Por LÉA MARIA AARÃO REIS*
Com todas as atenções e tensões da população brasileira, nestes últimos dias, vindas dos anúncios de iniciativas até aqui inimagináveis, dos ataques comerciais e políticos ao Brasil por parte do governo estadunidense atual, o lançamento no streaming e nos cinemas de Apocalipse nos Trópicos reforça o argumento do documentário da diretora mineira de Belo Horizonte, Petra Costa. Ou seja: a continuidade e a persistência, durante as últimas cinco décadas, das tentativas de desfigurar a democracia no Brasil e de submeter o país através de uma geopolítica religiosa de massa com origem nos EUA.
O roteiro de Apocalipse nos Trópicos nos aponta, de forma didática, embora usando símbolos religiosos, a sequência dessa incansável história de ocupação política-religiosa de um país, impulsionada a partir dos anos 70, com a grande convocação evangélica formal iniciada em 1974.
O ponto de partida ocorreu durante os dias 2 e 6 de outubro de 74, em um Maracanã superlotado, no Rio de Janeiro, quando o apelidado ‘’pastor da Casa Branca’’ Billy Graham, enviado pelo deus de plantão em Washington, chegou ao Brasil para pregar fé, mercado, prosperidade financeira e submissão incontestável à autoridade, iniciando a tarefa de converter milhares de eleitores brasileiros em evangélicos/pentecostais. Sua pregação caiu como uma luva sobre uma população carente e uma burguesia fascinada com a cultura do hot dog, da coca-cola, dos filmes de Hollywood, e aterrorizada com o fantasma do comunismo. Além de ainda esmorecida frente ao avanço da Teologia da Libertação dos católicos progressistas.
Era o espírito semelhante ao que baixava na mesma época na África, no Sudão por exemplo, onde o noticiário internacional mostrava uma entusiasmada catequista norteamericana falando da semelhança do clima local com o do ‘’nosso Texas”, enquanto tentava vestir os garotos africanos com jeans, meias e tênis.
O documentário Apocalipse nos Trópicos rastreia essa trajetória política-religiosa no Brasil dividido em capítulos (ou atos) ao modo de uma representação teatral. No primeiro, O Influenciador. Nele, o pastor Silas Malafaia é retratado junto ao deputado Sóstenes Cavalcante apresentado como o líder da bancada evangélica. Dirige seu carro, fala mal dos motoqueiros, esbraveja, procura afirmar sua força bruta. Malafaia opera como um “coronel espiritual”.
No segundo ato, Deus nos Tempos do Cólera, há cenas de orações no Palácio negacionista do Planalto, durante a pandemia, quando pastores evangélicos vendiam produtos ‘’abençoados“ e discorriam com desenvoltura sobre teorias negacionistas.
No terceiro ato, Domínio (ou Teoria do Domínio), Malafaia retorna ao filme pedindo votos sem constrangimento. Bolsonaro, que já aparecera lá atrás, se reapresenta com vigor prometendo nomear um ministro ‘’ terrivelmente evangélico’’ ao STF. Promessa cumprida não só uma, mas duas vezes.
O quarto ato, Gênesis, introduz a prisão de Lula, sua libertação, Malafaia novamente, Alexandre de Moraes discursando sobre liberdade de expressão. E no quinto ato, Terra Santa, Lula compara a retórica evangélica com a católica e a sindical.
No encerramento, uma senhora fervorosa diz que votou em Bolsonaro por orientação do evangelho, os fiéis choram pela derrota do “escolhido de Deus”, e em Revelação, mais do período pós-eleição imediato com as imagens do 08 de janeiro e da histeria golpista.
O doc conclui com a tentativa de abertura, por parte do movimento evangélico, de traçar o caminho para Bolsonaro continuar ocupando a presidência. Comprova ser perigoso instrumento para a constituição de uma teocracia nacional.
Apocalipse nos Trópicos, da mesma diretora de Democracia e Vertigem**, de 2020, este um dos cinco indicados ao Oscar de Melhor Documentário naquele ano, não traz o mesmo brilho do filme que foi sucesso de público e de crítica cinco anos atrás, quando os jornalistas de Nova Iorque comentavam que ‘’ o filme de Petra Costa deve ser estudado por todas as pessoas interessadas no destino da democracia, no Brasil ou em qualquer outro lugar’’.
A montagem não mantém um ritmo constante envolvendo a narrativa com permanente suspense. As menções apocalípticas, por vezes não se coadunam às realidades dos documentos noticiosos da época; a sofisticação é demasiada. Outras sequências beiram a monotonia.
A trilha sonora/musical do compositor Rodrigo Leão é boa embora não tão precisa quanto a de Vitor Araujo, do filme de 2020, essa, fascinante com seus inícios de réquiens, resquícios de valsas de Villa Lobos, e Baden Powell, todos utilizados com grande talento.
Há quem se ressinta da presença onipresente de Malafaia na primeira metade de Apocalypse in the Tropics (título em inglês) e há quem sinta falta de toques em personagens políticos secundários, manipuladores de redes sociais e por isso nem tão desimportantes assim, e que galvanizavam, no apocalipse incubado do período imediato de pré e pós-eleição do presidente Lula, eleitores controlados pelas diatribes de Nikolas Ferreira, de Feliciano, de Moro, de parças e comparsas.
Apesar dos senões de Apocalipse nos Trópicos, um apocalipse longe de se consumar, o filme de uma hora e 50 minutos, repetimos, é didático. Necessário especialmente para as gerações de jovens e adolescentes que não devem ignorar o trajeto das pressões políticas de Washington sobre Brasília, desde Billy Graham no Maraca, até o surgimento da figura pública do ex-presidente.
O alerta do doc continua sendo o mesmo que está no final de Democracia em Vertigem, em off, na voz de Petra Costa: “Vamos precisar começar tudo de novo.” Agora, procurando afirmar de vez a nossa soberania democrática.
Léa Maria Aarão Reis é jornalista.
lustração de capa: Divulgação





Respostas de 3
Excelente texto crítico, como são os assinados por Léa Maria Aarão Reis.
Grato pela reflexão esclarecedora!
Sempre com pontos nos ‘ i ‘!