Urbanismo Canibal

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Por JORGE BARCELLOS*

— Entretanto, construí na minha mente um modelo de cidade do qual posso extrair todas as cidades possíveis — disse Kublai. Ele contém tudo o que vai de acordo com as normas. Uma vez que as cidades que existem se afastam da norma em diferentes graus, basta prever as exceções às regras e calcular as combinações mais prováveis. – Eu também imaginei um modelo de cidade do qual extraio todas as outras – respondeu Marco. – É uma cidade só feita de exceções, impedimentos, contradições, incongruências, contrassensos. Se uma cidade assim é o que há de mais improvável, diminuindo o número de elementos anormais, aumenta a probabilidade de que a cidade realmente exista. Portanto, basta subtrair as exceções ao meu modelo e, em qualquer direção que eu vá, sempre me encontrarei diante de uma cidade que, apesar de sempre por causa das exceções, existe. Mas não posso conduzir minha operação além de um certo limite: obteria cidades verossímeis demais para serem verdadeiras”. Ítalo Calvino, As cidades invisíveis, p. 67.

Hoje, se o Marco Polo de Ítalo Calvino acompanhasse as discussões do novo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, ele teria a certeza de que Porto Alegre seria esta cidade exemplo de mais improvável, feita de exceções e contradições. Na minha opinião, o novo projeto de Plano Diretor de Porto Alegre é exatamente a cidade que, por causa das exceções, teima em existir. Basta olhar a trajetória de luta social envolvida em sua produção. Encaminhado à Câmara Municipal em 12 de setembro de 2025, projeto de lei define as regras do Plano Diretor e da Lei do Uso e Ocupação do Solo. Segundo a Prefeitura, resultado de um extenso processo de participação popular; segundo seus críticos, não é bem assim: o projeto é acusado de ter um viés que favorece o mercado imobiliário em detrimento do interesse público, além de questionar a participação social efetiva e o modelo adotado para o planejamento urbano. Previsto para votação no final do ano, na minha opinião ele reúne inúmeras razões para a produção da infelicidade dos cidadãos: representa o retrocesso da participação popular, inversão da priorização do interesse social, agora em favorecimento do interesse econômico, cujo efeito será, mais uma vez, a expulsão de famílias de baixa renda econômica do centro da cidade, desrespeito à legislação ambiental, falta de transparência e accountability. 

Não estou dizendo nenhuma novidade, apenas retomando os argumentos que inúmeros  professores universitários, pesquisadores, organizações sociais, movimentos populares, entidades da área ambiental e do urbanismo tem dito do projeto: Paulo Soares (UFRGS e Observatório das Metrópoles) aponta que o plano aposta unilateralmente no mercado imobiliário como principal força produtora e gestora da cidade, o que entra em contradição com o discurso oficial de sustentabilidade e gestão democrática; movimentos sociais como a  articulação “Atua Poa – Todxs Nós”, criticam o modo ilegal como foi feita a revisão, sem participação social adequada, em especial quanto a participação do Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (CMDUA) e do Conselho Municipal de Meio Ambiente (Comam). O próprio Conselho de Arquitetura e Urbanismo do RS (CAU/RS) entrou com ação civil pública alegando vícios no processo legislativo e a violação à gestão democrática, questionando a efetividade da participação social.

