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A política não é uma profecia, é uma construção

A política não é uma profecia, é uma construção

Artigo por RED
16/07/2024 16:38 • Atualizado em 16/07/2024 16:40
A política não é uma profecia, é uma construção

Ivônio Barros Nunes*

É comum se ouvir falar que a atual composição do Congresso Nacional, tanto a da Câmara dos Deputados, quando a do Senado Federal, é a pior da história. Os tempos sombrios, desde o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, fazem-nos sentir isso mesmo. Mas é um sentimento, não um dado da realidade. Falta cotejar com os perfis parlamentares desde o início da República. Mas, pode piorar …

Ulisses Guimarães (1916-1992), de apoiador nos primeiros momentos do golpe militar contra João Goulart (Jango) a líder da oposição à ditadura e presidente da Assembleia Nacional Constituinte, era um político experiente, que viveu a política brasileira do gabinete parlamentarista de Tancredo Neves (1961) até o início da tímida retomada democrática pós-ditadura. Quando alguém comentava, com esse mesmo sentimento que temos hoje, de que o Congresso era péssimo, ele respondia: “Você só diz que esse Congresso é ruim porque ainda não viu o próximo”.

 Piada? Senso de realidade? Vaticínio? … um pouco de cada.

 O fato é que hoje temos uma Câmara dos Deputados (ver perfil em https://www.camara.leg.br/internet/agencia/infograficos-html5/composicao-da-camara-2023/index.html) com bancadas de direita e de extrema-direita em condições de aprovar Emendas Constitucionais sem necessitarem de qualquer negociação com as bancadas de centro ou de esquerda. Em maio, o analisar vetos de Bolsonaro em Lei sobre crimes contra o Estado de Direito, 317 deputados votaram a favor da manutenção dos vetos e 139 para sua derrubada. A questão era se fake news seriam criminalizadas ou não. Essa proporção nas votações tem se mantido. Se não interessa à direta, nada passa.

 Estudo realizado pelo Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), entre o período das eleições e a posse dos(as) parlamentares desta legislatura (https://www.cfemea.org.br/index.php/pt/component/edocman/perfil-parlamentar-2023-2026-sob-a-otica-da-agenda-feminista-2023/download) mostra, a partir da agenda feminista, a mesma composição. Contudo, pontua elementos que não têm passado desapercebido mesmo das pessoas que não acompanham a política institucional e parlamentar. O crescimento da extrema-direita, inclusive na composição feminina, encontra o contraponto de parlamentares de esquerda transgênero, de representação LGBTQIA+, feministas, negros e negras com capacidade de enfrentar e dirigir o enfrentamento ao fundamentalismo. Houve um aumento quantitativo e qualitativo dessas bancadas. É inegável a liderança e a força de resistência de uma Erika Hilton, por exemplo.

 O vaticínio de Ulisses Guimarães não pode ser visto como uma lei da tendência da queda da qualidade do Congresso Nacional. Nunca houve um domínio da esquerda ou de composições de centro à esquerda em qualquer uma das casas legislativas. Contudo, a hegemonia conservadora só tenha sido orgânica, organizada e disciplinada a partir de centros ideológicos e de poder (como o caso das igrejas neopentecostais de hoje) na República Velha e no Estado Novo. Nos demais períodos, essa hegemonia se fazia como reflexo da cultura dominante na sociedade, por vezes volúvel e receptiva a algumas mudanças legislativas, até mesmo com verniz progressistas. Por exemplo, em 1971, no auge da ditadura militar, o senador governista Vasconcelos Torres (Arena-RJ), apresentou um projeto de lei prevendo a ampliação dos casos de aborto legal (https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/ha-75-anos-padre-redigiu-1o-projeto-de-lei-do-brasil-sobre-o-aborto).

Era comum, lideranças ultraconservadoras terem um perfil em suas províncias e adotarem um perfil mais conciliador com os ares do Rio de Janeiro, a capital até 1960. Viam-se pressionados pelos ares mais libertários da então capital, ou libertos de suas amarras pelas distâncias com suas terras. Não raramente, coronéis e assassinos de camponeses se vestiam de protetores da cultura e ideais de desenvolvimento.

 Hoje, porém, há outros ingredientes que auxiliam a manutenção da inércia formadora do quadro atual das instituições políticas. O conjunto de instrumentos de poder parlamentar conhecidos como “orçamento secreto” representam a criação de uma forma nova de relacionamento entre Executivo e Legislativo, ao mesmo tempo que estabelecem novas formas de clientelismo e arranjos de currais eleitorais hoje preservados da extrema-direita às esquerdas. Nem é necessário dizer o quanto afetam a política eleitoral as comunicações e os sistemas de informação das redes sociais e dos processos de difusão de notícias (falsas e enviesadas). As fake news se relacionam diretamente com as capacidades econômicas que mantêm esse ecossistema político que mobiliza grandes massas. Nos territórios, formados por regiões metropolitanas, aglomerados de bairros em grandes cidades e em suas periferias, hoje temos o domínio de estruturas de poder que não existiam algumas décadas atrás, na dimensão e nos enraizamentos com os poderes públicos. São as milícias, os cartéis de drogas, as igrejas neopentecostais, uns misturados com outros.

 Para alterar os rumos dessa inércia, é necessário construir outras forças contracorrente, que sejam capazes de produzir influência na cultura social, que possam impactar a formação de novos blocos sociais e políticos. Não é tarefa simples, requer muito esforço de todos os agrupamentos, coletivos, sindicatos, partidos e movimentos em seus próprios arranjos territoriais e culturais. As eleições municipais que se avizinham podem (ou poderiam) ser um momento para essa virada, mas ainda não há indicadores de que isso está sendo construído. Ao contrário dos franceses e das francesas, aqui não teremos a chance de um segundo turno parlamentar.

 *Ivônio Barros Nunes – economista, educador popular, feminista

Charge: Kleber

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