Por EUGÊNIO BORTOLON*
ereadores instalam Frente Parlamentar Municipal Memória, Verdade e Justiça. Solenidade foi realizada no ‘Dopinho’, local de torturas, interregatórios e mortes durante a ditadura militar.
O mandato do vereador Pedro Ruas (PSol) instalou sábado (11) a Frente Parlamentar Municipal Memória, Verdade e Justiça. A solenidade foi realizada na rua Santo Antônio, 600, local conhecido como Dopinho, uma sucursal do inferno dos tempos da ditadura militar (1964-1985). Ali aconteceu de tudo: tortura, morte, interrogatórios, sequestros de presos políticos do Cone Sul. A proposta foi aprovada no início do ano legislativo e agora colocada em ação.
A intenção é fazer um raio-x dos crimes executados pela ditadura. Até hoje a história do regime não foi totalmente colocada em pratos limpos. Ainda há muitas nuvens atrapalhando os caminhos para o esclarecimento de desaparecimentos, mortes, busca de locais onde foram enterrados adversários dos militares. Também há muita gente buscando reconhecimento e reparações do sofrimento, prisões, ameaças, perdas de emprego, cargos públicos e até mesmo tortura e sumiço de familiares que foram presos e ainda não se tem notícias deles, nem os seus túmulos.
Ruas leu a placa colada no chão da calçada em frente ao número 600 da Santo Antônio, na qual consta o currículo do sobrado que fica entre os bairros Independência e Bom Fim. “O nosso ato aqui é muito significativo, pois esse casarão foi o primeiro centro clandestino do Cone Sul. Aqui, funcionou a estrutura paramilitar para a sequestro interrogatório tortura e extermínio de pessoas presas pelo regime militar de 64. Aqui o major Luiz Carlos Mena Barreto liderou um grupo de 28 militares e de policiais civis do DOPS que cometeram atrocidades de 1964 até 1966, quando o corpo do sargento Manuel Raimundo Soares apareceu boiando nas águas do rio Jacuí, morto, com as mãos amarradas”, informou a assessoria de imprensa do vereador.
Dezenas de pessoas participaram da solenidade, a maioria ligada a instituições e entidades que atuam na área dos direitos humanos, políticos, lideranças do magistério, religiosos e jornalistas. Coube ao presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, Jair Krischke, o primeiro a se manifestar depois de Ruas, em nome dos seguidores dos direitos humanos, sobre a alegria pela instalação da Frente.
Também se manifestaram o coordenador da Comissão dos Direitos Humanos Sobral Pinto da OAB-RS, Roque Reckziegel, destacou que a atuação da Frente vai contribuir para fazer justiça aqueles que tombaram na ditadura. A deputada estadual Sofia Cavedon (PT) enfatizou a necessidade de serem encontradas formas capazes de concretizar a compra do sobrado, ainda neste ano para que o local seja transformado em museu. Walmaro Paz, da Associação Riograndense de Imprensa (ARI) e do Brasil de Fato, parabenizou a criação e instalação da Frente, da mesma forma que lembrou sua trajetória profissional, prejudicada pela censura permanente nas redações, durante muitos anos.
Raul Carrion, representando o PcdoB, destacou que é imprescindível avançar nas lutas pela criação de espaços de Memória, onde será possível promover a justiça, mediante a busca da verdade. Lembrou que em todo o Brasil estão sendo promovidos movimentos nesse sentido, e que é necessário se inspirar e apoiar. Lembrou que no Marabá a luta é pela desapropriação da Casa Azul, onde foram assassinados integrantes da guerrilha do Araguaia e moradores locais.
Também se manifestaram o presidente da Associação dos ex-presos e perseguidos políticos, Sérgio Bittencourt, lembrando que além do Sargento Raimundo, estiveram presos no Dopinho Carlos Heitor Azevedo e o jornalista Cói Almeida, que foi chefe da Assessoria de Imprensa da Câmara Municipal de Porto Alegre, onde faleceu em horário de trabalho. Marta Hass, do Grupo Oi Nóis Aqui Outra Veiz; a pastora Metodista Mara Freitas (cuja família foi perseguida de forma cruel e sistemática em Santa Maria), Jacqueline Custódio, representando do Instituto Sigmund Freud (SIG) e Irmão Miguel Orlandi, presidente da Avesol.
Estiveram presentes, ainda, Edilson Nabarro, do Movimento Negro Unificado e jornal O Tição; Mirian Burguer, do o Coletivo Testemunho e Ação/SIG; os jornalistas Ayres Cerutti, ARI e Afonso Licks do MJDH; professora Jacqueline Junker, diretora da Escola Porto Alegre, Ricardo Haesbaert, do movimento Palestina Livre, entre outros.
Movimento
A Conferência Livre de Direitos Humanos Ditadura Nunca Mais, constituída por 27 entidades e associações da sociedade civil gaúcha, está realizando movimento em todos os meios possíveis para a preservação da memória e da justiça em Porto Alegre.
O principal foco é o imóvel conhecido como Dopinho, teve o local violado algumas vezes. Uma das últimas foi cimentar a placa que ali estava denunciando o local. A placa foi reposta por decisão do Ministério Público do RS em 2021. Hoje, a casa ainda está à venda.
A ideia para o local é transformar o imóvel em Centro de Memória para servir de exemplo para as gerações futuras do que nunca deveria acontecer e para que ninguém esqueça o que ali se passou, 60 anos depois. É um gesto de grande importância para a democracia e os direitos humanos, segundo carta divulgada pelo grupo.
