Gás lacrimogêneo, balas de borracha e galerias fechadas expõem escalada de repressão
Da REDAÇÃO
Artigo 1/7 da série Porto Alegre sob cerco
Porto Alegre sob cerco: a violência institucional na Câmara
O dia 15 de outubro de 2025 marcou uma ruptura sem precedentes na vida política de Porto Alegre. O que deveria ser uma sessão legislativa com debate público e participação popular transformou-se em um episódio de repressão dentro da própria Câmara Municipal. Pela primeira vez desde o fim da ditadura militar, o Legislativo porto-alegrense recorreu a gás lacrimogêneo, spray de pimenta, cassetetes e balas de borracha contra manifestantes, servidores e vereadores de oposição. A ordem partiu da presidente da Casa, a vereadora Comandante Nádia (PL), e rapidamente espalhou pelas redes sociais e pelos veículos de imprensa imagens que chocaram a cidade.
A sessão trataria de temas sensíveis: propostas relativas ao DMAE, alterações na política de limpeza urbana e medidas que impactavam diretamente catadores de materiais recicláveis. Como ocorre em pautas de relevância social, movimentos organizados, servidores e cidadãos foram à Câmara acompanhar o debate, garantindo o pressuposto democrático da publicidade dos atos legislativos. Ao chegarem, porém, encontraram as portas de acesso às galerias fechadas por ordem da presidência. Vereadores da oposição tentaram reverter a decisão, argumentando que impedir o público de entrar era inconstitucional, mas não foram atendidos.
Pouco depois, a Guarda Municipal de Porto Alegre — incluindo agentes da ROMU, unidade de operações especiais — foi acionada para conter a multidão que tentava acompanhar a sessão. O uso de armas químicas e munição de “menor potencial ofensivo” ocorreu diante de parlamentares, assessores e cidadãos. Vídeos registraram correria pelos corredores, pessoas protegendo o rosto do gás lacrimogêneo e agentes avançando com escudos e cassetetes, numa cena que pertence à iconografia das ditaduras, não à vida democrática de um Parlamento.
O saldo foi grave. Pelo menos cinco vereadores da oposição foram feridos, incluindo representantes do PT, PSOL e PCdoB, além de um deputado estadual que estava no local em apoio aos manifestantes. Ocorreram intoxicações por gás, lesões por spray de pimenta, queimaduras e impactos de projéteis. Em depoimentos públicos, parlamentares relataram que tentavam dialogar com a presidência da Mesa quando os agentes avançaram, sem provocação que justificasse a escalada repressiva.
A reação institucional foi imediata. O senador Paulo Paim (PT-RS) repudiou o episódio, classificando-o como “mancha na democracia”. Entidades como CUT-RS, CPERS e movimentos de direitos humanos denunciaram a violência como abuso de autoridade e ataque frontal ao direito de manifestação. A Prefeitura de Porto Alegre, por sua vez, anunciou a abertura de investigação sobre a conduta da Guarda Municipal, reconhecendo a gravidade dos acontecimentos.
Mas a questão não se limita ao excesso policial. Para especialistas em direito constitucional e segurança pública, o episódio revela uma inflexão autoritária dentro da Câmara. A utilização de força contra parlamentares em exercício e contra cidadãos que buscavam acessar as galerias pode configurar violação da autonomia do Poder Legislativo, abuso de poder e atentado ao Estado Democrático de Direito. A oposição, em reação, pediu a cassação de Comandante Nádia por quebra de decoro e abuso de autoridade, argumentando que o Legislativo não pode se transformar em instrumento repressivo contra suas próprias funções.
Analistas consultados pela RED observam que a ordem de repressão não foi um gesto isolado, mas parte de um padrão que vem se consolidando desde o início da gestão da atual presidência. Segundo eles, está em curso uma militarização das práticas políticas, na qual divergência é tratada como ameaça e mobilização popular como desordem. Essa lógica impõe ao Parlamento uma postura de vigilância e controle, reinterpretando o espaço público como zona de risco, não como campo de participação.
As consequências são profundas. Parlamentares relatam sensação de insegurança física, temor de novas retaliações e dificuldade de dialogar com a presidência da Mesa. Movimentos sociais passaram a adotar protocolos de segurança ao ingressar no Legislativo. A presença do povo, que deveria ser natural e protegida, tornou-se tolerada apenas sob condições impostas unilateralmente.
O episódio do dia 15 não é apenas um evento violento; é um alerta. Ele coloca em discussão o modelo de Câmara que Porto Alegre terá nos próximos anos. Uma Câmara aberta ao debate ou uma Câmara marcada por práticas de controle e intimidação? Uma Casa do Povo ou uma Casa blindada contra o povo?
A violência institucional dentro do Legislativo abala pilares da democracia local. Afeta a confiança nas instituições, restringe o debate público e cria ambiente propício a novos abusos. É por isso que esta série de reportagens da RED se inicia por este dia: porque foi ali que a cidade viu, com clareza, a fronteira tênue entre autoridade e autoritarismo ser cruzada.
Nos próximos artigos, a RED investigará as tentativas de cassação de vereadores oposicionistas, o uso punitivo da Comissão de Ética, as políticas de higienização urbana, a criminalização da solidariedade e as reações da sociedade civil. O que está em jogo não é apenas um conjunto de decisões administrativas, mas o próprio caráter democrático da cidade.
Ilustração da capa: Repressão dentro da Câmara de Porto Alegre – Imagem gerada por IA ChatGPT
Leia também os artigos anteriores da série:
• Escalada autoritária na Câmara de Porto Alegre: RED denuncia ataques à democracia local




