Religião como Instrumento de Poder e Submissão

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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

O documentário “Apocalipse nos Trópicos” (Netflix), dirigido por Petra Costa, mostra cenas filmadas para compreender uma das transformações político-culturais mais profundas do Brasil nas últimas décadas — a substituição da Teologia da Libertação por uma religiosidade de submissão e prosperidade (para os pastores do rebanho ou gado). Reorganizou a relação entre fé, política e poder.

A Teologia da Libertação, surgida no final dos anos 1960 e consolidada nos anos 1970, foi uma reação ao silêncio da Igreja Católica diante da pobreza, da repressão política e da exclusão social. Inspirada por pensadores como Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff, Frei Betto e Pedro Casaldáliga, e articulada com as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), essa teologia promovia a leitura popular e crítica da Bíblia a partir da realidade dos pobres.

 Ela formava consciência de classe nos territórios periféricos e rurais. Articulava fé e militância social contra a desigualdade e a opressão. Era, portanto, um instrumento de emancipação e organização popular.

A resposta conservadora a esse movimento foi articulada por dois Impérios complementares. Internamente, no Vaticano situado no antigo Império Romano, houve um deliberado processo de enfraquecimento da Teologia da Libertação sob João Paulo II e o então cardeal Joseph Ratzinger (depois Bento XVI). Eles a acusavam de “marxismo disfarçado”.

Externamente, via avanço das igrejas evangélicas (sobretudo neopentecostais), apoiadas por fundos e estratégias estadunidenses de um Império então quase no auge da Era do Neoliberalismo espraiado, antes da atual decadência irremediável. Suas lideranças viam no avanço evangélico um antídoto ao “comunismo teológico latino-americano”.

Assim, a Teologia da Libertação foi substituída, marginalizada ou cooptada, enquanto crescia a influência de uma teologia centrada em bênção material como sinal da graça divina. Prega obediência à autoridade como virtude suprema, faz culpabilização individual pela pobreza e vê sofrimento e salvação espiritual dissociada da justiça social.

A consequência política foi o esvaziamento do cristianismo progressista como força social. O Brasil sofre a emergência de um eleitorado evangélico conservador, hoje atuante como um bloco político disciplinado no Congresso, nas Assembleias Legislativas estaduais e nas redes sociais. Essas formas de religiosidade não são neutras nem espontâneas porque têm função ideológica clara. A Teologia da Prosperidade defende a riqueza (dos pastores) ser um sinal de fé verdadeira. Transforma o dízimo em “investimento espiritual” com retorno garantido (para os pastores). Reforça a meritocracia espiritual e a desigualdade como “prova divina” (do mérito pastoral). Desmobiliza o conflito social ao individualizar o fracasso dos crentes sem esforçarem bastante (para pagar o dízimo).

A Teologia do Domínio, também denominada dominionismo (não confundir com “demonismo”), é um conjunto de ideologias políticas em busca de submeter a vida pública ao domínio religioso dos cristãos, notadamente neopentecostais, e da interpretação feita por estes da lei bíblica. Deus teria concedido à humanidade o “domínio” sobre a Terra quando teria dito: “frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra”.

Isto é interpretado não só como uma autorização para a criação inconsequente dos problemas ecológicos como também um mandato para a administração cristã em assuntos civis, tal como em outros assuntos humanos.

O dominionismo agrupa várias tendências cristãs fundamentalistas, inclusive integralistas católicos. Postulam uma política exclusivamente religiosa, de base bíblica, a ser aplicada em toda a humanidade com a exclusão de todas outras expressões ideológicas, tidas como falsas e por isso sem direito de existir. É a ideologia totalitária da extrema-direita, apresentada como fosse cristã, no campo da política e dos costumes.

É acompanhada liturgia da submissão, pregada em igrejas conservadoras e templos pentecostais. Defende a obediência cega ao pastor, ao marido, ao patrão, e ao governo se não for laico. Recusa o debate político como “coisa do diabo”. Demoniza o feminismo, o pensamento crítico, a liberdade sexual, o aborto, o Estado laico.

Ambas as teologias (da Prosperidade e do Domínio) funcionam como religiosidades empresariais, autoritárias e punitivistas. Elas moralizam a pobreza como uma “punição”, sacralizam o sucesso monetizado, criminalizam a organização popular autônoma e transformam a fé em produto de consumo e ferramenta de controle.

Sem dúvida, é um risco à democracia a religião ser convertida em máquina de poder. O Brasil hoje vive a ameaça da consolidação do “cristoneofascismo” no qual o fundamentalismo evangélico atua como partido informal de extrema direita, com bancada própria (da bíblia), em aliança com as bancadas da bala e do boi, consagrando a “Santíssima Trindade” BBB do conservadorismo político.

Impõe pautas morais regressivas no Legislativo e Judiciário. Busca colonizar o Estado com uma ética religiosa autoritária. Mobiliza fiéis como massa de manobra política, contra seus próprios interesses sociais e econômicos, porque apoia governo militarizado aliado ao neoliberalismo, indiferente à política social ativa de governo social-desenvolvimentista.

Em vez de ser mediadora da solidariedade, a fé se tornou um instrumento de controle político e cultural. Como em qualquer sociedade autoritária, o fanatismo religioso substitui o pensamento pelo dogma, o debate pela revelação, a política pela profecia.

O maior risco à democracia brasileira hoje não é de origem econômica ou social — é militar e religioso. Porque um povo convencido de a miséria ser castigo divino e a autoridade vir de Deus para pastores não se rebela contra esse domínio — só ajoelha no chão duro da realidade, fecha os olhos e ora. Senão, fica de pé e levanta as mãos em oração como em transe. E vota sem livre arbítrio em bancadas BBB.

Da Teologia da Prosperidade à submissão, a fé virou instrumento de dominação no Brasil. Houve a conversão da fé em máquina de poder conservador.

Os democratas necessitam defender o Estado laico brasileiro. Ele não possui uma religião oficial e garante a liberdade religiosa a todos os cidadãos, sem privilégios ou discriminação. Significa a separação entre Estado e religião, onde o Estado não interfere em questões religiosas e as religiões não interferem nas decisões políticas.


*Fernando Nogueira da Costa é Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com

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Respostas de 3

  1. Importante esclarecimento sobre o domínio das Igrejas Universal e demais religiões derivadas da mesma sobre o povo pobre e sem conhecimento e cultura.

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