Tulipomania Digital Promovida pelo King Donald

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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

“Tulipomania digital promovida pelo King Donald” é uma imagem metafórica capaz de descrever bem o tipo de euforia especulativa e caracterizar a fase atual do capitalismo americano ao ser capturado politicamente pela extrema-direita. É possível organizar a análise desse problema em três níveis, para fins didáticos: (1) fenômeno atual e analogia histórica, (2) papel do Estado e do dólar, (3) conceito e funcionamento das stablecoins.

A expressão “tulipomania” remete à primeira grande bolha especulativa moderna, inflada na Holanda do século XVII, quando o preço dos bulbos de tulipa se multiplicou centenas de vezes antes de colapsar. Daí em diante, a lógica especulativa se tornou sempre a mesma.

Em geral, surge de uma inovação, percebida como “nova fronteira”: na época da revolução financeira (no século anterior à revolução industrial), uma flor exótica; hoje, a moeda digital. Há expansão do crédito e da liquidez, sustentada por juros baixos e confiança excessiva na valorização ser infinita.

Na realidade, a valorização é autorreferente. O preço sobe porque se espera que suba — e todos entram no jogo por causa do pressuposto custo de oportunidade de “ficar de fora”. Há fusão entre especulação e status político: o ativo vira símbolo de poder, distinção e fé no futuro.

No caso atual, ocorre uma tulipomania institucionalizada, porque o Estado americano — sob Trump reeleito — estimula a especulação, em vez de contê-la. Cria uma reserva nacional de bitcoins. Autoriza o uso de criptomoedas em fundos de aposentadoria. Desregulamenta a SEC e o sistema bancário. Transforma o King Donald e sua família em atores empresariais diretos do mercado de tokens.

A “nova fronteira” da riqueza não está mais em terras ou fábricas, mas em ativos digitais sem substância material, lastreados apenas na crença (ou ilusão) coletiva. Agora, nos Estados Unidos, está reforçada pelo selo do poder político.

Apesar dessa febre especulativa, o dólar continua sendo o núcleo do sistema mundial de liquidez. A financeirização global depende dele como unidade de conta, meio de liquidação e reserva de valor, seja diretamente, seja via Treasuries: títulos de dívida emitidos pelo governo dos Estados Unidos para financiar suas despesas.

As stablecoins, embora “lastreadas em dólar”, não substituem o dólar. Elas são apenas formas privadas de representação dele — versões tokenizadas, sem a garantia do Estado, mas dependentes de suas políticas.

Logo, as stablecoins não competem com o dólar. Na verdade, elas são parasitas do dólar.

Por isso, a ironia: enquanto o discurso cripto fala em “libertar-se do Estado”, sua existência é possível somente porque o Estado americano garante o valor do dólar capaz de lastrear as criptomoedas. Se o Tesouro ou o Fed perdessem credibilidade, as stablecoins evaporariam junto.

Há um perigo estrutural: se trilhões de dólares forem “tokenizados”, fora do circuito bancário, o poder de regulação monetária do Fed se fragilizará. O sistema monetário passará a depender de emissores privados globais, opacos, voláteis e politicamente capturados. Isso criará uma financeirização paralela, uma espécie de “sombra digital” do dólar, com potencial de desestabilização sistêmica.

Didaticamente, o quadro abaixo explica como funcionam as stablecoins por analogia com o sistema bancário tradicional, em três camadas:

NívelAnalogia TradicionalNo Mundo CriptoFunção Econômica
1. BaseDólar emitido pelo FedStablecoin (ex: USD1, Tether, USDC)Meio de troca digital, supostamente estável
2. IntermediárioBanco comercial
via depósitos
Emissor privado: empresa promete manter reservas equivalentesConversão entre cripto e moeda oficial
3. Superestrutura especulativaFundos, ações, derivativosTokens, memecoins, NFTs, DeFiAtivos de valorização — o “mercado” propriamente dito

O público deposita dólares (ou cripto) na empresa emissora da stablecoin; em troca, recebe tokens equivalentes a um dólar. Esses tokens circulam livremente em redes digitais, servindo como lubrificante financeiro do universo cripto.
Mas o lastro (composto pelas reservas) pode não ser plenamente transparente e transformar a “estabilidade” em uma aposta de confiança.

