Por DANIEL AFONSO DA SILVA*
Brasília, 1961. Tudo ia bem. O mês era agosto. Ricupero, em Brasília, apreciava o seu início da carreira de diplomata. Ele vinha de chegar do Rio de Janeiro, onde ingressara no Instituto Rio Branco em 1958 e, agora, em 1961, era assessor para relações do Itamaraty com o Congresso na nova capital do Brasil. Lá, em Brasília, Ricupero possuía um gabinete. Dava expediente no edifício anexo da Câmara dos Deputados. Tinha marcado o casamento, em São Paulo, com sua amada Marisa. Seria para setembro. Seguia feliz. Marisa também. O presidente Jânio Quadros abusava. Recebia e condecorava Che Guevara. Era agosto. Mês de angústia. Lembrava-se Vargas. Getúlio Vargas. O dia era 19. Ricupero viu o Che, falou com ele e, quem sabe, até gostou dele. O Che. Mas no Rio, Carlos Lacerda, governador da Guanabara, não. Não mesmo. E, como protesto, entregou as chaves da cidade para um líder simbólico da oposição ao regime de Havana e ao Che. A tensão era grande. Vivia-se a Guerra Fria. O Muro em Berlim já se erguia. A revolução cubana era um fato. Os norte-americanos já tinham se comprometido na Coreia. Os europeus se recuperavam. Viviam os seus anos gloriosos. Na França, o general de Gaulle retornara. Voltara em 1958. Refundara a República. A Quinta República. Mas perdera a colônia. Argélia, nunca mais. Os africanos em polvorosa. Na África do Sul, o apartheid. No Senegal, toda a graça de Léopold Sédar Senghor. Noutras partes, as imagens penetrantes de Aimé Césaire. No Brasil, era Jânio Quadros. Presidente “vassourinha”. Histriônico. O homem dos bilhetinhos. Ricupero via tudo. “Testemunha ocular da História”. Mesmo sem trabalhar pro Repórter Esso. Vivia ali bem perto. Brasília. Boatos cresciam. Conspiração também. Coisas de Brasília. Coisas do Rio. Coisas do poder. Carlos Lacerda, desde o Rio, dizia que Jânio Quadros iria asfixiar o Legislativo dando um golpe na Constituição. Aquela. Depois do Estado Novo. Em vigência desde 1946. Deputados acreditaram. Senadores também. A tensão crescia. E Ricupero observava. Anotava também. Até que chegou o dia. 25 de agosto.
O ano ainda era 1961. Ricupero almoçava em casa de Armando Braga Ruy Barbosa. Diplomata mais antigo, mais vivido e de muito valor. Beirava às 13 horas. Toca o telefone. Era para Ricupero. Do outro lado, Arrhenius. Aquele Arrhenius, goiano, amigo, confrade, irmão desde as Arcadas e desde São Paulo. Mas, agora, diplomata desde o Rio. A conversação foi bem franca. [Ricupero] “Você está sentado? Não? Então senta porque a notícia é de derrubar qualquer um! O presidente renunciou, ministros militares formaram uma junta de governo, há rumores de grupos que se armam para resistir”.
Adeus, refeição. Correr ao Congresso. Ricupero vai. Vai correndo. Era a sua função. Jornalistas à espera. Curiosos também. Ricupero adentra. Presencia Almino. Almino Affonso. Colega e conhecido também desde as Arcadas do Largo São Francisco. Agora Deputado Federal pelo estado do Amazonas. Almino Affonso toma a palavra. Experimentado, brada ser golpe. Golpe sobre Jânio Quadros. Golpe sobre a nação. Ainda de muito não se sabia. Ricupero sempre lá. No Congresso. Atento. Vê o Ministro da Justiça chegar. Vê-o, às rápidas, passar. Vê-o feito um raio. Destinação: gabinete do presidente do Congresso. Destinatário: senador Auro de Moura Andrade. As conversas refluíam. Ricupero tudo delas retraía. Soube que o Ministro trazia cartas de Jânio Quadros. Seguramente as cartas com a sua resignação. Eram duas. Uma curta. Com – quem sabe – “vou partir”. Outra longa. Com a declinação.
Eram 15 horas. Horário de Brasília. Ricupero lá. Sem arredar pé. Moura Andrade convoca os congressistas. Chama-os para sessão extraordinária. Marca-a para 16h30. Afonso Arinos – chanceler, mas também senador – toma parte. Estava no Rio, no Itamaraty que permanecia lá, à beira mar. Mas quer/precisa influir em Brasília. Escreve uma mensagem. Quer fazê-la chegar aos seus pares. Os congressistas. Envia por telex. Alguém do Itamaraty em Brasília recebe. Manda multiplicar, envelopar e endereçar aos respectivos líderes do Congresso. Enquanto isso, Ricupero, no Congresso, aguarda. Mas já sabe que caberá a ele receber os envelopes, os respectivos destinatários – leia-se: congressistas – e entregar.
Servo bom e fiel, Ricupero vai, faz. Mas é bloqueado. Interditado. Impedido. Detido. O Repórter Esso, onipresente, noticia. Diz ao Brasil inteiro. Informa ser prisão. Diz ser Ricupero, diplomata, em Brasília, na prisão. Marisa, em São Paulo, escuta. Entende e desentende. Prefere não entender. Mas precisa. E, por isso, vive, de sua parte, a tensão, a apreensão, a aflição. Que fazer?
Ricupero, em Brasília, vai “relaxado”. Findou-se a “detenção”. Mas o Repórter Esso não avisou. Seguia-se, então, a contrição. Era muita a confusão. Marisa em São Paulo. Ricupero em Brasília. Afonso Arinos no Rio. João Goulart, o vice-presidente, do outro lado do mundo, na China Popular. Eis a estreia de Ricupero.
Sim: aventura. Quase coisas da imaginação. Um desavisado veria nisso tudo reinações de narizinho. Coisas de Lobato. Não parecem verdade. Ou quem sabe, coisa de Hergé. Tintim. Aventuras de Tintim. Mas, não. Era tudo verdade. Ricupero, Marisa e o Brasil.
Ricupero em Brasília. Marisa em São Paulo. Casamento marcado. Convites distribuídos. Convidados confirmados. O padre Luigi – por charme, Luis; aquele da Congregação Mariana, que viu o amor de Marisa e Ricupero, no primeiro encontro e olhar, nascer – mais que confirmado, convocado. A Igreja Nossa Senhora da Paz, na várzea do Glicério, quem sabe, já pronta. Vasta em ornamentos. Aguardando os bonitos noivos chegar. Toda preparada para logo os sacramentar.
A data ia marcada: 1 e 2 de setembro. Antevéspera, agosto, dias finais. Ricupero em Brasília. Marisa em São Paulo. Muita apreensão. Forte pressão. No Rio, cogitava-se, guerra civil. Noutras partes também. Tramava-se até mais. Cercar-se Brasília. O retorno das fardas. República dos militares. Demissão de funcionários. Quem sabe, até de Ricupero. Muita dúvida. Indecisão. Ricupero em Brasília. Marisa em São Paulo.
Casar-se agora ou não?
Ricupero hesitou.
Marisa resolveu: “agora ou nunca!”.
Fim da hesitação: “agora”.
*Daniel Afonso da Silva é Pesquisador no Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da Universidade de São Paulo e professor na Universidade Federal da Grande Dourados.
Foto da capa: Ailton de Freitas / Agência Globo
Uma resposta
Muito interessante poder conhecer a vida destes personagens tão conhecidos da história.da história