participação comunitária.
Esse projeto, afirmam, deve estar em sintonia com a PEC da Segurança Pública, proposta pelo Ministério da Justiça, e deve enfrentar o crime organizado “com metodologias corretas e inteligentes de enfrentamento”, respeitando a democracia e os direitos humanos.
“Vossa Excelência possui legitimidade e apoio popular plenos para liderar essas mudanças”, concluem os ex-ministros, em tom de apelo direto ao presidente Lula.
Íntegra da carta dos ex-ministros da Justiça
Exmo. sr. presidente da República Luís Inácio Lula da Silva,
Os signatários reunidos nesta Carta, atentos aos dramáticos eventos relacionados com a Segurança Pública no Rio de Janeiro, bem como considerando as importantes manifestações de Vossa Excelência, chamando para si a condução institucional da crise ali desatada, vêm lhe apresentar uma sugestão concreta e colaborativa, no debate sobre o tema que já está em curso em todo o país.
Estamos remetendo a Vossa Excelência a presente “Carta Aberta”, que, após o envio, será tornada pública. Ela traduz uma preocupação com a estabilidade do país e com a firme sustentabilidade institucional do seu Governo, face aos desdobramentos da operação de alta letalidade procedida pelas forças de Segurança, nos complexos da Penha e do Alemão, matando mais de uma centena de moradores – com e sem antecedentes criminais – bem como policiais que ali estavam convocados para cumprir seu dever.
Mal preparada e mal explicada, foi realizada uma operação de guerra, colocando as estruturas de Polícia do Estado do Rio de Janeiro em confronto com a totalidade da população ali residente e não somente com os grupos de faccionados que controlam grande parte daqueles territórios e que também disputam, entre si, o poder de fato na região.
Chegou-se, com esta política de guerra, a um novo limite de enfrentamento armado e de perdas de vidas (117 civis e 04 policiais, segundo dados oficiais). Muitas das pessoas que foram abatidas não têm antecedentes criminais e, quanto às que tinham antecedentes, não se tem clareza sobre as circunstâncias em que foram mortas. O fato de ter antecedentes, de outra parte, não expressa – num Estado Democrático de Direito – licença sumária para eliminação de qualquer indivíduo.
Incursões policiais sistemáticas já se mostraram, ao longo de décadas, uma forma inadequada para enfrentar as facções criminosas, porque colocam em risco toda a população que vive sob o domínio tirânico do crime organizado e igualmente porque vulneram a segurança dos próprios policiais, empenhados na missão de enfrentá-lo. A sequência destas operações, na verdade, tem resultado no reforço dos poderes paralelos instaurados nas regiões, que sempre se alimentam da violência para exaltar e propagar o seu poder.
O meritório esforço estratégico que vem sendo feito pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública – combinado com a disponibilidade do apoio que o Ministério oferece a todos os Estados – por razões ainda insondáveis, não tem sido requisitado pelo Governo do Rio, que resolveu agir de forma isolada, provocando uma catástrofe de dimensões históricas e consequências negativas – ainda não aferíveis – para a República e a Democracia em nosso país.
O limite a que chegamos recomenda que V. Exa. assuma o comando, pessoal e diretamente, através de uma Secretaria Especial da Presidência da República – dirigida por um(a) secretário(a) de Estado com prerrogativas ministeriais, e estreitamente ligado(a) à sua liderança e direção. Tal Secretaria poderia se encarregar de liderar a desconstrução da situação de crise engendrada pelas ações ocorridas no Rio de Janeiro. Enfatizamos, senhor Presidente, que esta situação poderá se disseminar para outros Estados da União, o que clama por estratégias especiais focadas, preditivas e antecipatórias.
O objetivo de tal Secretaria seria coordenar, com a sua autoridade, todas as instâncias de Polícia, de inteligência, de informações e de competência operacional da União, para ajudar a debelar a crise do Rio, de forma conjugada com o Governo Estadual e também para iniciar a formatação institucional do Ministério de Segurança Pública no país, que é proposta contida em seu Programa de Governo.
V. Exa. está atento para estabelecer um Programa Nacional de Enfrentamento às Facções Criminosas, visando, nos curto e médio prazos, retomar os territórios hoje dominados por criminosos, que impõem sofrimento e medo nas periferias. De igual forma, é necessário planejar outras operações de estrangulamento econômico do crime, à luz da Operação Carbono Oculto. É sabido que os grandes líderes das facções não habitam nas periferias, mas nelas promovem violência para manter o controle dos seus interesses criminosos.
Um novo Projeto Nacional de Segurança Pública, que seria elaborado pela nova Secretaria e estaria em sintonia com a PEC apresentada pelo Ministério da Justiça, pautado na democracia, na cidadania, na inteligência policial, no antirracismo e na valorização dos trabalhadores e trabalhadoras da segurança pública, teria o objetivo de enfrentar as facções criminosas nas suas várias modalidades, o que só seria possível num governo que valoriza a democracia, a soberania nacional, a cidadania e o Estado Democrático de Direito. Estes valores norteiam o governo de Vossa Excelência.
O crime organizado não colocará em xeque a democracia brasileira, mas só pode ser desconstruído mediante as estratégias e metodologias corretas e inteligentes de enfrentamento. O senhor possui legitimidade e apoio popular plenos para liderá-las.
Subscrevem, ex-ministros da Justiça:
Aloysio Nunes Ferreira, José Carlos Dias, Miguel Reale Jr., Nelson Jobim e Tarso Genro.
E mais: Alfredo Attié Junior, Benedito Mariano, Cristina Vilanova, Daniel Cerqueira, Flávio Wolf de Aguiar, José Dirceu, José Geraldo Souza Júnior, Judith Martins Costa, Julita Lemgruber, Lênio Streck, Ligia Daher Gonçalves, Luiz Eduardo Soares, Miriam Krezinger, Meire Silva, Nélio Machado, Oscar Vilhena, Silvia Ramos, Técio Lins e Silva e Vicente Trevas.
Ilustração da capa: Presidente Luiz Inácio Lula da Silva – Imagem gerada por IA ChatGPT