Isso também não é nenhuma novidade, tratando-se de uma proposta de um governo que é, na minha opinião, ultraneoliberal.   A novidade é quase a total impossibilidade de a sociedade realizar uma negociação real do projeto, uma vez que o governo conta com maioria na Câmara Municipal.  Reportagem do Jornal Sul21 do último dia 12 (disponível em https://abre.ai/n37Q) assinala que o Fórum de Entidades pede mais tempo para analisar o projeto, recomendando a revisão do prazo da tramitação legislativa. Essa pressa e falta de dados é criticada em todos os debates, destaca a reportagem. Eu gostaria de dar um nome a esse processo: Urbanismo Canibal. A inspiração, é claro, é de Nancy Fraser em seu Capitalismo Canibal (Autonomia Literária, 2024). Se, segundo ela, o capitalismo canibal é o sistema que nos levou a um endividamento devastador e à precarização do trabalho com a dilaceração das infraestruturas de proteção social, aqui o urbanismo canibal é esse sistema que está levando a criação de um Plano Diretor integrante de um planejamento e gestão predatória de espaços urbanos visando criar cidades e ambientes favoráveis à acumulação de capital. A proposta atual é exatamente o contrário do que deve ser um urbanismo sustentável porque, da forma como foi concebido, concordo com os especialistas  que veem que o projeto tende a aumentar o impacto ambiental ao permitir exploração de terrenos já indicados para proteção natural; não é inclusiva porque promove a desigualdade social no acesso à cidade; não cria espaços vibrantes de interação social, ao contrário, promove a expansão de espigões que nada têm em relação ao contorno e é antiresiliente, pois enfraquece a cidade em seu enfrentamento às mudanças climáticas.  Não sou urbanista nem técnico de planejamento: é apenas minha visão de crítico social.

Canibalizar a cidade

Fraser diz que o canibalismo tem vários significados e ela o usa para descrever a classe capitalista, que “se alimenta de todos os demais (…) privando um estabelecimento ou empreendimento de um elemento essencial para seu funcionamento a fim de criar ou sustentar outro” (p. 13-14).  A economia capitalista faz isso, explora famílias, comunidades, habitats, capacidades estatais e poderes públicos para inflar a si própria. Quando entendo que a atual proposta de Plano Diretor integra um sistema canibal, é no sentido dado por Fraser, como a da serpente Ouroboros, que “se canibaliza engolindo a própria cauda” (p. 14).   Se nós somos o prato principal no grande banquete capitalista, o Plano Diretor é o garçom que coloca a cidade propriamente dita como pratos e utensílios deste jantar.  E o que será devorado pelos comensais capitalistas é a cidade.   Se o capitalismo é essa ordem social que autoriza a economia do lucro das grandes empreiteiras a predar tudo e a todos, o Plano Diretor é esse instrumento político cooptado pelas classes capitalistas locais – leia-se ali o capital imobiliário, o setor da grande propriedade imobiliária, os investidores do mercado imobiliário e os agentes da construção civil de grande porte – para esse fim.

Os técnicos críticos do processo afirmam que todos os atores do setor envolvido participaram como apoiadores na última eleição, e agora cobram a fatura: um Plano Diretor capaz de fazer a cidade de Porto Alegre funcionar em maior grau de expropriação. Quer dizer, nos termos de Marx, os capitalistas, depois de expropriarem o trabalho, passam a expropriar a própria cidade em maior grau.  A cidade e a força de trabalho são alicerces vitais da acumulação. A sociedade desenvolveu, nos planos diretores anteriores ao atual, formas de proteção e controle do crescimento para proteger a cidade da especulação e exploração do solo urbano, medidas que se tornaram entraves à acumulação capitalista.  Eu sei disso porque estudei a história dos Planos Diretores de Porto Alegre quando fiz a exposição sobre o tema, inspirada pela leitura que fiz de Porto Alegre como cidade ideal: Planos e Projetos Urbanos para Porto Alegre, tese de doutorado de Silvio Belmonte de Abreu Filho (UFRGS, 2006), uma notável obra de referência sobre a importância dos planos diretores na criação de condições de bem-viver em Porto Alegre e de onde é extraída a epígrafe deste texto. Nos termos de Abreu, entendo que o Plano Diretor em andamento faz em relação aos anteriores é autorizar a devoração da riqueza acumulada na cidade por todos os demais planos anteriores e que não é passível de avaliação econômica: o bem-estar que as condições de vida numa cidade regulada promovem para o bem comum. Não, os edifícios não podem ter sua altura liberada simplesmente porque eles moldam a identidade e a maneira de sentir e perceber a si próprios dos porto-alegrenses.  Lucy Huskins, em Arquitetura e Psiquê (Perspectiva, 2021), argumenta que nosso comportamento inconsciente se relaciona diretamente às edificações que nos cercam. Somos atraídos pelas características dos prédios ao nosso redor, que repercutem na produção de nosso bem-estar ou, ao contrário, contribuem para a produção de uma insatisfação na vida na cidade.  

