Só Nixon causou como eu causei. Só Nixon quis o mal como eu quis

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Por CARLOS ÁGUEDO PAIVA*

1. Introdução: J.D.Vance: católico, conservador, ricardiano e leninista

Em seu discurso no American Dynamism Summit (18 de março de 2025, Washington D.C.) J. D. Vance deu uma verdadeira aula sobre os desdobramentos inesperados e indesejáveis (do ponto de vista dos EUA) do processo de globalização produtiva, exponenciado a partir do último quartel do século XX. Sua tese central é a de que este processo havia sido pensado como a criação de uma nova divisão internacional do trabalho, onde a periferia passaria a produzir bens de baixo valor agregado, intensivos em trabalho mal remunerado e de baixa qualificação, enquanto o centro continuaria produzindo bens e serviços de alto valor agregado, intensivos em capital e tecnologia e baseados na ampla contratação de trabalhadores de alta qualificação e de alta remuneração. Mas não foi isso que ocorreu. Na verdade, os países periféricos acabaram por extrapolar as “funções” que lhes caberiam na programação do “Ocidente culto e iluminista”. E resolveram produzir bens de capital e ingressar nos setores de ponta da quarta grande revolução tecnológica.

Para quem ainda acredita que os EUA são a maior economia do mundo, vale muito a pena acompanhar todo o discurso de Vance. Já no minuto 5, Vance dá o exemplo da indústria da construção naval. Segundo ele, durante a Segunda Guerra mundial, os EUA produziam três navios a cada dois. Hoje, os EUA produzem apenas 5 navios mercantes por ano e é responsável por 0,1% da produção mundial. Por oposição, a China é responsável por mais de 50% da produção mundial de novas embarcações. Na verdade – frisa Vance – a China produz, a cada ano, mais navios do que os EUA produziram desde o fim da Segunda Guerra até os dias de hoje.

Por que esse tema é tão importante? Porque – como Vance aponta logo na sequência – ele tem imbricações óbvias com o potencial bélico de cada país. Apesar da indústria naval para fins militares ainda ser expressiva nos EUA, seu desenvolvimento é indissociável da produção naval para fins civis. Mais: a segurança-soberania bélica e produtiva nacional não está baseada apenas na “indústria naval”; mas na indústria em geral e no senso de “pertencimento”, na identidade nacional, no patriotismo, daquela parcela da população que, um dia foi “a cara dos EUA”: o pequeno agricultor, o operário, o pequeno comerciante, vale dizer, o trabalhador que, apesar de não contar com nível superior, era bem remunerado.

Mas o que me parece mais surpreendente no discurso de Vance é a derivação geral que ele extrai desse processo. Segundo ele, a externalização das empresas industriais em geral (e, de forma especial, das intensivas em trabalho) gerou um desemprego estrutural nos EUA, mascarado pelo desalento, pela desistência de muitos em procurar trabalho. Para piorar o quadro, apesar do desemprego daquela parcela da população norte-americana que foi diretamente impactada pela desindustrialização, o fluxo migratório de trabalhadores desqualificados oriundos de países subdesenvolvido foi mantido. O resultado, segundo Vance, foi a queda da taxa de salário nas atividades intensivas em trabalho. O que gerou um novo desdobramento perverso: a estagnação da produtividade do trabalho e da introdução de inovações produtivas poupadoras de mão de obra.

Não é preciso pactuar das posições políticas de Vance para admitir que seu discurso é articulado e está muito longe de ser inconsistente. Em 30 minutos de exposição, Vance apresentou a Teoria do Imperialismo de Lênin (a exportação de capitais está baseada na busca de salários baixos, mas levará à industrialização da periferia) e anunciou o princípio ricardiano da inovação tecnológica (a inovação é impulsionada pela carência de mão de obra e salários nominais elevados). Pode-se dizer o que for de Trump e seus asseclas. Toscos, grosseiros, populistas, direitistas, conservadores, autoritários, retrógrados, fascistas etc.  Mas quem os chamar de “burros” estará confundindo desejo com realidade. E o Ministério da Política alerta: wishful thinking pode causar danos irreversíveis à capacidade de raciocínio.  