O casarão da rua Santo Antônio, 600, teve a sua existência revelada em 1966 com a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, durante as investigações do “Caso das Mãos Amarradas”, referente ao sargento Manoel Raymundo Soares, encontrado morto na confluência das águas do rio Jacuí e do Guaíba. O Dopinho foi identificado, nessa investigação, como local de graves violações de direitos humanos. Havia sangue nas paredes, restos de materiais de tortura e roupas abandonadas.
O “Caso Ênio” também revela sua existência: Ênio de Oliveira, médico, declarou em entrevista ao jornalista José Mitchell (já falecido), na década de 1980, ter trabalhado no local separando fichas de alvos da ditadura. Já nos anos 2000, a solicitação de aposentadoria do delegado da Polícia Civil de Porto Alegre, José Luiz Carvalho Savi, trouxe à tona o chamado “Caso Savi”, ao reconhecer como “tempo de serviço” sua atuação como informante da Polícia.
Por fim, segundo a Comissão Nacional da Verdade (CNV) os testemunhos de Gilda Marinho e de Carlos Heitor Azevedo corroboram a existência do local como centro clandestino de violações da dignidade humana, conforme relata a Conferência Livre dos Direitos Humanos.
Propriedade particular
A violência brutal era o tom habitual da casa. De propriedade particular, o imóvel teve seu acesso restringido após estudos aprofundados, mas documentos, depoimentos e análises arquitetônicas revelaram o modus operandi da repressão e as marcas deixadas pela ditadura. Muita gente passou por ali como preso político ou como funcionário do Departamento de Ordem Política e Social (Dops).
Marco da repressão, o local representa também um símbolo da luta pela verdade e pela justiça, inclusive para toda a América Latina, já que Porto Alegre foi ponto de encontro das ditaduras do Cone Sul – Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile. A preservação deste local enfrenta o negacionismo e o revisionismo histórico, possibilitando maior consciência crítica sobre o passado, um símbolo para as vítimas e familiares e atua na prevenção de novas violações.
No Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), mais precisamente no capítulo 15, foram identificados, em âmbito nacional, 230 espaços associados a graves violações de direitos humanos. O Rio Grande do Sul aparece com 39 locais reconhecidos (18 em Porto Alegre), sendo o estado com maior número no documento. Entre eles, o Dopinho.
Não é o primeiro movimento para ali instalar um museu da memória. Antes, em 2013, o agora vereador Pedro Ruas (PSol) fez todas as tratativas com o então prefeito José Fortunati e o ex-governador Tarso Genro para transformar a casa em um memorial. Nenhum deles cumpriu as promessas de desapropriação para transformar o local. Enfrentaram dificuldades. Integrantes do PSol (Pedro Ruas, Roberto Robaina, Fernanda Melchionna e Luciana Genro) promoveram no dia 18 de novembro de 2013 uma visita pública ao local para defender a sua manutenção.
Na atual iniciativa de diversas entidades e da sociedade civil as chances de dar certo são boas. “Ela nasce da imperiosa necessidade de resgatar e preservar a verdade histórica, ciente de que política pública não se limita à esfera governamental, separada do social, contudo depende de ações do Estado que a garantam.” Diante do atual cenário turbulento da política brasileira e gaúcha, porém, existe a certeza de que talvez demore um pouco mais do que as organizações esperam.
A carta conclama a união de todos gaúchos nesta empreitada de transformar a casa em um lugar de valorização da cultura dos direitos humanos. “Propomos que a esfera estatal possibilite a solução definitiva deste processo, que até agora só fez repetir a negação de uma marca de memória que já existe neste local”, informa a carta.
Havia tempos atrás na área inscrições em seus muros: “A memória, a verdade e a justiça exigem coragem”; “Ainda estamos aqui”; “Não à anistia”; e a mais recente, “O que é um pouco de tinta para paredes manchadas de sangue”, já retiradas pelos proprietários. O muro tem pintura nova. “As inscrições atestavam que não conseguimos esquecer aquilo que não nos permitem recordar. Estamos abertos ao diálogo, à colaboração e à articulação com todas as esferas da sociedade que compartilham deste ideal”, garantem os idealizadores.
Integrantes do grupo
- APPOA – Associação Psicanalítica de Porto Alegre
- Associação de Conservadores e Restauradores de Bens Culturais do RS – ACOR-RS
- Associação de Mães e Pais Pela Democracia
- Associação dos Amigos da Terreira da Tribo
- Associação dos Arquivistas do Estado do Rio Grande do Sul – AARS
- Associação de Ex-Presos e Perseguidos Políticos- AEPPP-RS
- Atua Poa Todxs Nós
- Casa Diógenes
- Centro Acadêmico da Faculdade de Arquitetura PUCRS (CAFA/PUCRS)
- Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos
- Comitê Carlos de Ré
- Coletivo Testemunho e Ação
- Comissão da Verdade da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS
- Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus – ICOM Brasil
- Comitê Popular Esperançar
- Conselho Internacional de Monumentos e Sítios/Brasil – ICOMOS Brasil
- Diretório Acadêmico da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo UFGRS (DAFA/UFRGS)
- Federação Nacional de Estudantes de Arquitetura e Urbanismo do Brasil – FeNEA
- Instituto APPOA – Clínica, Intervenção e Pesquisa em Psicanálise
- Instituto democracia e Cidadania – Passo Fundo
- Instituto Psicanalítico de Passo Fundo
- Instituto Sig – Psicanálise & Política
- Movimento de Justiça e Direitos Humanos – MJDH
- Museu das Memórias (In) Possíveis do Instituto APPOA
- Núcleo de Pesquisa sobre Políticas de Memória – NUPPOME-UFPEL
- PCdoB Passo Fundo/RS
- Sigmund Freud Associação Psicanalítica








*Eugênio Bortolon é Jornalista.
Fotos e foto de capa: Dopinho na Santo Antônio, 600. | Eugenio Bortolon