Esse argumento é também desenvolvido por Thomas Heatheriwick em Humanizar: um guia para construir nosso mundo (Olhares, 2025). Para ele, o fato de que as empresas construtoras se preocupam mais com seus acionistas do que com a sociedade faz com que haja uma conjunção de forças para produzir mais e mais prédios e cidades desprovidas de alma, projetadas para os negócios e não para as pessoas.   Para ele, o excesso de edifícios que nos cercam nos torna doentes, infelizes e prejudica o planeta. “Chegou a hora de colocar a emoção humana de volta no centro do processo de design”, diz.  É o contrário do que pretende o atual plano: não se trata de tirar o design do interior dos Planos Diretores, mas dotá-los de princípios que visem o benefício da sociedade e não do mercado. De onde saiu esse princípio perverso que alimenta a proposta do projeto do Plano Diretor? Seguramente de Alain Bertand, que em seu livro Ordem sem Design (Bookman, 2023) defende que o fracasso dos Planos Diretores de Desenvolvimento Urbano é que eles são baseados no design, e não na economia. Para ele deve ser o contrário e isso fundamentou a visão que norteou o projeto do novo Plano Diretor: sai o objetivo de criação de boas condições de vida para cidadãos na metrópole (o design urbano)  e entra em seu lugar a criação de condições de ampliação do capital imobiliário em seu lugar (a economia, ou o mercado).  

A esquerda deve criticar a inspiração do plano

Em realidade, entendo que a esquerda está certa em criticar o atual Plano Diretor, mas tem feito da forma errada. Ao criticar apenas o conteúdo do plano estabelecido em suas proposições, ataca a sua narrativa. É preciso ir mais a fundo, é preciso criticar os pressupostos sobre os quais se fundamenta.  Por isso a esquerda precisa ler urgentemente o livro Ordem sem design, que poucos leram e que entendo que inspira (ou justifica) as bases da atual proposta de Plano Diretor da Prefeitura. Isso é revelado em matéria do jornalista Marcelo Gonzatto em Zero Hora (9 e 10 de agosto): “O novo plano diretor da Capital é inspirado em um urbanista francês responsável por projeto em municípios de países como China, Índia e África do Sul. Alain Bertaud, 85 anos, é ferrenho defensor do mercado como ferramenta para resolver problemas das cidades com déficit habitacional, congestionamentos e valor excessivo de imóveis. (…) O ex-planejador urbano do Banco Mundial se aproximou da Capital em 2023, quando esteve no Fórum da Liberdade e em seminário acompanhado em peso por servidores da prefeitura.  Nesta sexta-feira, Bertaud afirmou: “Fico feliz em saber que a prefeitura está propondo mudanças que vão permitir desenvolvimento mais denso, refletindo a transformação da realidade econômica. Cidades presas ao passado não irão sobreviver. (ZH, p. 5).  Bertaud fez a festa das incorporadoras locais: na minha opinião é exatamente o contrário, precisamos aprender e voltar a sermos uma “cidade do passado”, justamente porque ela é voltada para as pessoas. A atual não.

O próprio Secretário de Meio Ambiente da Capital, Germano Bremm, ressaltou a Marcelo Gozatto, de Zero Hora, que Bertaud é, “sem dúvida, uma das influências da revisão de nosso plano”.   Por isso entendo que, se as ideias de Bertaud são a base da narrativa do Plano Diretor e por isso sua obra precisa ser vista com atenção pela esquerda.  É que Ordem sem Design serve para ofuscar os reais objetivos das mudanças no planejamento urbano que sugere: a de que os planos diretores também devem servir a uma ordem maior, a econômica, que, como sabemos, não é movida por boas intenções, ao contrário, é movida pelo lucro e pela necessidade de predar e devorar tudo aquilo que necessita para funcionar.  Um dos pontos de partida para isso a crítica que a obra á recebeu em seu lançamento nos debates que suscitou nos Estados Unidos, apagados como por magia pelos administradores de plantão.  

