Por PAULO TIMM*
Este artigo, que é mais uma colagem de lembranças recortadas de várias fontes, notadamente Sérgio da Costa Franco, vem emoldurado por dois momentos marcantes que têm em Getúlio Vargas , Brizola e Olivio Dutra, principais protagonistas:
Em 03 de outubro de 1930 Getúlio, Presidente do Rio Grande, deflagra, com o Estado politicamente reunificado, desde Porto Alegre, a grande Revolução que mudaria o Brasil.
Em 09 de outubro de 1950, depois de ter sido deposto da Presidência em 1945, ele reinicia seu retorno para seu segundo mandato ao Poder, com um grande comício na cidade.
Nos dois eventos sairá vencedor, mesmo sucumbindo com um tiro no peito em 1954 “para entrar par a História”. Na sua trajetória, a grande transformação do fazendão oligárquico de produção de café e açúcar, que era o Brasil, em uma economia urbano-industrial pujante, com relações trabalhistas reguladas, instituições democráticas e pronunciada ideologia nacional-desenvolvimentista. No rastro desta epopéia, a metamorfose de um burgo modesto de autoritários políticos e exaltados poetas em um centro metropolitano articulado à industria e ao comércio, regulado pela Lei, com Partidos Políticos organizados, fortes movimentos sociais organizados e muita efervescência cultural e boêmia.
Para trás ficavam o espectro das lutas fratricidas entre chimangos e maragatos; os becos imundos interligados por pontes de madeira, os alagados e as enchentes , até mesmo os nomes sugestivos das paisagens das velhas ruas, como Arvoredo, Caminho do Meio. Rua do Cotovelo, todas alinhavadas nas “Antigualhas” de Pereira Coruja; para trás a Praça da Harmonia com seus espetáculos dantescos de enforcamentos em público, os passeios com mulheres elegantes acompanhadas de homens de cartola alta na Rua da Praia, quando subiam a Rua da Ladeira em noites engalanadas no Teatro São Pedro; os bondes movidos a burros. ladeados por carruagens que estancavam ao pé das coloquiais “sacadas, sacadinhas e sacadões”, tão ao gosto da pena de Damasceno Ferreira, na esperança de um olhar furtivo; para trás os personagens imemoriais da cidade como os irmãos Apolinário , o Qorpo Santo e outros que “ganham” o Rio, na esteira de Vargas, como o
“Barão do Itararé”, o Theodemiro Tostes, o Mansueto Bernardi. Para trás o “Almanaque do Globo (1917-1933)” abrindo caminho para a “Revista do Globo “ e “Província de São Pedro”… Emerge a modernidade num lance de franco iluminismo porto-alegrino, com seu ritmo frenético em escalas geográficas cada vez mais cósmicas; Este lado ousado de Porto Alegre, alimentado ao longe pela “conquista” do Rio Janeiro no gesto simbólico dos cavalos amarrados no Obelisco e pela “derrota” dos paulistas revoltosos de 1932, não obviou, entretanto, as raízes conservadoras da sociedade local. Talvez essa dialética da conservação-mudança tenha dado à cidade o ar de encantamento que fascina a todos que a conhecem.
Aqui, dois marcos do persistente regionalismo gaúcho: a literatura, na qual despontam Erico Veríssimo e Simões Lopes Netos, com obras capitais publicadas em 1949 pela Editora Globo, e o nativismo que vê reacender com vigor, em 1948, as efemérides crioulas, na criação do “CTG 35”, o qual se espalhará em congêneres pelo Estado e pelo resto do país cunhando a imagem do homem do pampa hoje estampada no Monumento do Laçador, símbolo de Porto Alegre.
Com menos de 200 anos, uma das mais novas capitais do país, Porto Alegre havia se fortalecido na Era Vargas, tendo chegado ao ano de 1950 a pouco menos de 400 mil habitantes no seu núcleo urbano, com mais 200 mil em suas projeções metropolitanas:
Crescimento populacional
Censo Pop./%±
1872
43 998
1890
52 421 / 19,1%
1900
73 647 / 40,5%
1920
179 263 / 143,4%
1940
272 232 / 51,9%
1950
394 151 / 44,8%
A cidade entrava na década de 50 com uma fisionomia muito parecida àquela que ainda guarda, atravessada por grandes e sinuosas avenidas que se abrem aos bairros, com uma população mais arejada ideologicamente e que ultrapassava rapidamente as fronteiras do voluntarismo positivista . As várias comunidades culturais se entrelaçam, mesmo guardando vestígios nos sobrenomes complicados e nos sotaques carregados. Mas em 1950 já havíamos cozinhado, também, a miríade de vertentes étnicas e culturais, alimentadas, de um lado pelo transbordamento sobre Porto Alegre das colônias de imigrantes, de outro, pelo afluxo constante de gente vinda de todas as partes do Estado. Custará mais a assimilação da forte presença afro-descendente, cumprindo o vaticínio de Joaquim Nabuco de que carregaríamos por séculos as marcas da escravidão negra.