O paradoxo é nítido, porque a “revolução cripto” prega a descentralização, mas precisa do dólar, dos bancos e do poder de um presidente-empresário (bilionário oportunista), para se sustentar. O resultado é um capitalismo de bolha sob hegemonia digital, onde o Estado americano financia a liquidez, os ricos capturam a valorização, e a multidão (“plebe ignara”) acredita estar participando da liberdade financeira. Desse modo, o neoliberalismo digital realiza o sonho do rentista — liquidez infinita, risco público e lucro privado — agora tokenizado.

Pior é essa situação permitir a conversão de dinheiro ilícito em cripto (ou vice-versa) para aproveitar canais novos de movimentação. Faz a sua fragmentação em camadas: divide grandes somas em muitas transações menores e emenda-as por diversas carteiras para dificultar o rastreio  desse padrão geral de “layering” [camadas] em lavagem de dinheiro sujo.

Mixers e tumblers prestam serviços de mistura de fundos de muitos usuários para embaralhar vínculos entre origem e destino. Diante das controvérsias legais, vários foram fechados por autoridades.

São “moedas de privacidade”. O uso de criptomoedas é projetado para ocultar remetente/destinatário/valores na privacidade on-chain (em corrente).

Chain-hopping (salto em cadeia) significa trocar entre diferentes blockchains e tokens para aumentar a complexidade da trilha. Os criminosos fazem uso de intermediários opacos: corretoras sem KYC rigoroso, OTC desks, marketplaces P2P e “empresas fachadas” em jurisdições com fiscalização frágil.

Tokenização de ativos e NFTs permitem empregar instrumentos digitais complexos para “disfarçar” a origem e justificar as transferências de valor. Bandidos fazem também integração via bens reais: convertem cripto em mercadorias, imóveis, obras de arte ou serviços. Depois, circulam em mercados menos transparentes.

Como as autoridades e os analistas detectam e combatem esse crime? Primeiro, fazem rastreio on-chain: blockchains públicas permitem a análise de fluxos; analistas usam heurísticas para agrupar endereços (clustering) e identificar padrões anômalos.

Entidades privadas como Chainalysis, Elliptic, TRM etc., produzem ferramentas de análise. Elas marcam endereços relacionados a hacks [truques], bolsas sancionadas, mixers conhecidos e esquemas de fraude.

A cooperação internacional é fundamental para trocas de informação entre reguladores, pedidos MLAT, congelamento de contas e cooperação entre exchanges e autoridades. KYC/AML em exchanges obriga identificação de clientes, limites e monitoramento de transações suspeitas.

Há sanções e listas de bloqueio. OFAC, União Europeia e outros mantêm listas; instituições fazem triagem automática. Exige-se relatórios de atividade suspeita (SAR): intermediários financeiros são obrigados a reportar operações atípicas.

Red flags ou sinais de risco úteis para análise são depósitos/saques fragmentados, mas convergentes para um único ponto. Uso repetido de serviços de mistura ou conversões frequentes entre várias criptomoedas chamam a atenção.

Autoridades policiais devem observar transferências com contrapartes conhecidas por fraude, hacks ou sanções. É chamativa toda movimentação rápida entre exchanges em jurisdições com fraca supervisão. Da mesma forma, a emissão ou uso de stablecoins por entidades com pouca transparência nas reservas.

Medidas legais e regulatórias reduzem o risco. Exigem o reforço de KYC/CDD (conheça seu cliente / due diligence). Travel Rule (regra de viagem) é aplicada a transfers entre VASPs (fornecedores de serviços de ativos virtuais).

Deve-se exigir transparência das reservas de stablecoins e auditorias regulares. Sanções, listas negras e sanções secundárias devem ser impostas a atores facilitadores de crimes. É necessária a capacitação de órgãos de fiscalização e tribunais para interpretar provas on-chain.

Participar ou facilitar a lavagem de dinheiro sujo acarreta penas criminais, multas elevadas, apreensão de bens e risco reputacional severo. Intermediários sem controles adequados perdem licenças e clientes. Essas são as consequências legais tão necessárias de serem impostas sobre o crime organizado em escala global.


*Fernando Nogueira da Costa é Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus  livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com

Foto de capa: Jim Lo Scalzo/EPA/Bloomberg

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