Por exemplo, Erik Drynsdale, cientista de Dados Sênior no Boston Consulting Group GAMMA, escreveu artigo (disponível em https://abre.ai/n30f) em que resume os argumentos da obra de Bertaud, destacando a crítica de que, ao colocar economistas no lugar de planejadores urbanos no centro da criação de políticas de urbanização para as cidades, substituiu-se o trabalho por ideais de sustentabilidade, resiliência e equidade pelo mercado. Por isso Drysdale é claro ao definir a obra de Bertaud como produto da ideologia de mercado, quando diz que, segundo ele, “os planejadores urbanos devem se concentrar principalmente na construção de infraestrutura pública que maximize a eficiência do mercado de trabalho”. Mas é isso que os cidadãos querem para suas cidades? A substituição de um lugar para viver por um lugar para trabalhar?  Eu entendo que não.

Criticar o princípio de fundamento da cidade

O primeiro princípio de base do pensamento de Bertaud que precisa ser criticado pela esquerda nos debates atuais sobre o Plano Diretor é de que a cidade é um lugar de trabalho e não de convivência.  Essa concepção originou em seu pensamento a defesa da flexibilização absoluta dos objetivos dos Planos Diretores. Surgiu em Bertaud quando ele se deu conta da impossibilidade de aplicar as regras do planejamento que aprendeu em Paris à sociedade pobre do norte da África.  Como imitador de Marco Polo, de Ítalo Calvino, ele notabilizou-se, por isso, por criar condições de exceções aos códigos de planejamento, em vez de aplicá-los, o que soou como música para os ouvidos dos técnicos da Prefeitura sedentos de justificativas para fazer flexibilizações no Plano Diretor de Porto Alegre. Entretanto, é preciso considerar que a realidade das cidades do norte da África do passado é bem diferente da de Porto Alegre atual.  Mesmo quando Drysdale diz que Bertaud emite sinais libertários de que acredita em “algumas” regulamentações, de que “não defende a desregulamentação como doutrina ideológica… Auditar regulamentações urbanas é como podar periodicamente uma árvore: o objetivo não é cortar galhos, mas permitir que a árvore se desenvolva plenamente”, não se tratam de traços libertários em seu pensamento, mas da própria ideologia na qual ele está imerso da cabeça aos pés.

Que ideológica é esta? Ela foi descrita pelo filósofo esloveno Slavoj Žižek como uma espécie de metáfora do “não acreditar, acreditando”, que diz que as ideologias e crenças funcionam na sociedade contemporânea da seguinte forma: ao invés de uma crença explícita “sim, eu defendo a regulamentação”, ela opera por uma crença implícita, internalizada e muitas vezes inconsciente, que não é declarada e nem dita abertamente: “sim, eu acredito em regulamentações, mas minha obra e meu pensamento estão voltados para desregulamentar e retirar o poder do Estado para que o mercado possa agir”. É exatamente, como diz Žižek, das pessoas ateias ou céticas em relação às narrativas dominantes que tendem a sustentá-las por meio de suas escolhas e ações, no caso do ateu que participa de rituais religiosos ou de quem critica o capitalismo, mas trabalha reproduzindo suas lógicas e hierarquias. A consequência é que, mesmo assumindo-se como defensor da regulação, o que também não me parece o caso, seus escritos terminam favorecendo as formas de exploração do capital por meio dos Planos Diretores, impedindo qualquer forma de emancipação.  Essa estratégia de “destruição do Estado por meio do Estado” já se tornou comum quando governos de direita, desde quando o governo Jair Bolsonaro assumiu o poder, desmantelando a máquina estatal com processos de privatização. Agora, ele se reproduz no campo do Planejamento Urbano de Bertaud, de forma inconsciente, na manutenção do status quo, mesmo considerando-se seu crítico. Por isso, os críticos do Plano Diretor, especialmente à esquerda, precisam se dar conta desta dinâmica operando na produção do plano, de que suas supostas boas intenções não passam de adereço a um projeto determinado de construção de um urbanismo canibal, o que irá permitir que a cidade seja devorada pelo capitalismo.    

