O cenário partidário atual: continuidades, metamorfoses e incertezas

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Agência Cerimônia de posse dos deputados federais da 57ª legislatura - Crédito: Agência Câmara de Notícias

Por SILVANA KRAUSE*

A velocidade das transformações políticas no Brasil tem sido uma das marcas da democracia pós-2013. Desde as jornadas de junho, o país vive em estado de mutação permanente, em que partidos, lideranças e instituições se reconfiguram em ritmo acelerado. A instabilidade, antes vista como anomalia, tornou-se o novo padrão— um fenômeno que também atinge democracias consolidadas, como Alemanha, França e Estados Unidos, todas hoje tensionadas pela ascensão da extrema direita e por movimentos de fragmentação política.

A adaptação como regra do jogo

A ciência política ensinou que a estabilidade democrática depende da engenharia institucional. Mas, no século XXI, essa explicação parece insuficiente. A sobrevivência política depende da capacidade de adaptação de atores e instituições a ambientes mutantes. Como lembrava Leon Megginson, inspirado em Darwin: “Não é o mais forte que sobrevive, mas o que melhor se adapta às mudanças”.

A política brasileira confirma o diagnóstico. A frase recente do presidente do PL, Waldemar Costa Neto — “O Mota não é fraco. É que cada um pede uma coisa” — resume o funcionamento atual do sistema. Em um cenário de fragmentação e comunicação direta com as bases eleitorais pelas redes sociais, cada parlamentar busca atender a um eleitorado próprio, enfraquecendo ainda mais o papel dos partidos. As emendas-pix, de execução rápida e sem transparência, tornaram-se o principal canal de sobrevivência e poder.

Há vários tipos de emendas parlamentares ao Orçamento da União: individuais, de bancada, de comissão (RP8) e do relator-geral do orçamento (RP9). Por falta de transparência, ganhou a alcunha de “orçamento secreto”; proibidas pelo STF em 2022, mas parte dos recursos acabou redistribuída por outros tipos de emenda. Veja, no quadro abaixo, a evolução das emendas impositivas totais (individuais e de bancada), desde 2014, em bilhões de reais.

Fontes: Portal da Transparência, Congresso Nacional, CNM

O incômodo do Executivo é explícito. Diante do presidente da Câmara, Hugo Mota, Lula declarou: “Este Congresso nunca teve uma qualidade de baixo nível como tem agora”. O contraste é gritante: enquanto o STF analisa 40 mil emendas parlamentares e a PF investiga suspeitas de desvio de recursos, o Legislativo amplia seu poder orçamentário e reduz a coesão partidária.

Um sistema que já não é presidencialista?

Diante desse cenário, talvez já não caiba definir o Brasil como enquadrado em um presidencialismo de coalizão, semipresidencialismo ou parlamentarismo. O país vive em um sistema governo em mutação, sem engrenagem estável de interação entre Executivo e Legislativo. Trata-se de um sistema centrado em ações individualizadas, movido por interesses orçamentários e digitais.

Continuidades: a desconfiança e a fragilidade da preferência partidária

A falta de confiança nos partidos é um traço persistente da nova democracia. Pesquisas do Ipec, Datafolha e LAPOP mostram que, desde os anos 1990, as legendas estão entre as instituições menos confiáveis. A única exceção ocorreu entre 2017 e 2018, quando a impopularidade de Michel Temer registrou os piores índices de confiança institucional.

Fonte:https://www.ipec-inteligencia.com.br/Repository/Files/2251/240270_ICS_INDICE_CONFIANCA_SOCIAL_2024.pdf

A preferência partidária também revela essa fragilidade. Apenas o PT mantém base consistente de apoio — é a única legenda que, em toda a Nova República, venceu ou ficou em segundo lugar em todas as eleições presidenciais. O MDB, que liderou a transição democrática, perdeu relevância e hoje ocupa posição periférica.

Fonte: Datafolha e LAPOP


No Congresso, os votos nominais indicam o esvaziamento das siglas: 89% em 2014, 92% em 2018 e 95% em 2022 foram votos em candidatos, não em partidos. O deputado, cada vez mais, deve sua eleição à própria marca pessoal, não à legenda.

Metamorfoses: fusões, federações e novas siglas

Desde 2002, o número de partidos e o grau de fragmentação cresceram de forma contínua, alcançando o auge em 2018. Mesmo após a decisão do TSE (nº 22.608/2007) de que o mandato pertence ao partido, a Resolução nº 22.610/2007 criou brechas legais que permitiram a manutenção de parlamentares nos cargos quando há “justa causa” para a troca de legenda. Essas causas incluem fusão ou incorporação partidária, criação de novo partido, mudança substancial de programa e grave discriminação pessoal — critérios que se transformaram em zona cinzenta, sustentando uma alta rotatividade de filiações e enfraquecendo ainda mais o vínculo entre eleitos e suas siglas.

