Trump e Netanyahu: a paz que veste terno, mas carrega fuzis

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Ironia Global - Imagem  gerada por IA ChatGPT

Por CASTIGAT RIDENS*

Entre aplausos e trincheiras

Donald Trump e Benjamin Netanyahu encenaram em Washington um “plano de paz” para Gaza. É uma peça em 20 pontos que exige a capitulação do Hamas — e, de quebra, mantém Israel com prerrogativas de segurança sobre o enclave. Ou seja: paz com porteira trancada por quem já manda no curral.

O detalhe incômodo — e talvez o mais revelador — é que esse plano de paz não prevê a saída de Israel da Faixa de Gaza. Uma paz com ocupação, como se fosse possível harmonizar silêncio de bombas com barulho de correntes.

O plano em 20 pontos — e muitas vírgulas

O roteiro promete cessar-fogo imediato se “ambos os lados” aceitarem; devolução de reféns em até 72 horas; libertação de 250 presos com pena de perpétua e ~1.700 detidos pós-outubro/2023; criação de um comitê tecnocrático palestino tutelado por um “Board of Peace” presidido por Trump, com Tony Blair na roda; e uma força internacional de estabilização. Nada de anexação formal, diz o texto. Mas Israel preserva “direitos de segurança” e o Hamas é riscado de qualquer governo. Se não toparem? “Israel termina o serviço.”

O que o documento também revela pelo silêncio: em nenhum ponto há menção ao reconhecimento do Estado Palestino. A paz é apresentada como trégua técnica, não como solução política duradoura. O direito histórico à autodeterminação permanece ausente, como se fosse detalhe dispensável.

No papel, parece o esqueleto de um acordo razoável. Mas, entre as linhas, esconde-se o que o Guardian chamou de “paz sob chantagem”: se o Hamas não aceitar, Israel continua a ofensiva com pleno respaldo americano. Não é exatamente um convite à negociação — é um ultimato.

O ponto cego: retirada real de Israel

A retirada é “escalonada” e condicionada; o controle de fronteiras e o veto securitário seguem com Israel — um arranjo que soa mais tutela do que soberania. É o tipo de cláusula que pinta trégua, mas escreve ocupação com tinta invisível.

O silêncio forçado e a tutela disfarçada

A proposta retira qualquer papel político real dos palestinos. Hamas é expurgado, a Autoridade Palestina não é parte da negociação, e os próprios moradores de Gaza acabam reduzidos à condição de administrados por tecnocratas escolhidos fora de suas fronteiras.

Para completar a ironia, Tony Blair — cuja passagem pelo Iraque não é exatamente lembrada como exemplo de reconstrução — é cogitado para a transição de Gaza. É como convidar o piromaníaco para gerir o corpo de bombeiros.

Como a imprensa crítica lê o anúncio

The Guardian: “rascunho no verso do envelope” — e ultimato

O Guardian descreve a proposta como um rascunho que até pode funcionar, mas com lacunas “do tamanho de Gaza”: exclusão do Hamas da política, detalhes operacionais nebulosos e o velho ultimato — aceite ou encare a força. Também relembra a fantasia anterior de Trump de transformar Gaza numa “Riviera”, ideia associada a expulsões.

Le Monde: crítica à engenharia social e ao verniz “humanitário”

O Le Monde registra o otimismo performático de Trump e o endosso de Netanyahu, mas frisa que se trata de um roteiro de controle: cessar-fogo, retirada faseada, desarmamento do Hamas e tutela de governança. Lê-se ali o risco de um pós-guerra gerido de fora para dentro — com promessas de não-anexação e “caminho” a um Estado palestino ainda condicionado.

Libération: o que aparece (e o que ainda não apareceu)

Até o momento, não há editorial de fôlego facilmente acessível do Libération sobre a versão final apresentada hoje. Na imprensa progressista francófona correlata, porém, repete-se a leitura de colonialismo suavizado: exclusão do Hamas, tutela tecnocrática e força internacional administrando um território sem voz própria.

L’Humanité: “plano de limpeza étnica”

No campo mais à esquerda, o L’Humanité foi direto ao fígado — em posts e chamadas que rotulam a agenda de Trump para Gaza como “nettoyage ethnique” (limpeza étnica), ecoando a suspeita de que a reconstrução seja fachada para consolidação demográfica e controle permanente.

The New York Times: cautela e interrogações práticas

O NYT publicou cobertura noticiosa destacando o impasse central — Israel diz “sim”, Hamas ainda não recebeu/aceitou; e a execução depende de detalhes que não estão no papel (governança, segurança, fluxo de ajuda).

O ângulo brasileiro

A cobertura “grande público” no Brasil tende ao descritivo: CNN Brasil lista as exigências, aponta anistia a militantes que se renderem e uma retirada “gradual”. Já CartaCapital e Opera Mundi soam mais céticas, destacando o papel de Trump como supervisor e a pressão sobre Gaza.

No plano político, o Itamaraty havia defendido retirada completa e condenou a deterioração humanitária; Lula chamou de “sem sentido” a ideia de “tomar conta” de Gaza. É o contraponto latino a uma paz roteirizada em Washington.

Diagnóstico: paz de papel, guerra de pedra

O plano preserva o desequilíbrio: exige desarmamento e rendição política do Hamas; promete reconstrução por “especialistas” externos; confere a Trump o papel de síndico da paz — ironia global digna de tragicomédia; e evita qualquer menção a um Estado Palestino. Se der errado, volta-se à força. Quando a soberania vira nota de rodapé, o cessar-fogo vira intervalo comercial.

Íntegra do plano (versão divulgada hoje)

Observação: o link reproduz o documento oficial da Casa Branca na íntegra.

A seguir, os 20 pontos do plano divulgado por Trump e Netanyahu, conforme traduzido pela rede Al Jazeera:

  1. Gaza será zona desradicalizada, sem ameaça aos vizinhos.
  2. Gaza será reconstruída para benefício da população local.
  3. Cessar-fogo imediato se ambas as partes aceitarem os termos.
  4. Devolução de todos os reféns vivos e mortos em até 72 horas.
  5. Libertação de 250 presos palestinos com pena perpétua e 1.700 detidos após 7/10/2023.
  6. Troca simbólica de restos mortais: 15 palestinos por cada refém morto.
  7. Anistia a membros do Hamas que depuserem armas.
  8. Entrada irrestrita de ajuda humanitária via ONU e Cruz Vermelha.
  9. Reabertura da fronteira de Rafah com fluxo bidirecional.
  10. Governança provisória por comitê tecnocrático palestino.
  11. Supervisão do processo por conselho presidido por Trump.
  12. Criação de plano de financiamento e reabilitação com atores internacionais.
  13. Reassunção da Autoridade Palestina condicionada a reformas.
  14. Destruição de toda infraestrutura militar em Gaza.
  15. Reconstrução de hospitais, água, energia, esgoto e remoção de escombros.
  16. Supervisão internacional da reconstrução.
  17. Estabelecimento de zona econômica especial.
  18. Nenhuma expulsão forçada; direito de retorno garantido.
  19. Criação de força internacional de estabilização.
  20. Reestruturação futura da Autoridade Palestina.

*‘Castigat Ridens’ é um pseudônimo criado a partir da expressão latina ‘Castigat ridendo mores’, que significa ‘corrige os costumes rindo’ ou ‘critica a sociedade pelo riso’, muito usada no contexto da comédia como instrumento de crítica social.

Ilustração: Ironia Global em Tragédia Disfarçada de Paz – Imagem gerada por IA ChatGPT


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