O segundo princípio de base de Bertaud é o do discurso competente, já elaborado por Marilena Chauí.   Drysdale diz que a segunda inspiração de Bertaud ocorreu quando trabalhava com o economista urbano Jim Wright, no Haiti, em 1974, na elaboração do Plano Diretor para Porto Príncipe patrocinado pela ONU. Foi quando percebeu a diferença entre os discursos de planejadores urbanos e economistas, quando então passou a valorizar estes últimos, em detrimento dos ideais de cidadania. Diz Drysdale: “Na época, Bertaud desconhecia a diferença entre economistas e planejadores urbanos. Por meio de suas interações com Wright, Bertaud percebeu que os preços dos terrenos, as densidades e a forma construída poderiam ser consideradas com base em teorias econômicas.”  Diz Bertaud que “na profissão de planejamento, os altos preços dos terrenos são frequentemente deplorados, mas geralmente se acredita que sejam causados por especuladores. Até hoje, poucos planejadores fazem uma conexão entre preços e aluguéis de terrenos e a oferta de terrenos e áreas construídas. É por isso que os planejadores que elaboram regulamentações que limitam severamente a extensão das cidades frequentemente se surpreendem com o aumento dos preços dos terrenos e os atribuem a fatores externos pelos quais não são responsáveis.”  O argumento parece consistente, mas não é.

O reducionismo econômico de Bertaud

A origem do princípio que diz que tudo deve se referir à economia é que Bertaud é um adepto do reducionismo econômico de Milton Friedman, que, em sua obra “Capitalismo e Liberdade” (1962), argumenta que a liberdade econômica é fundamental para a liberdade individual e que a intervenção governamental na economia deve ser minimizada.  Essa teoria já foi amplamente criticada, como sabemos. Primeiro por Karl Polanyi, que em seu livro “A Grande Transformação” (1944) critica a ideia de que a economia é uma esfera autônoma e defende que ela está sempre inserida no contexto de relações sociais e culturais; segundo por Thorstein Veblen em sua obra “A Teoria da Classe Ociosa” (1899), em que critica a economia neoclássica e argumenta que a economia é influenciada por fatores culturais e institucionais; terceiro por Amartya Sen, que em sua obra “Desenvolvimento como Liberdade” (1999) argumenta que o desenvolvimento econômico deve ser avaliado em termos de liberdade e capacidades humanas, e não apenas em termos de crescimento econômico, exatamente como Bertaud quer fazer crer em sua obra.  

O problema é que o argumento de Bertaud se baseia em uma falácia. Ele parece convincente, mas tem um erro lógico. Sua premissa é de que é suficiente ao Plano Diretor criar as condições para uma cidade voltada para o trabalho e por isso critica a ação dos planejadores que fazem com que haja limites no desenvolvimento econômico delas. O efeito enganador de seu argumento é nos levar a crer que a única necessidade que temos na cidade é trabalhar. Trata-se de uma generalização apressada, que serve de justificativa para Bertaud substituir o lugar dos planejadores urbanos pelos economistas do planejamento, que calculam os custos das moradias, como se os regulamentos prescritos não tivessem outra função a não ser maquiar a cidade. Ora, a infraestrutura básica se faz com condições de vida junto a parques previstos e construídos, e ao mesmo tempo em que o autor cita exemplos de onde vê preferências estéticas tomarem o lugar dos determinantes econômicos, esquece que as preferências estéticas são justamente o que faz uma cidade ser boa de se viver. Um exemplo é o da cidade de Salto do Céu, em Mato Grosso, onde o Plano Diretor é participativo e criou condições para a inclusão social, descrito em reportagem de Mariana Vick para o Nexo Jornal (disponível em https://abre.ai/n4bp ). E, além disso, não apontam os desastres do planejamento urbano aliado ao capital, como fazem Tiago da Cunha, Teresa Faria e Ana Nascimento com o caso de São Paulo (disponível em https://abre.ai/n4bL). Planejar com um olho no mercado só prejudica a cidadania e a inclusão.

