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Volta às bases, com que base?
RED
Por BENEDITO TADEU CÉSAR*
Participo de 57 grupos de discussão no WhatsApp. Alguns poucos foram criados por mim e na imensa maioria dos outros fui incluído e permaneço, ainda que raramente me manifeste em quase todos eles.
Num dos grupos em que fui incluído e de cujos diálogos nunca havia participado, iniciou-se ontem uma discussão que, diga-se de passagem, é recorrente nos grupos de esquerda, sobre a necessidade de se “ir às bases”. Há a constatação, cada vez mais frequente, de que os partidos de esquerda e centro-esquerda se afastaram dos movimentos populares e sociais e de que é preciso voltar a ter contato com o povo.
Penso que esta constatação está correta, mas ela não abrange toda a complexidade da situação. Sem intenção de resolver a questão, que precisa e merece muita reflexão e debate, me atrevi a postar um comentário no grupo e o reproduzo abaixo. Como há muitos outros aspectos a serem abordados, será preciso retornar ao tema em novos textos e já convido outros escribas interessados a entrarem em cena. Enviem artigos para a RED, que tenho certeza serão publicados.
Aqui vai a postagem original, com a correção de alguns erros de digitação.
Se vocês me permitirem uma observação a partir das mensagens trocadas acima, sobre o método da "volta às bases", eu acrescentaria ao que o Frederico e o Sérgio escreveram que, na minha avaliação, há uma questão preliminar a ser enfrentada que é o fato de que as esquerdas perderam seus referenciais.
A realidade socioeconômica mudou e nós ainda não entendemos plenamente as transformações em curso. Não existe mais o operariado e a classe média dos anos de 1980/1990/2000, que compuseram a base social do PT. As transformações no mundo da produção e do sistema financeiro e a incorporação de alta tecnologia, a internet e as redes sociais, o recuo da igreja católica progressista, com sua teologia da libertação, e o avanço das igrejas neopentecostais, com sua teologia da prosperidade (e que alguns já chamam de teologia do domínio), e também o avanço dos setores mais conservadores na igreja católica, e ainda o crescimento do trabalho informal, com a uberização e o empreendedorismo, criaram um mundo novo que nós não entendemos plenamente.
De fato, eu penso que nós ainda não entendemos quase nada. Cito apenas um exemplo, que me parece bem ilustrativo. Nós continuamos nos referindo aos trabalhadores sem carteira assinada com "precarizados" e rimos quando um motorista de Uber se autodenomina como "empreendedor". Para mim, isso evidencia nossa incapacidade de entender os sentimentos "das bases".
Por que afirmo isso? Vou responder com uma pergunta. Algum de nós gostaria de ser chamado de "precarizado"? Isto não feriria nossa sensibilidade? Algum de nós gostaria de perceber um ar de riso disfarçado na face do seu interlocutor ou mesmo um tom (também disfarçado) de desprezo ou, noutro extremo, de indignação, na voz de seu interlocutor, quando ele se referisse à nossa condição profissional, se nós nos considerássemos "empreendedores"?
Mais de 50% dos trabalhadores brasileiros não têm carteira assinada e sequer têm a perspectiva e/ou a pretensão de vir a tê-la. Nossas bandeiras estão defasadas, quando defendemos a CLT ou combatemos o regime de trabalho de 6X1, ou estão longe da realidade cotidiana e imediata das pessoas, quando defendemos o direito ao aborto porque "as mulheres devem ter o direito de escolher e ter autonomia sobre seus próprios corpos". Essas são bandeiras extremamente importantes, mas estão mal colocadas, e estão mal colocadas porque não entendemos os sentimentos da população.
Quem não tem carteira assinada e não tem perspectiva de vir a tê-la tem que "se virar" da forma que der. Vou fazer mais algumas perguntas: os pequenos agricultores ou agricultores familiares não são "empreendedores" e nós não os admiramos e defendemos? Então, por que não adotamos a mesma postura frente aos demais pequenos produtores e prestadores de serviços? Por que não defendemos o aborto como uma política de saúde pública em vez de o fazer como sendo "um direito da mulher de decidir sobre seu próprio corpo"?
Para finalizar. Em 1980, quando Brizola voltou ao Brasil, vindo do exílio, ele acreditou que iria recriar o PTB e iria obter o apoio de suas antigas bases sociais e, assim, recriaria o trabalhismo. O TSE lhe deu uma rasteira, entregando a sigla para Ivete Vargas, o que o fez criar o PDT, e o PT se apossou de "suas bases", o que fez com que Brizola o classificasse como um partido "filhote da ditadura".
Por incrível que possa parecer, Brizola estava razoavelmente certo quanto à classificação jocosa que empregava contra o PT e totalmente equivocado na avaliação das "bases sociais" do trabalhismo.
A estrutura social (as classes sociais) tinha mudado durante a ditadura. Tinha surgido uma nova classe trabalhadora, formada por operários qualificados e muito melhor pagos, uma classe média urbana escolarizada e diversificada e um funcionalismo público muito diferente dos "barnabés" dos anos varguistas. Essas transformações criaram as bases sociais para o surgimento do PT e Brizola não tinha entendido e talvez tenha morrido sem entender (muitos brizolistas não entenderam até hoje).
Nos anos 90, escrevei uma tese e posteriormente um livro para entender quem, de fato, o PT representava e nem o PT naquele momento entendia direito quem era (não vamos nos esquecer que, naquele momento, o PT falava em proletariado, para se referir às suas bases).