2. Você diz a verdade, e a verdade é o seu dom de iludir(Alerta: a sessão abaixo contém ironia!)

Desde a posse de Trump para seu segundo mandato que o mundo vem sendo bombardeado pela deselegância dos novos gestores do Império. A mídia e a intelectualidade centrista e de centro-esquerda do mundo todo está atônita com as toneladas de sincericídios que é obrigada a engolir diariamente. E chora de saudades do primeiro presidente negro dos EUA que – com muito charme, um sorriso nos lábios e uma medalha de Nobel da Paz – manteve seu país em guerra durante os 2922 dias de seu mandato (com a Líbia, a Síria, o Afeganistão, o Iêmen e o Sudão, dentre outros), promoveu revoluções laranjas mundo afora, apoiou a Lava-Jato e o impeachment de Dilma, e perseguiu Assange, Snowden e tantas outras figuras que vieram a se mostrar inimigas da democracia e dos nobres valores cristãos e iluministas do Grande Império e de seus aliados (União Europeia, Japão, Coreia, Canadá, Austrália e Nova Zelândia). Mais: o mundo culto e iluminista chora de saudades de Biden, o bom velhinho que, com apoio dos Verdes, dos Trabalhistas e dos Social-democratas europeus, tentou incorporar a Ucrânia à OTAN e colocar mísseis atômicos a poucos kms de Moscou e São Petersburgo. E chora pelas derrotas (nos EUA, na Alemanha, na Itália, na França, etc.) das lideranças democráticas que tiveram a elegância e a finesse de fechar os olhos para o Genocídio em Gaza por uma questão de princípios. Como muito bem pontuou Kamala Harris em diversos discursos de campanha: – Não nos cabe dizer a Israel como ele deve reagir ao terrorismo do Hamas! … O respeito das potências ocidentais à autonomia das nações e de seus governos é enternecedor! A democracia é tudibão.

É bem verdade que há alguns (felizmente poucos!) esquerdopatas que ousam críticar a luta dos EUA e de seus aliados ocidentais pela construção de uma ordem mundial baseada em (suas) regras. Segundo esses (cada vez mais raros) críticos, haveria intere$$e$$ econômicos por trás da (pretensa) defesa da democracia. … Vá que seja. Sabe-se lá. Mas há algo que nenhum esquerdopata teria a ousadia de negar: que, até o advento de Trump, os líderes ocidentais defendiam suas regras e projetos de ordenamento mundial com classe, elegância e meias palavras. Ninguém defendia bombardeios, golpes de Estado, genocídios e intervenções em países estrangeiros. Pelo menos, não em público!

E nem poderia ser diferente. A finesse é democrática por excelência. A família Roosevelt (dos ex-presidentes Theodore e Franklin Delano) aportou na América no início do século XVII. E os Fitzgerald Kennedy (apesar de irlandeses e católicos! Shame on them!) nasceram e vicejaram na Nova Inglaterra. E viraram “gente fina” rapidamente. E gente fina entende de diplomacia. Diplomacia é tudibão!

Por oposição, os líderes republicanos são, usualmente, de baixa extração social. Ike Eisenhower era o terceiro filho (dentre outros sete) de uma família de texanos testemunhas de Jeová, e entrou para o Exército para “comer melhor”. Ronald Reagan foi salva-vidas por quase uma década. Até virar um ator de segunda categoria em Hollywood.

Mas nada se compara a Trump e sua equipe. Eles são os mais barraqueiros, varzeanos, vileiros e toscos. Aqueles que não vieram de famílias muito pobres (como Vance), não passam de novos ricos (como Trump), e não sabem se comportar em salões iluministas. A fala de Vance na Conferência sobre Segurança Europeia em Munique foi grotesca. Ele chegou a protestar contra a decisão da Suprema Corte romena de anular o primeiro turno das eleições presidenciais em função da provável vitória do candidato Calin Georgescu, que defendia o não-alinhamento do país na guerra dos EUA (via Ucrânia) com a Rússia. Sua fala foi tão deselegante que fez Cristoph Heusgen – que presidia os trabalhos da Conferência de “““PAZ””” – chorar ao vivo e em cores no encerramento do evento.