O peso de concentrar a função do planejamento urbano na economia, nas duas ideias do autor, tem efeitos no custo da mobilidade e acessibilidade, que supostamente reduzem custos de acesso ao trabalho e gastos por unidade familiar, mas desconsidera que as condições de vida também geram impacto e, principalmente, piora a qualidade de vida urbana. Bertaud constrói um texto hermeticamente fechado sobre o conceito de economia como o discurso foucaultiano é criticado por ser hermeticamente fechado em torno do conceito de poder. O pior é sua justificativa para a construção de prédios mais altos, num modelo padrão que diz que o preço dos imóveis diminuirá consideravelmente sem considerar os efeitos perversos que a ausência de leis de zoneamento provoca. Sua tese de que, à medida que os moradores de uma cidade enriquecem, a demanda por consumo imobiliário aumenta é desmentida pela realidade: no neoliberalismo, os moradores só tendem a ter seus salários reduzidos em função da precarização e ao se verem expulsos pelos processos de gentrificação. Nada mais perverso. 

Obsessão dos modelos matemáticos

É uma obra que seguramente quer impressionar pela abundância de gráficos e discursos que, segundo Drysdale, “forneceu pouco ganho de informação além do que um parágrafo de resumo poderia ter alcançado”. Bertaud sequer é capaz, diz o crítico, de considerar as falhas da visão econômica sobre a cidade, além de se basear em uma “obsessão míope de modelos matemáticos que levaram os economistas a ignorar a crise financeira de 2007-2008, subestimar os custos do comércio exterior sobre os trabalhadores e a consequência distributiva da política monetária, [por isso] devemos ser cautelosos com sua aplicação pura no estabelecimento das regras do design urbano”. O autor também vê limites na visão de Bertaud, que entende que tudo o que impede que terras agrícolas sejam transformadas em empreendimentos residenciais seja criticado, sem considerar que, uma vez transformadas em condomínios, estas terras não podem mais retornar a serem ecossistemas. 

Esse talvez seja para mim o pior ponto do atual projeto do Plano Diretor, pois a constante predação do reino natural, por ambição ou ignorância, ou a negligência calculada das autoridades pode resultar em catástrofe, como demonstrei em Neoliberais não merecem lágrimas (Clube dos Autores, 2024) em relação à enchente que atingiu Porto Alegre. Pablo Servigne e Raphaël Stevens sugerem em Como tudo pode desmoronar (Perspectiva, 2025) justamente que são princípios como os defendidos por Bertaud que, ao defenderem uma concepção cega ao caráter da urbanização ilimitada como objetivo de Planos Diretores, criam as condições para o colapso ou catástrofe da cidade, tema da colapsologia, a ciência dos riscos catastróficos. Colapsologia vem do latim, collapsus, “que cai como um só bloco, desmoronar”. O que acontecerá quando o capital tiver acesso ilimitado à apropriação do solo urbano de nossa capital? Em meu texto da semana passada em RED, já atestei a transformação de meu bairro pelos inúmeros prédios e carros em suas ruas. Aonde irá parar Porto Alegre quando seu Plano Diretor permitir o crescimento exponencial da cidade?

É por isso que cabe aos governos preservarem cinturões verdes. E por isso Drysdale questiona: “Parece prudente para os governos criarem cinturões verdes ou reservas de terras agrícolas.  Por exemplo, no Canadá, a maior parte da população vive perto do paralelo 49, que é também onde reside a maior parte das terras agrícolas de primeira qualidade. Faz sentido que terras agrícolas que pagarão dividendos econômicos por centenas de anos sejam permanentemente convertidas em um retiro de fim de semana para ricos urbanos? Como foi o caso da Grã-Bretanha na Segunda Guerra Mundial, ser dependente de suprimentos estrangeiros de alimentos coloca sua segurança nacional em risco. Sem a Marinha Real, ter uma produção nacional suficiente de alimentos representa uma vantagem para a segurança nacional. Os modelos econômicos simples nem sempre captam a complexidade das escolhas políticas.” 

