Sigilo não é Culpa, Suspeita não é Prova

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Por ALEXANDRE CRUZ*

Em A Dúvida, de John Patrick Shanley, a verdade nunca se revela por inteiro. O que se expõe é algo mais perigoso: o poder da acusação quando ela se basta. A freira interpretada por Meryl Streep não investiga para compreender, investiga para confirmar. Não pergunta. Afirma. Sua certeza é moralmente impecável e, justamente por isso, devastadora.

Há algo de inquietantemente atual nessa postura. Em tempos de hiperexposição e julgamento instantâneo, a suspeita deixou de ser etapa e virou sentença. A dúvida, que deveria abrir caminhos, passou a fechar portas. O público não espera mais o processo. Quer o veredito.

É nesse ambiente que se insere a cobertura recente sobre o Supremo Tribunal Federal e o chamado Caso Master. Uma investigação bilionária, complexa, tecnicamente árida, tratada sob o signo do escândalo antes mesmo da explicação. Quando a narrativa se fecha cedo demais, a compreensão vira dano colateral.

A crítica à falta de transparência do STF não é ilegítima. Instituições republicanas devem prestar contas, comunicar melhor, explicar seus atos. Sigilo excessivo corrói a confiança pública, sobretudo quando envolve cifras altas e personagens poderosos. Negar isso seria infantil.

Mas há uma diferença essencial entre exigir transparência e produzir condenação simbólica. Quando reportagens substituem perguntas por insinuações, e fatos por enquadramentos morais, a crítica deixa de ser jornalismo e passa a ser narrativa fechada.

É legítimo reconhecer que determinados fatos, quando justapostos, criam um problema de imagem e um risco ético-político para o ministro Alexandre de Moraes. A existência de contratos privados envolvendo familiares, o contexto de investigações sensíveis e a circulação de informações fragmentadas produzem ruído institucional. Isso é real. Mas ruído não é prova.

No direito, o enquadramento não nasce da aparência. Depende de elementos concretos: vínculo direto, atuação em processos relacionados, benefício pessoal. Sem isso, há desgaste político, não culpa jurídica. Confundir essas esferas pode ser satisfatório para o clamor público, mas é corrosivo para o Estado de Direito.

O debate se adensa quando se lembra que Alexandre de Moraes já manteve interlocução institucional com Gabriel Galípolo, hoje presidente do Banco Central, sobre a Lei Magnitsky, tema sensível no plano internacional. Conversas institucionais, por si só, não são ilícitas nem extraordinárias. Tornam-se problema apenas quando convertidas em insinuação de conluio, sem demonstração de consequência prática ou vantagem indevida.

Nesse ambiente, currículos acadêmicos passam a funcionar como atenuantes ou agravantes morais. Valores contratuais viram indícios de culpa antes de análise técnica. O silêncio institucional, muitas vezes exigido pela própria lógica do processo, é lido como confissão. O leitor não é convidado a compreender. É conduzido a concluir.

Transparência é princípio constitucional. Mas também o são o devido processo legal e a presunção de inocência. Democracia não funciona por atalhos morais. Funciona por regras, mesmo quando elas frustram a ansiedade do espetáculo.

O risco não está apenas no STF errar ao comunicar. Está também na imprensa errar ao julgar. Instituições se enfraquecem quando se tornam opacas, mas também quando passam a ser permanentemente tratadas como rés, sem direito à complexidade.

O que A Dúvida ensina, no fundo, não é a absolvição do padre nem a condenação da freira. É o perigo da certeza absoluta. A convicção que dispensa prova. A moral que se acha tão elevada que não precisa mais escutar.

Talvez a pergunta mais honesta neste momento não seja “quem é culpado?”, mas “quem está disposto a sustentar a dúvida?”. A democracia não pede fé cega no Supremo, nem desconfiança automática. Pede vigilância crítica, sem linchamento. Transparência, sem espetáculo. Jornalismo, sem tribunal moral.

Quando a dúvida desaparece, todos perdem. O acusado, o acusador e, principalmente, o público. Porque a certeza absoluta, seja de toga ou de manchete, raramente ilumina. Ela apenas fecha.


*Por Alexandre Cruz é jornalista político.

Foto de capa: Reprodução

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