Pior do que isso, só a virulência de Vance contra Zelensky na reunião do Salão Oval da Casa Branca. Trump e Vance defendiam a necessidade de um cessar fogo na Ucrânia. Zelensky contra-argumentava que todas as tentativas e acordos de paz com a Rússia tinham sido recusadas por Putin. Vance ousou pretender que a questão não era tão simples e que: 1) a quebra de acordos havia sido (pelo menos) recíproca; 2) a Ucrânia já havia perdido a guerra; e 3) a circunscrição de novos soldados para a frente de batalha na Ucrânia vinha se dando através da violência e sequestro de homens adultos nas ruas.

Por favor, pipol! Todos nós sabemos disso! Mas são verdades que não podem ser ditas em reuniões televisionadas! Pliss! A diplomacia é o espaço da falsidade e dos bons modos! ….

Contudo, a maior “chinelagem” dos novos dirigentes norte-americanos não ocorreu, nem em Munique, nem no Salão Oval. Ela se deu nos jardins da Casa Branca, no dia 2 de abril de 2025, quando Trump anunciou as novas tarifas que os EUA estão impondo a todos os países do mundo com vistas a deprimir o déficit comercial norte-americano. No dia mesmo do anúncio das novas tarifas, as redes sociais foram inundadas por postagens críticas (veja-se, por exemplo, James Surowiecki), denunciando a simploriedade do “pretenso cálculo” das tarifas e/ou barreiras não-tarifárias impostas pelos parceiros comerciais dos EUA e  que viriam a ser respondidas com base na reciprocidade da lei do Talião: olho por olho, dente por dente! A mídia liberal e a intelectualidade de centro e centro-esquerda não se conteve: mais do que riu, gargalhou. Com o evento, Trump revelara exatamente o que era: um simplório.

Feliz ou infelizmente, sempre emergem vozes dissonantes e desafinadas. E Varoufakis – tal como João Gilberto – não se cansa de ser uma delas. Em entrevista concedida a Emily Jashinsky no dia 3 de abril de 2025, Varoufakis analisa as tarifas de Trump nos seguintes termos:

“A fórmula algébrica usada por Trump é, de fato, muito simples. E isso é puro trumpismo. Ele pretendeu haver identificado as tarifas efetivamente impostas pela China, pela União Europeia e pelos demais países sobre os produtos dos EUA. Mas essas tarifas não estão presentes em seus cálculos. Ele simplesmente toma o déficit comercial dos EUA com cada país e divide pelas importações totais. Depois, divide essa percentagem por dois e aplica o resultado como tarifa. O que ele está dizendo é que realmente não importa se o país tem um superávit com os EUA por estar controlando e manipulando sua taxa de câmbio ou se está usando práticas comerciais discriminatórias.

A mídia e a intelectualidade centrista (em suas palavras: the liberal estabilishment) olha isso tudo com escárnio, e ri da natureza grosseira, tosca, simplória, do “cálculo”. Mas eles estão perdendo o que é realmente central. A cena no jardim da Casa Branca foi uma propaganda brilhante. É preciso entender que Trump se dirige a uma clientela muito particular, que adora sistemas simples, de “baixa tecnologia”. Erra quem pensa que Trump e sua equipe não pudessem usar IA e montar gráficos muito bonitos como os da Bloomberg para apresentar seus “cálculos & resultados”. O ponto é que Trump não se dirige a um público sofisticado, mas àqueles que entendem “conta de padeiro”..

BINGO! O que Trump está dizendo é muito simples: “não importa qual a manobra que os vietnamitas usam para conquistar um superávit absurdo com os EUA. A única certeza é a de que esse resultado não advém da livre operação das forças de mercado. E nós vamos retaliar. Só que do nosso jeito: de forma transparente”. Trump mente ao dizer que calculou as tarifas e as barreiras comerciais não tarifárias impostas pelos países que apresentam grandes superávits comerciais com os EUA. Mas, ao mesmo tempo, diz a verdade. Pois a verdade é o seu dom de mentir. Analisemos isso mais de perto.