É o caso dos argumentos contrários dos críticos aos empreendimentos da Fazenda Arado, como matéria do jornalista Luciano Veleda demonstrou ao Jornal Brasil de Fato (disponível em  https://abre.ai/n4hr ). Ali, pesquisadores como Rualdo Menegat apontaram também o risco de colapso natural do empreendimento ali previsto. No mundo atingido por catástrofes climáticas, aquela região deveria ser preservada; no mundo de Bertaud, não, já que os únicos responsáveis por fornecer imóveis e habitação para pessoas carentes são o próprio mercado, nunca o Estado. Ele somente quer que áreas verdes sejam disponibilizadas para incorporadoras, que venderam suas unidades com um preço um pouco menor para os mais pobres, quando deveríamos ter um estado responsável por seu acesso aos mais carentes. Como resolver isso?  Com programas de habitação fortalecidos, um maior número de cidadãos pobres terá acesso as habitações.  Mas se a solução é simplesmente aumentar as alturas dos edifícios para construir mais unidades que talvez sejam acessíveis aos mais pobres, o que teremos é uma cidade inabitável. O que a cidade ganha em preço perde em habitabilidade. O mercado não se preocupa com a sociedade, só consigo mesmo.

O reducionismo econômico como fundamento do planejamento

Outra análise, de Michael Gorff (disponível em https://abre.ai/n30h), mesmo sendo elogiosa ao autor, reforça os mesmos limites de sua análise: a economia como fundamento do planejamento urbano, a equivalência entre princípios de mercado e desenvolvimento urbano, queno seu entendimento naturaliza uma relação que é ideológica. Gorff afirma que Bertaud despreza tudo aquilo que oferece condições de vida à cidade, como “sustentabilidade”, “equidade” e “resiliência”.  Por isso Bertaud critica até os limites de altura dos prédios de Paris, uma cidade de notável caráter histórico, questionando se estes limites são sensatos. É claro que são! Isso dá a noção da perversa noção de economia que o alimenta: se deixássemos à sua vontade, do lado da Torre Eiffel já teríamos grandes arranha-céus. Pode-se imaginar o significado em termos de perda de identidade e, já que se trata de economia, da queda do turismo em função disso?

Gorff critica as críticas de Bertaud dirigidas aos planejadores urbanos, pois vão contra um dos objetivos do autor, incentivar os planejadores e urbanistas a trabalharem juntos. “Um aspecto particularmente decepcionante do livro é o tratamento um tanto cínico das forças políticas por trás do zoneamento e de outras regulamentações urbanas.” Outra crítica de Bertaud é Minza Shahid (disponível em https://abre.ai/n30k). Para ela, o problema de sua perspectiva é justamente o de agravar as desigualdades sociais, como a gentrificação e o deslocamento de comunidades de baixa renda.  Não é possível concordar com sua tese central de que as cidades funcionam melhor quando o mercado dita seu desenvolvimento. Acreditar que os mercados imobiliários transformam a paisagem de uma cidade para melhor é uma visão a serviço do capital; pensar que o mercado possa responder às necessidades da população pobre esquece que, em sua maioria, não são investimentos populares, mas, ao contrário, para a elite. A importância dos planejadores urbanos está justamente em procurar limites para benefício das classes populares. Dizer que os planejadores urbanos devem fornecer a infraestrutura para apoiar empreendimentos imobiliários para elites é de uma desfaçatez ambulante: então, o dono do capital deve ser apoiado pelo Estado? Por favor, estamos diante da carência da habitação popular! Esse realismo imobiliário de que fala Bertaud é a tentativa de negação da ideologia, sendo ela mesma ideológica – a ideologia de direita.

