Por BENEDITO TADEU CÉSAR*
Ao reconhecer o racismo estrutural e declarar a inconstitucionalidade do marco temporal das terras indígenas, o Supremo Tribunal Federal (STF) enfrentou, em decisões recentes, duas feridas centrais da formação da sociedade brasileira. Os julgamentos dialogam diretamente com o esbulho das terras indígenas, o extermínio e a submissão de povos originários, e a escravização de milhões de pessoas negras, seguida da completa ausência de reparação institucional após a abolição.
No entanto, apesar do peso histórico das decisões, as reações dos movimentos sociais que protagonizaram essas ações revelam avanços acompanhados de frustrações profundas. Tanto a Coalizão Negra por Direitos quanto lideranças indígenas apontam limites e contradições nas posições adotadas pela Corte.
Terras indígenas e a violência fundadora do Estado brasileiro
Ao rejeitar a tese do marco temporal, o STF reafirmou que os direitos territoriais dos povos indígenas são originários, anteriores à própria formação do Estado brasileiro. A Corte afastou a ideia de que apenas terras ocupadas em 5 de outubro de 1988 poderiam ser reconhecidas, entendimento que ignora séculos de expulsões forçadas, massacres, remoções e confinamentos promovidos pelo Estado e por interesses privados.
A decisão foi celebrada como vitória histórica, mas recebeu críticas contundentes de lideranças indígenas. Para a coordenadora da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, Txai Suruí, o julgamento, embora derrube formalmente o marco temporal, mantém dispositivos centrais da Lei 14.701/2023, o que pode produzir, na prática, efeitos semelhantes aos da tese rejeitada.
Segundo Txai, ao validar trechos da lei, o STF teria institucionalizado o desterro, abrindo caminho para que o Estado ofereça terras alternativas em substituição aos territórios tradicionais, sagrados e ancestrais. Para ela, isso transforma o direito originário em moeda de barganha, tratando a relação espiritual, cultural e vital dos povos indígenas com a terra como algo compensável financeiramente.
A lei também prevê mecanismos como a chamada “desapropriação por interesse social”, que, na avaliação de lideranças indígenas, desloca a terra do campo do direito imprescritível para o da conveniência estatal — frequentemente alinhada aos interesses do agronegócio, da mineração e da especulação fundiária. Outro ponto duramente criticado é a criminalização das retomadas indígenas, que pode legitimar repressão policial contra comunidades que resistem à invasão de seus territórios.
Racismo estrutural reconhecido, mas com limites
No julgamento da ADPF 973, o STF reconheceu, por unanimidade, a existência do racismo estrutural no Brasil, afirmando que ele não se resume a atitudes individuais, mas está enraizado nas estruturas sociais e institucionais. A Corte apontou impactos desproporcionais sobre a população negra em áreas como segurança pública, saúde, educação, renda e acesso à Justiça, fruto de omissões históricas do Estado.
A decisão determinou a elaboração de um plano nacional de enfrentamento ao racismo estrutural, com metas, prazos, monitoramento, protocolos institucionais e fortalecimento de políticas afirmativas, incluindo ações voltadas à ampliação do acesso à educação pública de qualidade.
Ainda assim, a Coalizão Negra por Direitos, articuladora da ação, recebeu o resultado com ressalvas. Em nota pública, a organização apontou uma contradição histórica do STF: admitir o racismo estrutural como base da sociedade brasileira, mas negar o reconhecimento formal do racismo institucional e do chamado “estado de coisas inconstitucional”.
Para a Coalizão, sem essas categorias jurídicas, o Estado deixa de ser claramente responsabilizado pelas violações sistemáticas de direitos da população negra. O entendimento do STF, segundo o movimento, reconhece o problema, mas limita sua força jurídica, ao não assumir que as instituições públicas produzem e reproduzem o racismo de forma contínua e estrutural.
Ações compensatórias e disputas em aberto
Nos dois casos, o STF afirma que ações compensatórias não são concessões, mas deveres constitucionais diante de desigualdades produzidas por séculos de violência institucionalizada. Ainda assim, as críticas indicam que o alcance real dessas decisões dependerá da forma como serão implementadas — e das brechas jurídicas deixadas pelo próprio Tribunal.
No campo indígena, lideranças alertam que a combinação entre decisão judicial e legislação aprovada pelo Congresso pode agravar conflitos territoriais, empurrando comunidades para o confronto direto. No campo racial, o movimento negro aponta o risco de que o reconhecimento do racismo estrutural fique restrito ao plano discursivo, sem mecanismos robustos de responsabilização do Estado.
Preconceito enraizado e responsabilidade adiada
As decisões expõem uma realidade incômoda: o Brasil construiu sua ordem social sobre um preconceito racial e social profundamente enraizado, naturalizado nas estruturas de poder e expresso na negação sistemática de direitos como terra, educação, saúde, moradia e acesso à Justiça.
Ao tocar nessas duas feridas abertas da formação nacional, o STF dá um passo relevante, mas não encerra o conflito histórico. Como apontam movimentos sociais e lideranças indígenas, reconhecer sem transformar pode significar adiar novamente a reparação.
O recado que emerge é claro: sem enfrentamento efetivo das desigualdades históricas, não há democracia plena, nem Constituição verdadeiramente cumprida. desigualdades históricas não há democracia plena, nem Constituição efetivamente cumprida.
Benedito Tadeu César é cientista político e professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em democracia, poder e soberania, integra a Coordenação do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito e é diretor da RED.
Ilustração da capa: Imagem gerada por IA ChatGPT