3. O programa trumpista

O programa de Trump-Vance-MAGA é muito simples: reindustrializar os EUA. Mas ele só é simples no sentido de que ele é facilmente traduzível em uma única oração. Em termos práticos, ele é de enorme complexidade. Por quê?

Porque, desde o final da Segunda Guerra mundial que os EUA detém uma vantagem competitiva muito peculiar: ele produz o dinheiro do mundo. Com raras e honrosas exceções, as transações internacionais são realizadas em dólares; vale dizer, as mercadorias são precificadas em dólares (em termos técnicos: o dólar é a unidade de conta), os pagamentos são feitos em dólares (em termos técnicos: dólar é o meio de troca e de pagamento) e os saldos positivos de cada país são acumulados em dólares (em termos técnicos: as reservas internacionais dos países superavitários são mantidas em dólares). Para que esse sistema se mantenha, os EUA têm que ofertar um grande volume de dólares para o mundo. Entre 1944 (quando foi concluído o acordo de Bretton Woods, que definiu a estrutura do sistema financeiro internacional que vigoraria após o conflito) e 1971 o privilégio norte-americano de ter sua moeda interna transformada em moeda internacional envolvia um “ônus”: os EUA teriam que manter reservas em ouro (no Forte Knox), que seriam entregues aos países que acumulassem um “excesso de reservas” em dólar e almejassem transformá-las em reservas metálicas. E a conversão se daria a uma taxa fixa, estabelecida em 1944: 35 dólares = 1 onça troy de ouro. O problema é que a demanda de financiamento para a reconstrução dos países destruídos pela guerra “impôs” a emissão de um volume de dólares muito superior à capacidade dos EUA de honrar com seu compromisso inicial de transformá-los em ouro. E, em 1971, o Presidente Richard Nixon decretou o fim da paridade dólar-ouro, impondo ao mundo o dólar como moeda internacional exclusivamente fiduciária: sem qualquer lastro.

De acordo com a (correta) avaliação de Varoufakis (aqui e aqui), a revolução nas relações econômicas internacionais imposta por Nixon foi muito mais violenta do que a (pretensa) revolução imposta por Trump através de suas “tarifas de reciprocidade”.  Nixon disse: O dólar continuará sendo o dinheiro. Mas, desde agora, o dinheiro do mundo não estará mais embasado em qualquer lastro material para além do no nosso poder imperial E nós poderemos comprar o que for do mundo, desde agora, apenas “imprimindo” dólares. Sem ter que produzir ou exportar nada que interesse aos demais países.

            E foi isso que os EUA fizeram por meio século. A subversão dos padrões internacionais de intercâmbio mercantil imposto por Nixon na entrada do último quartel do século XX foi muito mais radical do que a subversão que Trump está tentando impor agora, na entrada do segundo quartel do século XXI. E o sucesso da empreitada nixoniana deu origem a diversas interpretações segundo as quais o privilégio monetário-financeiro dos EUA lhes garantiria uma hegemonia econômica incontestável no capitalismo contemporâneo (a esse respeito, veja-se Tavares). Só que (malgrado todo o respeito que temos pela Professora Conceição), essa leitura acabou por se mostrar equivocada. Quem pode comprar tudo sem produzir nada …. acaba por não produzir coisa alguma. Ou, como J. D. Vance bem nos lembrou: acaba por produzir 0,1% dos navios mercantes do mundo. E agora, José?

Trump quer reindustrializar os EUA. Mas como fazer isso se o privilégio monetário-financeiro norte-americano lhes garante comprar o que bem entenderem do resto do mundo sem ofertar nada além de “papel pintado”? … Na concepção de Trump, a solução passa pela imposição de tarifas ao resto do mundo. A questão é: onde isso vai dar? A grande maioria dos críticos da estratégia trumpista pretendem que ela seja insana, irracional, um verdadeiro tiro no pé. A começar pelo fato de que ela vai se voltar contra os interesses da própria população norte-americana, pois vai se resolver numa elevada taxa de inflação. Será mesmo?

