Por FABIO DAL MOLIN*
Grande (FURG), coordenador do Laboratório de Extensão e Pesquisa em Psicanálise, Política e Arte (LEXPARTE) @b.dalmolin, lexpartelab@gmail.com @comolerzizek
“A conclusão um tanto ou quanto triste que somos forçados a tirar de tudo isso é que uma catástrofe não é algo que nos espera no futuro, algo que possa ser evitado com uma estratégia bem pensada. Catástrofe, em (não apenas) seu sentido ontológico mais básico, é algo que sempre-já aconteceu, e nós, os humanos sobreviventes, somos o que resta – em todos os níveis, mesmo no sentido mais empírico: será que as imensas reservas de petróleo e carvão, até agora nossa fonte de energia mais importante, não testemunham as imensas catástrofes que aconteceram em nossa terra antes da ascensão da humanidade? Nossa normalidade é por definição pós-apocalíptica.”
Zizek, Slavoj. Mais-gozar: Um guia para os não perplexos (Portuguese Edition) (p. 13). Editora Vozes. Edição do Kindle.
“Zero Day” (Netflix, 2025) conta a história de um ex-presidente dos EUA, George Mullen (Robert de Niro) muito respeitado por ter governado a partir de uma aliança bipartidária no congresso que é chamado para coordenar uma crise desencadeada por um ataque terrorista cibernético que paralisou o país por 1 minuto e matou milhares de pessoas. Mullen goza de rara popularidade e credibilidade entre ex-presidentes e é escolhido por uma presidenta americana negra e democrata para comandar uma comissão especial de gestão de crise autorizada pelo Congresso a ter poderes especiais de espionar civis, efetuar prisões sem mandato e até mesmo recorrer a tortura, com poderes mais amplos que o Ato Patriota do 11 de setembro. Acompanhamos o protagonista em uma rede de intrigas e conspirações entre o congresso, CIA, FBI, grandes magnatas das Big Techs (uma delas parece ser uma espécie de Elon Musk de esquerda) e influenciadores digitais de extrema direita que quase levam a uma declaração de guerra a Russia, o primeiro e óbvio inimigo.
A série cartografa com precisão o momento tóxico das democracias ocidentais sectarizadas por facções políticas inconciliáveis, desinformação, radicalismos políticos corrupção e poder.
O desfecho da série, ainda que não seja original, é surpreendente. Mullen descobre que o grupo terrorista não só é um inimigo interno, mas que é um grupo composto por donos de corporações, bicg techs e pelo próprio presidente do Congresso e mais 12 deputados e senadores democratas e republicanos, um deles a sua própria filha
osOs antagonistas do filme , com “boas intenções ” executaram um atentado com milhares de vítimas como uma tentativa de resgate da “democracia” americana aos tempos anteriores do atual impasse cismogenetico a partir da criação de um inimigo comum, igual, porém em distintas proporções, ao plano do personagem Ozymandias da HQ “Watchmen” de Alan Moore. Na história de Moore, em um mundo onde existem super heróis realistas e um iminente confronto nuclear, um desses heróis é um bilionário que cria um alienígena ficcticio cuja aparição no centro de Nova Iorque provoca a morte de 3 milhões de pessoas e força as nações em conflito a assinarem a paz pelo inimigo comum.
No caso de “Zero Day” a questão a ser levantada aos conspiradores é algum dia existiu uma “normalidade democrática”, um espaço ideal de diálogo aberto entre antagonismos, sem influência de poderes econômicos ou sociais, e que esse espaço sido perturbado traumaticamente pelas redes sociais e algoritmos (lê-se como governo Trump)? Na última década vimos surgir a ascensão da extrema direita no mundo inteiro causando grandes vácuos de poder nas democracias parlamentaristas mais consolidadas da Europa e a eleição de Bolsonaro no Brasil e Trump nos EUA. No caso dos dois últimos, muitos analistas políticos os interpretaram como fenômenos anômalos e que as vitórias de Biden e Lula trariam de volta uma suposta “normalidade” institucional. Contudo, o retorno triunfal e arrasador de Trump, catapultado pelo apoio orgânico de Elon Musk e Mark Zuckerberg e o total isolamento do PT e de Lula no Brasil mostraram que a tal normalidade democrática jamais será restaurada, porque ela nunca existiu.
Para algo ser traumático é preciso um espaço curvo de realidade que o acople. Zizek, em um documentário chamado A realidade do virtuali chama atenção para a relação entre a teoria da Relatividade de Einstein e a revisão da teoria do trauma de Freud. Einstein imaginava inicialmente que o espaço era plano e que a matéria provocaria uma curvatura geradora da própria gravidade. Posteriormente, o físico alemão percebeu que não era a matéria que curvava o espaço, ele já era curvo. No emblemático caso Caso do Homem dos Lobos Freud percebeu que o menino havia presenciado a cena do coitus a tergo, porém ela tornou-se traumática anos depois, ou seja, não é o trauma que provoca um rompimento no psiquismo, no entanto, ele vem a condensar e deslocar, afetos primordiais já existentes.
Zizek coloca que o discurso antissemita dos nazistas na Alemanha de Hitler é que os judeus eram corruptos, usurários e gananciosos, que que seriam eles as causas da catástrofe econômica do país. Contudo, a história mostra que desde o século XIX a Alemanha germinava os discursos higienistas e eugenistas e foram escolhas equivocadas de seus governantes que levaram o país a devastação da Primeira Guerra e às terríveis sanções impostas pelos vencedores. O espaço social já era curvo e traumático e ele foi apenas preenchido pelo antissemitismo.
Da mesma forma que as democracias do Brasil e dos EUA já claudicavam desde sempre, o primeiro por ter sua história repleta de golpes, reviravoltas e eternos retornos das forças coloniais e o segundo por manter uma Constituição anacrônica dos tempos dos pais fundadores e um sistema eleitoral desequilibrado na raiz. Bolsonaro e Trump foram apenas expressões legítimas de estruturas de poder decadentes,
No final da série, George Mullen faz uma armadilha aos conspiradores que, de certa forma, o incitam a apresentar um bode expiatório como culpado do atentado e livrar os responsáveis em uma espécie de anistia. A grande reviravolta final acontece diante do Congresso Americano e é transmitida para todo o país, quando o protagonista foge do script e revela a verdade, sacrificando a própria filha e a si mesmo ( aqui há uma importante alusão aos líderes políticos que protegem obscenamente sua família a enormes custos para uma nação).
“Zero day” traz a ideia da utopia como possível saída para os impasses democráticos, ou seja, a ideia de que não há solução no horizonte que vivemos, mas sim em uma possiblidade de pensar o impensável, em experimentar a angústia de que precisamos criar aquilo que ainda não foi criado, pois, como mostra o enredo da série, as tentativas de remendar a democracia só provocam conflitos, desastres e jogos de poder.
E agora, o que fazer?
*Fabio Dal Molin é psicólogo, psicanalista, doutor em sociologia, professor da FURG e pós-doutorando do Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Clínica e Cultura da UFRGS.
Foto de capa: Reprodução