Na ação política há dois deslocamentos importantes: Primeiro, a entrada em cena de novos protagonistas, tanto urbanos, no bojo das eleições para a Constituinte, como do interior, aí relevando os primeiros representantes das regiões coloniais, até há pouco controladas pelo Estado. Leonel Brizola, eleito deputado estadual em 1945, com 21 anos, é um indicador desta mudança, que acabaria empalidecendo o poder patriarcal da campanha, já advertido desde os anos 1891 pelo protagonismo dos republicanos radicais. E é ele, também, o marco de outro deslocamento: uma reorientação estratégica no campo do castilhismo, ao qual Vargas e Brizola se filiavam, e que já se encontra virtualmente esvaziado do clamor republicano que o nutria , em vista do distanciamento da restauração monárquica, para as demandas sociais das massas urbanas emergentes. Hora de aposentar o lenço branco de Antonio Chimango, que irá para a tumba com Vargas, em 1954, substituindo-o pelo vermelho das multidões que será adotado por Brizola.
Exultava Porto Alegre, também, ao sabor das publicações ousadas da Livraria Editora Globo, que tinha à frente “Um certo Henrique Bertaso”, na palavra imortal de Érico Veríssimo. Um salto no engenho e arte nas novas fronteiras da filosofia, da literatura e das ciências. A elite intelectual já não mais precisava formar-se nos cursos superiores do Rio e São Paulo. Nem ler em francês… Boas faculdades de Medicina, Engenharia e Direito já se consagravam entre as melhores do país. Era Porto Alegre vivendo seus Anos Dourados…
No campo da arte popular o portal das vastidões do sul, de acento espanholado e modos rudes confirmará sua lusitana brasilidade projetando em unanimidade nacional o reconhecimento de dois nomes: Lupicínio Rodrigues, como um dos melhores, senão o melhor, compositor da era do samba-canção e Elis Regina, como maior intérprete da MPB. Nem só de Política se alimenta o Rio Grande, dirão muitos…
Porto Alegre, enfim, entrava na segundo metade do século XX com os vícios todos da sociedade moderna – que se despejavam nas noites regadas em excessos de boemia e luxúria estonteante em famosos cabarés – e todas as suas contradições e problemas, sobretudo na formação de bairros afastados e empobrecidos. Tudo isso vinha envolto em bravatas memoráveis, como a do leiloeiro que depôs Júlio de Castilhos em 1891, mistérios como o do escatológico caso do açougueiro da Rua do Arvoredo que fazia lingüiça de carne humana e controvérsias acaloradas sobre Política e futebol. E, claro, sorrisos no passeio avermelhado da Rua da Praia… Esses murmúrios descem imponentes escadarias e “lombas” outrora escorregadias e se transformam em lendas na tradição popular, matéria prima dos cronistas que delas deixam registros memoráveis no Diário de Notícias e no Correio do Povo. Poucas cidades brasileiras oferecem, enfim, a complexidade de Porto Alegre. Ela reúne a incrível capacidade de sintetizar tradição e mudança de forma ímpar, fazendo da resistência de cada segmento de sua população um elo forte da cadeia antropológica da cidade. Resistência, aliás, da qual o Mercado Público é o maior símbolo, sendo ele próprio o livro-tombo da alma e da história da cidade. Resistiu a incêndios devastadores, o último deles há pouco tempo, estando ainda em obras de reconstrução, resistiu às enchentes, sobretudo a de 1941 e 2023, resistiu ao tempo, mantendo internamente seu caráter provinciano que tanto me encantava quando ali ia, menino, com minha mãe e que agora encanta meu neto, resistiu às engenhosas manipulações técnicas que pretendiam pô-lo abaixo várias vezes, a última na administração Thompson Flores, no regime militar, para dar lugar a mais um arranha-céu em tão nobre lugar. Resistiu, da mesma forma como o burgo incipiente resistiu aos revoltosos farroupilhas, vindo daí a receber o título de “Mui Leal e Valorosa”, mas sem guardar rancores aos vencidos. Resistiu, como resistiu a República sob o tacão de Julio de Castilhos, logo mais de Borges de Medeiros, às invectivas armadas que lhes contestavam. Resistiu, enfim, na Legalidade, em 1961, sob o comando de Leonel Brizola no Piratini, assegurando a posse de João Goulart na Presidência da República. E marcou época nos anos 2000 com o Forum Social Mundial.
Porto Alegre é assim…: Demaiiiiis!
*Paulo Timm é economista, funcionário aposentado do IPEA, poeta, romancista, professor universitário e editor da Rádio Resumo publicado em A FOLHA, Torres em 31 de janeiro de 2025
Foto de capa: RManifestação reprimida em Porto Alegre na ditadura / Arivaldo Chaves/Divulgação
Respostas de 3
bah esta foto foi no dia que ficamos no RU. passei 3 dias sem ir para casa
Belas lembranças, Paulo Timm, achei que o momento retratado na imagem da matéria seria abordado no texto. Neste dia em 1978 se não me prejudica o velho Alz, era o FORA VIDELA; estávamos na manifestação e fomos obrigados a nos misturar na fila do Restaurante Universitário [RU] quando os pés-de-porco [feet of pig] tocaram todos pra correr. Era a ditadura sendo arregaçada pelas garras de onça do Movimento Estudantil [ME]. Suas telegráficas e bem compostas lembranças e a foto me levaram àquele dia tri-importante. Gracias, camarada.
Belo artigo e importantes lembranças. As novas gerações precisam saber. Nós enquanto povo precisamos rememorar para valorizar a liberdade e evitar a tirania, e ainda acender luz no descaso administrativo que a cidade sofre hoje. Parece que as pessoas desaprenderam a amar.