4. As tarifas vão gerar inflação nos EUA?

A maior parte dos críticos das tarifas de Trump apontam para uma contradição básica: mesmo que elas pudessem vir a estimular um processo de substituição de importações nos EUA, esse processo envolveria tempo. Mas, antes disso, no curtíssimo prazo, as novas tarifas levariam à elevação do preço dos importados e, por extensão, na aceleração da inflação interna que poderia chegar a dois dígitos. Ora, a inflação dos anos Biden (indissociável do conflito com a Rússia, via Ucrânia) foi um dos determinantes centrais da perda de credibilidade no governo democrata e, por extensão, da derrota de Kamala Harris e da eleição de Donald Trump. Se as novas tarifas se desdobrarem em inflação nos EUA, a popularidade de Trump deve cair e, com ela, o apoio ao projeto MAGA. Mas seriam os economistas republicanos tão ingênuos a ponto de não perceberem esse risco? Analisemos a questão mais de perto.

No evento do dia 2 de abril de 2025 em que Trump anunciou as tarifas que seriam aplicadas aos distintos países do mundo ele afirmou

De 1789 até 1913, nós éramos uma nação que impunha uma taxação mínima aos agentes internos e uma taxação máxima aos agentes externos, via tarifas de importação. E nos tornamos a nação mais rica do mundo. Em 1880 foi criada uma comissão parlamentar para decidir o que nós iríamos fazer com as vastas somas que estávamos coletando com base em nossas tarifas de importação. … Mas, a partir de 1913, por razões ainda desconhecidas, o Governo norte-americano criou o imposto de renda sobre os cidadãos, que passou a prevalecer sobre os impostos que, antes, recaíam sobre os países estrangeiros. Precisamos recuperar os padrões tarifários que nos levaram a ser a maior economia do mundo.

            Uau! Trump diz a verdade. A verdade está no reconhecimento de que a industrialização norte-americana ao longo do século XIX esteve baseada em políticas protecionistas e na imposição de pesadas tarifas alfandegárias às importações. Essa é uma lição que todos os “neoliberais da esquerda tupi” (que atribuem a desindustrialização brasileira à falta de “cultura inovadora” das nossas lideranças empresariais) deveriam assimilar (ainda que eu duvide muito que isso venha a acontecer). Mas a verdade em Trump é indissociável de seu dom de mentir. Senão vejamos.

Ao tratar da oposição “tarifas X impostos internos” Trump dá um sinal sobre como ele pretende driblar as pressões inflacionárias derivadas da taxação dos produtos importados. Em seu discurso ele afirma que, dentro em pouco, haverá uma reforma tributária voltada, num primeiro momento, à depressão dos impostos indiretos, incidentes sobre a aquisição de mercadorias no comércio. Sua sinalização é de que, parte do impacto das novas tarifas sobre os preços dos bens de consumo geral, será deprimido pela redução dos impostos sobre mercadorias. Por que essa medida não foi adotada simultaneamente com a elevação das tarifas? Porque, ao contrário das tarifas de importação, os impostos indiretos sobre a venda de mercadorias não se encontram sob controle do Governo Federal, mas dos Governos Estaduais. Trump está sinalizando para uma negociação entre as administrações federal e estadual, em que os recursos extraordinários auferidos pelo Tesouro Nacional sejam (pelo menos em parte) canalizados para as instâncias estaduais que vierem a colaborar com uma nova política de controle de preços através da redução das alíquotas de impostos indiretos. Alternativamente, caso a negociação com os Estados sobre as alíquotas dos impostos indiretos trave em alguma instância, Trump sinaliza para a possibilidade de utilizar os recursos arrecadados com as tarifas de importação para subsidiar os setores produtivos mais afetados com a elevação dos preços dos importados.