Na minha visão, estamos atravessando uma situação estruturalmente semelhante e estamos sem entender, de fato, o que se passa. Concluo: ir às bases é muito importante, mas me parece que temos um trabalho tão urgente e necessário quanto este que é o de entender o que são e como pensam as bases atuais.
Desculpem o textão. Abraços.
Comentários pós-escritos
Para que não pairem dúvidas quanto à questão do aborto e da autonomia feminina, reforço que temos uma questão a ser readequada e que isso inclui todas as pautas ditas identitárias, das mulheres, dos negros, dos LGBTQI+ e tantas mais que se enquadram no conceito.
Todas elas são extremamente importantes, mas entendo que elas estão sendo abordadas de uma maneira equivocada e que isso passa por nossa dificuldade de entender as transformações em curso na sociedade atual.
Em primeiro lugar, quero reforçar que, tal como as transformações produzidas pelos governos ditatoriais militares (acrescidas pelas transformações em curso no mundo desde os anos de 1960) geraram as condições para a superação da ditadura e para o protagonismo dos movimentos sociais e populares e dos partidos progressistas nos anos finais do século XX, com o PT coroando esse processo, as transformações produzidas pelos governos do PT (acrescidas pelas transformações em curso no mundo desde a crise de 1973 e a derrocada do império soviético em 1990) nos primeiros anos do século XXI geraram as transformações que vivemos hoje.
A ditadura militar foi ruim e naufragou em boa hora. Os governos petistas foram bons e precisamos lutar para mantê-los e para não ceder espaço aos defensores de novas ditaduras, de ideologias, de práticas e de governos neofascistas.
Com relação às questões identitárias, atrevo-me a dizer que precisamos calibrar o discurso, sem renunciar ao conteúdo.
As transformações em curso no país criaram áreas de resistência muito fortes. Tanto no plano econômico e político (haja vista a Operação Lava-Jato, a cassação da presidenta Dilma Rousseff e a campanha dos grandes meios de comunicação de criminalização e desprestígio dos políticos, principalmente da esquerda, e da própria atividade política), como no plano da moralidade e dos costumes.
A guerra cultural se instalou. Não é por acaso que o “filósofo” do caos, Olavo de Carvalho, e seus discípulos odeiam Gramsci. Eles o leram e o entenderam. Nessa disputa, eles encontram campo fértil para assentar seus princípios ideológicos e seus preconceitos.
Vou tomar apenas dois exemplos, para não me estender em demasia. A questão feminina e a da comunidade transsexual.
Suas bandeiras abalam os fundamentos da família tradicional, que é a base de sustentação das relações sociais e o apoio material e afetivo das pessoas em geral, e que está em profunda crise, provocada pelas transformações em curso no mundo. As pessoas que estão “sem chão”, devido às profundas transformações em curso, têm na família, mesmo com todas as suas contradições e problemas, uma garantia de apoio e segurança, tanto afetivo quanto econômico.
Defender o aborto apenas como uma forma de afirmação do direito de escolha feminino, sem dar a devida prioridade à questão de saúde pública (da própria mulher), assim como defender o uso de banheiros unissex nas escolas e nos espaços públicos, sem impor qualquer ressalva, são posturas vistas pela população que se encontra exposta à violência dos traficantes, da polícia e, muitas vezes, dos próprios familiares, como um combate à família, um ataque a membros de uma instituição que lhe é cara. Isso dá munição aos conservadores, principalmente aos padres e pastores reacionários, que são exatamente os que hoje mantêm maior contato e são os maiores orientadores dos valores morais das populações mais vulneráveis.
Uma mãe, que tem sua filha ou filho exposta/o à violência e ao risco de ser estuprada/o, inclusive por familiares, não quer que, na escola ou nos ambientes públicos, esse risco seja exponenciado pelo uso comum de pessoas que se auto reconhecem com trans e, por isso, podem utilizar o mesmo banheiro de sua/seu filha/filho. Este é um dos motivos pelos quais o movimento Escola sem partido se fortalece ainda hoje.
As famílias de classe média (mesmo da classe média baixa) e das classes altas podem escolher em que escolas matricular seus filhos e filhas. Podem escolher se os colocam em escolas progressistas ou conservadoras, uma escolha que não é oferecida às famílias mais pobres, cujos filhos têm, forçosamente, que estudar em escola pública. Por que esta escola tem que ser “progressista” e por que nessas escolas os banheiros devem ser unissex? Se não há risco, então é preciso primeiro convencer os temerosos de que ele não existe[1].
Estas são questões que teremos que enfrentar, se queremos, de fato, saber como “voltar às bases”, pois não basta estar no lugar certo, é preciso também dizer corretamente o que precisa ser dito ali.
Eu não sei como responder às questões aqui colocadas e às muitas outras que acompanham o tema da “volta às bases”, como por exemplo as relativas à oligarquização também dos partidos de esquerda, à correlação de forças no parlamento e ao emparedamento do governo Lula, e é por isso que conclamo os interessados para o debate. Envie seu texto para redaçaoportalred@gmail.com.
*Benedito Tadeu César é cientista político e professor universitário, Coordenador Geral da Associação de Amigos do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito e da Rede Estação Democracia RED
[1] Essas questões foram levantadas brilhantemente na mesa A agenda de costumes e religiosa, no Seminário Eleições 2024: continuidades e mudanças, organizado pela profa. Silvana Kause, do PPG de Ciência Política da UFRGS, e realizado no Plenarinho da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul durante os dias 27 a 29 de novembro de 2024.
Foto da capa: redes sociais
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