Por EMERSON GIUMBELLI*
Em um domingo de março, fui assistir a um filme no cinema. Como a maior parte das salas, essa a que fui fica dentro de um shopping center de Porto Alegre, que abriga também um teatro. Notei que havia uma grande movimentação no andar onde ficam tanto o cinema quanto o teatro. Alguma peça acabara de encerrar, deduzi. Passavam pelos corredores muitas pessoas jovens, bem vestidas, mas em trajes casuais. Numa ecobag reconheci o nome de uma igreja evangélica e me perguntei, vício do ofício, se não estaria testemunhando a saída de um evento religioso.
Fui me informar. O nome que eu reconhecera tinha sido o tema da dissertação de mestrado de Taylor de Aguiar, que tive a satisfação de orientar na UFRGS. O foco do trabalho de Taylor é o estilo de cultos que se realizam em certas igrejas evangélicas. Louvores embalados por música pop, estrutura para projeção de vídeos, cuidado com a iluminação, ambiente com paredes escuras, entre outras características, marcavam os cultos voltados para o segmento jovem da igreja. Com perfil predominante de pessoas de classe média e brancas, o público desses cultos estampava uma estética moderna e parecia esbanjar animação.
A pesquisa de Taylor foi concluída em 2019 e ele me ajudou a rastrear os passos desse grupo desde então. Pelo que pude saber, em 2021 o grupo se desligou da Igreja onde surgira. À mesma época, utilizaram pela primeira vez o teatro do shopping que eu visitei em 2025. Eventos específicos foram realizados em um dos auditórios de uma universidade católica e em uma das principais casas de show da cidade. No teatro, se estabeleceram definitivamente em 2023.
Naquele ano, eram anunciados cultos em dois horários. Atualmente, são quatro cultos, às 9h, 11h, 16h e 19h, sempre nos domingos. Em 2021, o responsável pela nova igreja declarou a um site evangélico que já havia consultado o teatro anteriormente, mas a resposta foi que eventos religiosos não eram aceitos. Nas informações oficiais da igreja, em suas redes sociais, agora o teatro é o seu endereço.
Corta para o filme da noite de abril de 2025. Mais uma vez, tive a sensação incômoda de ver poucas pessoas na sala de cinema. Antes do filme começar, junto com trailers, publicidades e avisos de segurança, uma projeção indica que dois filmes poderiam ser assistidos em “sessões exclusivas”. Isso chamou minha atenção. Consegui ter informações nas redes sociais sobre um desses filmes. Um horário matutino pode ser acordado para um grupo de no mínimo 50 pessoas. Os preços são reduzidos, incluindo o combo que inclui pipoca e refrigerante. “Reúna seu grupo e viva essa experiência única na tela do cinema!”, incentiva o informe.
O filme, na verdade, é um seriado, The Chosen. Trata-se de produção americana que conta a biografia de Jesus Cristo a partir da visão de seus apóstolos. Pelo que indica uma das fontes que acessei, o Brasil é a segunda maior base de fãs desse seriado. The Chosen já está na quinta temporada e as sessões exclusivas oferecidas pelo cinema apresentam os seus dois primeiros episódios. Descobri que há pelo menos duas redes de cinema no Brasil com essa oferta.
Um teatro que aos domingos se transforma em igreja. A possibilidade de pessoas se organizarem para ter uma sessão exclusiva de cinema com um filme religioso em cartaz. O que pensar sobre isso?
Impossível não lembrar do que aconteceu algumas décadas atrás, em capitais como Rio de Janeiro e São Paulo, quando vários “cinemas de rua” decadentes foram comprados por igreja evangélicas em ascensão.
O cenário atual apresenta diferenças. Não muda a propriedades dos lugares, que continuam sendo teatros e cinemas com sua programação tradicional. Mas essa programação agora pode conviver com cultos e filmes religiosos. Cristãos, é bom que se acentue.
Mas isso sustenta o argumento de que a religião estaria adentrando espaços culturais? Ou estamos diante de mudanças no próprio cristianismo, que se adapta para frequentar tais espaços? As duas coisas podem estar certas.
Menciono mais duas situações antes de terminar. No Rio de Janeiro, um dos cinemas que foi comprado por uma igreja evangélica, das mais arrojadas, hoje é o endereço de uma academia de ginástica (uma dessas redes que espalham suas unidades quase no ritmo de expansão das farmácias).
A outra situação é mencionada no ótimo documentário Retratos Fantasmas, de Kleber Mendonça Filho. O prédio onde funciona o Cine São Luiz, no centro de Recife, foi construído no lugar onde existia uma igreja evangélica no século 19. O cinema chegou a ser fechado, mas depois se tornou exemplo de recuperação de um “cinema de rua”.
Como vemos, em diferentes tempos, o que foi igreja pode se tornar outra coisa. Mas naquele domingo em Porto Alegre, parecia que saía mais gente do culto no teatro do que havia nas salas de cinema. Será que os teatros vão preferir alugar seus espaços para igrejas? Será que algum dia alguém vai propor que é preciso “salvar” os cinemas de shoppings que foram tomados por programações religiosas?
*Emerson Giumbelli é professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Foto de capa: hilippe Silva/IEQ
Uma resposta
Como sempre, o olhar do Prof Émerson é uma lupa face a possibilidades futuras. As perguntas finais inquietam e nos instigam em territórios próprios de que. Ousa olhar adiante. Continue escrevendo professor. Voltarei a assistir Retratos Fantasmas. Fiquei com a sensação de que perdi algo da sessão! Abraço