Mas isso não é tudo. Para que se entenda adequadamente a estratégia econômica de Trump precisamos entender bem o sentido da crítica de Varoufakis à avaliação “desdenhosa” do liberal establishment ao (pseudo) cálculo das práticas protecionistas dos países com os quais os EUA apresenta déficits comerciais. Desde logo, pedimos perdão aos leitores pela “tecnicidade” da discussão que se segue. Provavelmente, os economistas a considerarão elementar e ociosa; e os não economistas a considerarão insuficiente e pouco esclarecedora. … São as dores do ofício de tentar escrever para muitos.

A verdade é que o “cálculo” de Trump é muito menos enganador do que pode parecer num primeiro momento. Para que se entenda esse ponto é preciso “atravessar o Rubicão” da Economia e ter um mínimo de compreensão dos determinantes das relações econômicas internacionais e, por extensão, dos determinantes da taxa de câmbio. Não há como tratar de detalhadamente dessa questão nesse texto específico (tratei desse tema aqui). Agora só podemos dizer que, de acordo com a teoria econômica consolidada, nenhum país pode apresentar vantagens competitivas em todos os produtos. Se isso viesse a ocorrer, este país exportaria tudo e não importaria nada. E todos os demais países importariam tudo, sem exportar nada.

Ora, um país só pode importar sem exportar se ele produzir a moeda mundial! E esse país existe: chama-se EUA. Mas apenas um ÚNICO país pode ser o produtor da moeda mundial. Imaginemos que houvesse um país cuja produtividade fosse superior em TODOS os segmentos e que ele fosse o único exportador de todos os bens. Evidentemente, esse país seria hegemônico em termos econômicos e sua moeda assumiria o papel de “moeda mundial”. É aí que surge a questão relevante: como os DEMAIS países – cuja produtividade é inferior e que NÃO produzem a moeda mundial – conseguiriam importar? Para importar, eles precisam de divisas. E só podem adquiri-las se exportarem para o país hegemônico. Como isso é possível?

Através da desvalorização de suas moedas frente à moeda internacional. Sempre que a moeda nacional é depreciada diante da moeda internacional, os produtos de um dado país ganham “competitividade” e podem ser exportados independentemente da “produtividade real” das mercadorias oriundas dos mesmos ser inferior à produtividade do país hegemônico e mais desenvolvido.

Mas isso não é tudo. A teoria econômica consolidada diz algo mais. Ela nos diz que – se não houver interferência e manipulação dos governos nacionais sobre a taxa de câmbio, nem imposição de barreiras tarifárias ou não tarifárias desiguais – as Balanças Comerciais dos distintos países tenderá ao equilíbrio; vale dizer, os países não apresentarão, nem superávits, nem déficits sistemáticos com seus parceiros comerciais.

BINGO! Agora podemos entender melhor o “cálculo trumpista” das tarifas internacionais. Os críticos mais radicais da exposição de Trump acusaram-no de “falsidade ideológica”: ele teria mentido ao pretender haver identificado desigualdades no tratamento dado pelos demais países à produção norte-americana Na verdade, ele e sua equipe não teriam feito qualquer pesquisa sobre o tema. Teriam partido de um dado completamente distinto: a existência e a dimensão do déficit comercial dos EUA com os demais países.

O ponto que passa despercebido para aqueles que assim argumentam é que, de acordo com a teoria econômica consolidada, essa pesquisa não precisa ser feita. pois o que a teoria diz é que nenhum país pode ter superávit sistemático com um parceiro comercial se não estiver impondo restrições alfandegárias, restrições qualitativas ou manipulando sua taxa de câmbio.

Ok, Ok. Já vejo os meus leitores com sólida formação econômica lendo e torcendo o nariz. Sim, sei. Isso não é tão simples. A teoria consolidada NÃO afirma que o equilíbrio entre importação e exportação tenha que se dar com cada país individualmente. Assim é que, por exemplo, o Brasil apresenta superávits estruturais com a China e déficits estruturais com os EUA. Apresenta superávits estruturais na Balança Comercial e déficits estruturais na Balança de Serviços e Rendas. Ao fim e ao cabo, tende a apresentar equilíbrio (ou um pequeno déficit) na Balança Global de Transações Correntes. Ok. Ok. Mas, para além dos refinamentos e tecnicidades, o que importa entender é que a tese (e o cálculo) de Trump NÃO É um absurdo. Ele mente, é verdade. Mas a mentira é o seu dom de expor uma parte (não desprezível) da verdade.