De 2007 para cá, sete novas legendas surgiram (PSD, Solidariedade, Novo, PMB, UP, PRD e União). Outras 15 estão em formação, entre elas curiosidades como o Partido do Autista, o Partido Ambientalista Animal e o Partido Afrobrasilidade. Os nomes das legendas revelam a segmentação da concepção destes partidos que almejam entrar no mercado partidário-eleitoral.

Fonte: TSE

Algumas reformas recentes mitigaram a fragmentação:

  • Cláusula de barreira (EC 97/2017) – restringe acesso a fundo partidário e tempo de TV para siglas com baixa votação;
  • Proibição de coligações proporcionais e criação das federações – que incentivam coesão e fusões duradouras;
  • Federações formadas: Brasil Esperança (PT-PCdoB-PV), PSDB-Cidadania e PSOL-Rede Sustentabilidade.

Fonte: TSE

Essas medidas reduziram o número de siglas com representação, mas não eliminaram a lógica do personalismo e do centrão orçamentário.

A “nova Arena” e os rearranjos do centrão

O movimento para criar uma federação entre União Brasil e PP — apelidada de “nova Arena” — evidencia a busca por sobrevivência institucional. Se formalizada, seria a maior bancada da Câmara. Mas divergências internas já se manifestam: Ronaldo Caiado (União) quer liderar a chapa presidencial, enquanto Ciro Nogueira (PP) tenta ser vice de Tarcísio de Freitas (Republicanos). Ministros dessas legendas, como Celso Sabino (Turismo) e André Fufuca (Esportes), preferem permanecer alinhados a Lula, ignorando a orientação da federação em gestação.

O chamado centrão raiz segue forte nas oligarquias regionais, mas não consegue consolidar uma liderança nacional. Em 2018, aderiu ao bolsonarismo; em 2022, lançou Soraya Thronicke, sem expressão. Sua força real está no Congresso, não nas urnas presidenciais.

Novas incertezas e velhas dependências

A mais recente pesquisa Pulso Ipespe mostra que 47% dos brasileiros consideram Lula um bom presidente, contra 35% para Bolsonaro e 33% para Tarcísio. O bolsonarismo-raiz perde fôlego, mas ainda define parte do tabuleiro da direita.

Os partidos seguem “hidropônicos”, na definição de Antonio Lavareda — legendas sem raízes sociais, sustentadas por recursos públicos e negociações parlamentares. O FEFC – Fundo Especial de Financiamento de Campanha, de R$ 4,9 bilhões já aprovados para 2026, simboliza essa dependência. O contraste com a proposta menor do Executivo e a rejeição da opinião pública mostra a distância crescente entre sistema político e sociedade.

Entre o velho e o novo

O sistema partidário brasileiro é, ao mesmo tempo, herdeiro de velhas práticas e laboratório de novas deformações. Os parlamentares se autonomizaram e a política passou a orbitar em torno de emendas, pix e curtidas.

O que se vê é um sistema de governo em metamorfose, movido por forças centrífugas que desafiam a própria ideia de sistema. Talvez ainda não seja bem um sistema de governo, pois um sistema pressupõe uma engrenagem de interação regular e regulamentada entre as partes.

*SILVANA KRAUSE é Doutora em Ciência Política pela Katolische Universität Eichstätt-Ingolstadt/Alemanha. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente é conselheira do Institut für Deutsches und Internationales Parteienrecht-Universität Düsseldorf e Secretária-Geral da ABRAPEL (Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais).

**Reflexão apresentada em mesa coordenada pela professora Maria Hermínia Tavares de Almeida (USP) no 49º  Encontro Anual da ANPOCS: A Democracia brasileira em outubro de 2025.

Ilustração da capa: Cerimônia de posse dos deputados federais da 57ª legislatura – Crédito: Agência Câmara de Notícias


Tags: Fragmentação partidária, poder do centrão, avanço das emendas pix, crise de representatividade e transformação do sistema político brasileiro.

Leia também: Presidentes governantes na encruzilhada

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Uma resposta

  1. Excelente essa análise. Só voto na esquerda, preferencialmente PT, mas tem mto político bom em outros partidos de esquerda Para 2026, meu voto é para o Lula. Para suceder Lula, aposto no Boulos, bem preparado e c.base sólida nos mov.sociais.

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