Por EMERSON GIUMBELLI*
Qual a importância das religiões na sociedade atual? Dois conjuntos de dados recentes ajudam a qualificar essa questão. Em foco, a situação da capital do Rio Grande do Sul, em seus territórios e seus habitantes.
Comecemos com o levantamento efetivado pelo Observatório da Religião e Interseccionalidades do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), com base no Censo 2022 do IBGE. A equipe do Cebrap ponderou as informações do Censo sobre estabelecimentos religiosos considerando os territórios de “favelas e/ou comunidades urbanas” em relação às demais áreas urbanas dos municípios brasileiros.
De acordo com a reportagem de Anna Virginia Balloussier para a Folha de São Paulo (03/12/2024), na maioria das capitais do país há mais presença de estabelecimentos religiosos dentro do que fora das favelas. Essa avaliação considera a proporção de estabelecimentos pelo número de habitantes.
Porto Alegre é a capital onde a diferença de índices dentro e fora das favelas revela-se a mais elevada: 116%. Detalhando: “do 1,3 milhão de habitantes, 175,5 mil (13% da população) moram nessas áreas tidas como socialmente mais vulneráveis. Já os estabelecimentos religiosos ali são 481 (24,6%) dos 1.951 mapeados na maior cidade gaúcha —o que dá uma média de 2,7 igrejas por mil habitantes. Na outra porção urbana, são 1.470 templos para 1,1 milhão de habitantes, ou seja, 1,3 espaços de crença para cada mil habitantes”. A diferença entre 2,7 e 1,3 é a maior entre as capitais brasileiras.
Os dados do Censo 2022 não especificam a religião dos estabelecimentos mapeados. A reportagem da Folha aponta que uma boa parte desses estabelecimentos em áreas vulneráveis é constituída, no caso da religião evangélica, por “igrejinhas de bairro”. Trata-se de igrejas que não são “filiais” de nenhum dos megaempreendimentos que dominam as notícias sobre política, por exemplo.
Deve-se acrescentar a essas “igrejinhas” os terreiros e casas de religião afro-brasileira, que também tendem a se concentrar em áreas urbanas periféricas. Aliás, é bem possível que esses templos afro-brasileiros, os quais muitas vezes confundem-se com os locais de moradia de suas lideranças, não tenham sido totalmente registrados nos dados do IBGE.
Em suma, podemos afirmar que nas periferias porto-alegrenses há uma significativa presença de iniciativas religiosas. A maior parte desses templos e casas vincula-se não à religião majoritária, o catolicismo, mas ao universo evangélico e ao afro-religioso. Em alguns lugares, a convivência entre esses segmentos é delicada, sobretudo por conta da beligerância de certos expoentes evangélicos.
O segundo conjunto de dados é sistematizado pela dissertação de Patrícia Figueiredo da Rocha, concluída em 2024 no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Os dados foram produzidos pelo NUPESAL (Núcleo de Pesquisa sobre a América Latina), vinculado ao mesmo Programa. Consistem em amostras estatisticamente representativas de jovens com idades entre 13 e 24 anos de escolas públicas e privadas da cidade de Porto Alegre. As pesquisas foram realizadas em 2002, 2015 e 2019, por meio de questionários junto a esse público escolar.
Os dados permitem comparar a participação dos jovens em partidos políticos, associações comunitárias e associações religiosas. Em todos os anos, a participação em associações religiosas é maior do que os demais envolvimentos. Ela era de 40% em 2002, desceu para 34% em 2015 e aumentou para 47% em 2019. Os dados para partidos políticos são, respectivamente, 19%, 4% e 4%, ao passo que para associações comunitárias são 27%, 19% e 27%. Novamente, somos levados a reconhecer a importância social da religião, nesse caso, a partir da dedicação de jovens porto-alegrenses.
O trabalho de Rocha estende-se sobre o levantamento de 2019. Uma de suas variáveis é o do interesse por política, que foi ponderado de acordo com as participações já mencionadas. Dos jovens que têm muito interesse, 23% participam ativamente de associações religiosas e 26% já participaram, com 51% não participando. Entre os jovens sem interesse por política, 62% não participam de associações religiosas. Ou seja, por um lado, interesse político pode vir acompanhado de participação religiosa; por outro, à falta de interesse político não se associa necessariamente uma maior participação religiosa.
Outra variável é o espectro ideológico das identificações políticas, dividido em cinco opções: “esquerda a extrema esquerda”, “centro esquerda”, “centro”, “centro direita” e “direita a extrema direita”. A autora nota que os jovens que se identificam com “direita a extrema direita” têm a maior participação em atividades religiosas (35%), seguidos pelos de “centro-direita” (24%). Mas os números são ainda maiores no caso daqueles que não têm participação religiosa: respectivamente, 50% e 53%. Além disso, não podemos desconsiderar os índices relativos a “centro esquerda” e “esquerda a extrema esquerda”. Daqueles que se identificam com essas posições políticas, 14% e 16% têm participação religiosa (em contraponto com 66% e 55% que não têm).
Ou seja, ainda que o estudo estabeleça “uma correlação entre uma orientação política mais conservadora e a participação em atividades religiosas”, dois pontos são relevantes: 1) não ter participação religiosa não significa estar fora desse segmento politicamente conservador; 2) há um número significativo de pessoas com envolvimento religioso que se identificam com tendências políticas à esquerda.
Que conclusões podemos tirar de todos esses dados? Em Porto Alegre, a religião é parte relevante dos territórios das vilas (como são conhecidos aqui as comunidades chamadas de favelas, quebradas, etc em outras cidades) e da vida dos jovens. Os dados sugerem ainda que, nas vilas, pode ocorrer uma polarização entre espaços evangélicos e espaços afro-religiosos, assim como mostra que existem jovens com participação religiosa pertencentes a todas as posições do espectro político.
A partir disso, os cenários são variados. Podemos verificar em que medida a polarização existe efetivamente no universo religioso. Podemos também perguntar se podem existir convergências entre iniciativas religiosas e entre jovens religiosos com diferentes posições políticas. Seja como for, a religião estará no caminho. Tanto de nossa compreensão do mundo, quanto de nossa avaliação dos destinos políticos de uma cidade como Porto Alegre.
*Emerson Giumbelli é professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.