Bem, já temos os subsídios necessários para voltar à questão que nos importa: o impacto inflacionário das tarifas de Trump. Esse impacto é evidente e não poderá ser compensado apenas por uma eventual (e provável) depressão das alíquotas de impostos indiretos sobre as mercadorias (a ser negociada com os Estados) ou eventuais subsídios para aquisição de insumos produtivos tarifados. A contenção do impacto inflacionário envolve, necessariamente, outros movimentos. O que a equipe de Trump tem em mente?

Para entender esse ponto é preciso ir além das exposições midiáticas e propagandistas de Trump e analisar os textos produzidos por sua equipe econômica e por economistas que atuam em sua órbita. Um texto que me parece particularmente elucidativo a esse respeito é o trabalho de Stephen Miran, intitulado A User’s Guide to Restructuring the Global Trading System. De acordo com Miran, a imposição de tarifas sobre aqueles países cujo saldo comercial é particularmente dependente de suas vendas para os EUA levaria à desvalorização de suas moedas. É isso que se espera venha a ocorrer com as moedas da maior parte dos países do sudeste asiático, tais como Vietnã, Indonésia, Tailândia, Bangladesh, Camboja, Taiwan, bem como dos países africanos que receberam as tarifas mais elevadas, como África do Sul e Lesoto. A queda das exportações para os EUA levaria à queda do ingresso de divisas e, por extensão, a um desequilíbrio entre a disponibilidade de dólares e a demanda por dólares; o que, por sua vez, levaria à depreciação de suas moedas nacionais. Se isso ocorrer, os produtos que esses países exportam ingressariam nos Estados Unidos a um preço em dólares inferior aos preços de oferta atuais. Um exemplo pode ajudar a compreender melhor a estratégia trumpista.

Vietnã, Tailândia, Indonésia, Camboja e Bangladesh são, hoje, grandes exportadores de calçados e vestuário para os EUA. Imagine que um calçado padrão tenha um custo total de produção (inclusive o lucro normal) de 100 unidades monetárias de um desses países exportadores. Chamemo-lo de País Hipotético, cuja moeda é PH$. Imagine que a taxa de câmbio atual da moeda desse país hipotético com o dólar seja de US$ 1,00 = PH$ 5,00. Nesse caso, se o calçado fosse vendido por 20 dólares, o produtor nacional cobrirá os seus custos e auferirá o lucro normal.  Ocorre, porém, que, com as novas tarifas de Trump, o calçado será taxado em 25%. De sorte que, se ele for vendido por 20 dólares, ele chegará ao comércio nos EUA por 25 dólares (para simplificar, estamos abstraindo os custos de transporte e de comercialização.) O que levará a uma queda da quantidade demandada e à depressão do ingresso de divisas no País Hipotético. Imagine, agora, que, em função do desequilíbrio na Balança Comercial do país exportador PH, o dólar suba de preço e a taxa de câmbio passe a ser de US$ 1,00 = PH$ 6,25. Nesse caso, um sapato cujo custo total de produção no país exportador fosse de PH$ 100,00, seria vendido para os EUA por US$ 16,00. Com uma tarifa de 25% sobre esse preço, o calçado chegaria ao mercado por US$ 20,00. Vale dizer: chegaria ao mercado final pelo mesmo preço de antes do tarifaço. E quem arcaria com o ônus das tarifas não seria o consumidor norte-americano. Mas o os produtores (trabalhadores e empresários) dos países tarifados que, agora, receberiam menos dólares pela produção e venda de cada unidade comercializada.