Estamos diante do falso dilema de quem deve governar as cidades: economistas ou urbanistas. Nenhum nem outro, mas sim administradores comprometidos com o social. É uma pena que um autor que viajou por inúmeros países tenha cedido ao fantasma do capital. A economia é uma péssima conselheira, especialmente para planejadores. Não é que ela seja ruim porque é economia ou científica, é ruim exatamente por isso, porque é economia, economia capitalista. Colocar um campo que serve mais ao capital do que à sociedade para dizer como elas devem ser geridas só pode ser uma escolha ruim. Não é possível concordar e facilitar as coisas para o mercado; é preciso, ao contrário, enfrentá-lo. Bertaud quer reduzir os objetivos sociais dos planejadores a modismo. Segundo ele, “o uso de termos como ‘qualidade de vida’, ‘caráter do bairro’, ‘habitabilidade’ e ‘sustentabilidade’ não é técnico, mas deriva de como eles e seus pares definem subjetivamente essas palavras. Isso significa que os planejadores dependem de truísmos e pseudociências para moldar políticas. E assim, Bertaud joga na lata de lixo os objetivos que devem perseguir os povos, o de uma cidade melhor.   É preciso desmascarar o argumento que faz da razão de se viver numa cidade a busca do emprego e desenvolvimento econômico. Isso é importante, mas não define nossa humanidade. Não, os planejadores não devem desempenhar uma função instrumental, escolher políticas para impulsionar o mercado, mas estabelecer condições de habitualidade e vida nas cidades. Zoneamento importa e não pode ficar à mercê do feedback e dos preços de mercado; ao contrário, deve refletir os interesses de seus cidadãos. Não se trata de qualidade custo-benefício, mas de direitos de cidadania. O patamar de análise é equivocado desde o princípio. Ora, limites de altura, zoneamento e preservação de áreas verdes são obrigações do Estado no campo da regulação de seu território que não podem ser abandonadas: ninguém pode ter liberdade para construir o que quiser e como bem entender. O nome disso é devoração. Bertaud ignora, ou finge ignorar, as novas distorções que esse mercado imobiliário livre produz.  O que Bertaud ridiculariza é, na verdade, o que é necessário para impor limites ao desenvolvimento ilimitado do capital.

A conclusão é que queremos uma Porto Alegre bem ordenada, sem fuligem da poluição no ar, sem moradias precárias para a população pobre, sem prédios que tornam a cidade tudo igual, exatamente como os urbanistas e utopistas do século passado desejavam construir por meio dos Planos Diretores que ajudaram a formular. Ao regularizar a ocupação da cidade, criamos condições para o acesso ao ar puro, espaços abertos para circulação e ruas planejadas para o transporte racional. É uma vida melhor para todos. Do jeito que está, na minha opinião o projeto do novo Plano Diretor impõe soluções melhores não para todos, mas para alguns, criando mais problemas urbanos do que promete resolver. Se os experimentos socialistas no campo do urbanismo fracassaram, sua necessidade de regras permanentes dadas pelos governos permanece forte. Ora, se deixamos o mercado funcionar, teremos edifícios tão altos nas cidades que criarão sombras excessivas, teremos problemas sociais e de saúde. Já temos uma literatura que aponta que as pessoas não são indiferentes aos projetos e formatos arquitetônicos; os críticos do projeto do novo Plano Diretor precisam conhecer seus argumentos, fazer o bom debate qualificado. As medidas em discussão afetam os indivíduos e ofendem a sensibilidade estética das pessoas. Permitir a expansão urbana sem freios é nociva, e por isso são necessários limites das autoridades municipais. É disso que trata o Plano Diretor.


Publicado originalmente Sler.

*Jorge Barcellos é graduado em História (IFCH/UFRGS) com Mestrado e Doutorado em Educação (PPGEDU/UFRGS). Entre 1997 e 2022 desenvolveu o projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal. É autor de 21  livros disponibilizados gratuitamente em seu site jorgebarcellos.pro.br. Servidor público aposentado, presta serviços de consultoria editorial e ação educativa para escolas e instituições. É casado com a socióloga Denise Barcellos e tem um filho, o advogado Eduardo Machado. http://lattes.cnpq.br/5729306431041524

Foto de capa:  IA

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Uma resposta

  1. Crítica excelente, principalmente porque se refere a uma realidade muito concreta, a urbana. Expõe a aplicação perversa de um plano que se baseia nos interesses exploratórios do grande capital e não nos interesses do bem comum.

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