Por LÉA MARIA AARÃO REIS*
“Entender a complexidade simples da sua obra e da alma brasileira”. Foi com esta ideia na cabeça que a diretora gaúcha Flavia Moraes iniciou as filmagens do documentário Milton Bituca Nascimento, que duraram dois anos e foram realizadas durante a turnê de despedida de Milton Nascimento. Agora, com estreia marcada no circuito de cinemas para esta semana (dia 20/03), esse delicado documentário, um evento cultural marcante, inaugura o começo da temporada cinematográfica de outono no nosso sul global.
O filme de Flavia Moraes com o Bituca faz relembrar e repudiar o vexame dado pela organização estadunidense da cerimônia de entrega dos Grammy desse ano, em Los Angeles, ao não convidar Milton para assistir, adequadamente instalado na plateia, à cerimônia da festa de um prêmio que, inclusive, já foi dele, em 1997.
“Pouca gente tem noção do tamanho que o Bituca tem lá fora”, comentava a premiada documentarista Flavia Moraes ao encontrar cada um dos 40 artistas entrevistados por ela no doc. Gilberto Gil, Mano Brown, Djamila Ribeiro, Quincy Jones, Spike Lee, Paul Simon, entre outros, todos observando a importância do legado cultural-musical do artista, o porquê do seu forte laço com seus fãs de todas as gerações e o que motiva as pesquisas e as aulas sobre o seu trabalho nas universidades.
Narrado por Fernanda Montenegro, o título do filme se refere ao apelido, Bituca, ganho por Milton quando criança pequena porque fazia beicinho quando contrariado. Nessa bonita viagem com o multi-instrumentista, alguns assuntos relevantes são adoção (Milton é pai adotivo do advogado Augusto), o racismo e os elementos musicais que se combinam nas suas composições – a música mineira, o som dos Beatles, a latinidade, a música religiosa e o jazz. Como em um álbum musical, há sequências memoráveis no filme, com Nada Será Como Antes, Travessia, Maria, Maria, Bola de Meia, Bola de Gude.
No registro da fundação do Clube da Esquina, por Milton e Lô Borges, por exemplo, o doc não deixa de lembrar que o grupo criou o seu próprio estilo usando elementos do rock, da música clássica e da folclórica e, é claro, do jazz.
Dois tópicos importantes constam também do documentário. O primeiro, as represálias sofridas por Milton durante os anos da ditadura civil-militar de 1964. Várias composições de sua autoria foram censuradas pelo regime; mas ele não se intimidava e gravava tudo em versões instrumentais. No álbum Milagre dos Peixes, de 1973, gravou as músicas mesmo sem as letras, usando gritos, suspiros e outros efeitos vocais para marcar a sua resistência.
O segundo tópico é o amor de Milton e sua incondicional admiração por Elis Regina. Sua morte foi um choque, um grande impacto na sua vida.
Em 1974, o cantor gravou um álbum batizado Nascimento, com o célebre saxofonista Wayne Shorter, e foi indicado cinco vezes para o Grammy. Native Dancer foi lançado em 1975 e recebeu o Grammy de Melhor Álbum de World Music com faixas como Agora, Rapaz?, Rouxinol e Levantados do Chão, com a participação de Chico Buarque. Este ano, Milton Nascimento foi indicado mais uma vez na categoria Melhor Álbum Vocal de Jazz, ao lado da jazzista Esperanza Spalding. No entanto, a produção do evento não reservou assento para o brasileiro na festa, ao lado de Spalding. Uma indelicadeza e uma grosseria para com uma lenda viva da música e da cultura brasileira.
“Esse é literalmente um road movie”, diz Flavia Moraes, levando o espectador a viajar com o compositor, hoje com 83 anos, nascido no bairro da Tijuca, zona norte do Rio, e criado pelos seus pais adotivos na cidade de Três Pontas, em Minas. “Milton não é só um artista gigante. Milton é o Brasil profundo, o Brasil que vive dentro de nós”, diz a diretora. “Sempre presente, sempre generoso, ele nunca tentou controlar o retrato que fazíamos dele; nunca pediu para cortar ou mudar nada. Eu me sentia livre e respeitada”. Flavia é autora da trilogia baseada nos contos O Brinco, Mentira e Olímpicos, de Érico Veríssimo, e do longa de ficção científica Acquária.
Hoje, Bituca mora em Juiz de Fora. Diz que se aposenta para descansar, conviver com mais frequência com os amigos, e fazer uma certa viagem. Um sonho que sempre o acompanhou: conhecer a Dinamarca.
Publicado originalmente no Fórum 21.
*Léa Maria Aarão Reis é jornalista.
lustração de capa: Reprodução