Mas isso ainda não é tudo. Trump também espera uma reação do FED às suas tarifas. Elas já impulsionaram as expectativas de inflação nos EUA. E, como é notório, as expectativas em Economia tendem a ser auto confirmantes. Logo, o FED será obrigado a subir a taxa de juros para cercear a elevação no nível geral de preços. Com a elevação da taxa de juros americana é de se esperar um novo movimento de valorização do dólar. O que equivale a um movimento de desvalorização geral – de todas as demais moedas frente ao dólar. O que acaba por reforçar o processo acima. De um lado, as moedas dos países exportadores passarão por uma desvalorização. De outro lado, o dólar será valorizado. O resultado será que os preços internos NÃO subirão na mesma proporção das tarifas. Mas a uma taxa significativamente inferior. E a inflação ocorrerá mas será controlável e virá acompanhada de um processo de reindustrialização com a geração de novos e melhores empregos.

5. Vai dar certo?

Não há como prever. São muitas as variáveis em jogo. Desde logo, os resultados dependerão da reação dos países afetados pelas tarifas. Em especial, dependerá da reação dos principais parceiros comerciais dos EUA: China, União Europeia, Japão, Coreia, Taiwan, Canadá e México. Mais: dependerá de se estes países reagirão de forma isolada (que é o que Trump gostaria!) ou se reagirão de forma articulada. Mais ainda: depende de se uma eventual articulação entre esses países se estruturará exclusivamente enquanto uma resposta aos EUA (o que ainda o consolidaria como “gestor” do novo xadrez mundial) ou se levará à construção de novas alianças e redes estratégicas de comércio e de integração produtiva que retirem os EUA do centro do “tabuleiro”.

Além disso, será preciso avaliar a reação de empresários, trabalhadores e consumidores no interior dos EUA aos choques impostos pelas medidas econômicas de Trump. Uma eventual reindustrialização dos EUA não se realizará do dia para a noite. Mas ela só poderá vir a ocorrer se os empresários norte-americanos apostarem na sustentabilidade, na perenidade, da estratégia trumpista. O que, por sua vez, irá depender da evolução da taxa de inflação interna e da aprovação do governo Trump junto aos eleitores.

Do meu ponto de vista particular, as chances de Trump ser derrotado são maiores do que as chances de ser bem-sucedido. Mesmo que os consumidores norte-americanos sejam tolerantes com um repique inflacionário inicial – que ocorrerá, necessariamente; ainda que num patamar inferior ao que muitos estão projetando -, mesmo que as direções das grandes empresas industriais norte-americanas apostem no MAGA e resgatem as plantas industriais sucateadas, reinternalizando a produção que havia sido externalizada, e mesmo que empresas sediadas nos países afetados pelas tarifas decidam investir nos EUA (abrindo novas plantas ou ampliando as já existentes nesse país), haverá um gargalo de difícil superação: a disponibilidade de mão de obra. Após anos de desindustrialização e de revolução tecnológica acelerada, não há como esperar que haja uma grande disponibilidade de mão de obra qualificada e consistente com os novos padrões produtivos. Além disso, a política de deportação e de circunscrição da imigração adotada por Trump levará à emergência de gargalos na disponibilidade de mão de obra de menor qualificação. E o resultado projetável será a elevação dos salários nominais, com a emergência de uma nova pressão inflacionária (via custos).

Em suma: a aposta é de grande risco. E as chances de ser bem-sucedida são menores do que as chances de fracasso. Mas o mais importante nesse momento não é tanto avaliar as chances de sucesso ou insucesso de Trump. O mais importante é entender que: 1) há um projeto; 2) ele está embasado em um diagnóstico essencialmente correto acerca dos desafios que os EUA enfrentam nesse momento histórico em que sua hegemonia está sendo posta em xeque por sua deterioração enquanto potência industrial; 3) a estratégia trumpista é arriscada, mas NÃO é uma estratégia insana nem está fadada ao fracasso.


*Carlos Águedo Paiva é Economista, Doutor em Economia e Diretor da Paradoxo Consultoria Econômica.

Foto de capa: Allan Lemos,/IA

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Respostas de 6

  1. Faltou um dado fundamental na análise. O novo sistema de transações internacionais que se dá sem o uso do dólar tendo agora o yuan como moeda de referência

  2. Uma análise coerente e que não subestima a estratégia do atual gerente do Hegemon para escapar do mundo multipolar que está descortinando. Excelente.

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