Por JORGE BARCELLOS*
Vamos resgatar um pouco da história de lutas sociais que resultaram na sobrevivência da Usina, como o espaço do Museu do Trabalho.
A Prefeitura lançou na semana passada o projeto da Parceria Público-Privada da Usina do Gasômetro. Segundo Gilson Dantas de Santana e Hélio de Souza Rodrigues Júnior em seu livro As parcerias público-privadas: solução ou problema? (disponível aqui), a ideia de PPP é algo ruim porque “cria demasiadas facilidades para o capital privado; compromete a própria essência daquilo que se chama de serviço público; favorece um tipo de política pública que já não será mais universal e sim focal; e, finalmente, representa a mercantilização dos serviços públicos típicos ou promovidos exclusivamente pelo Estado e viabiliza o interesse do capital financeiro”. Não poderia ser mais exato. Mas ela está aí, fazer o quê?
Se não der para dissuadir o governo ou impedir sua realização com apoio federal, afinal entendo que é uma responsabilidade do poder público gerir seus equipamentos, então que se o discuta. Gostaria de focar um ponto fundamental para mim, praticamente ausente do Edital e seus anexos (disponível aqui). Entendo que, salvo melhor juízo, falta à PPP uma definição do que é a Usina a partir do desejo da sociedade que a defendeu à época. Parece simples, mas não é. Se não, vejamos. A palavra Usina aparece no Edital propriamente dito apenas 4 vezes, sempre ligada a ideia de objeto de operação, manutenção e ativação; quando aparece no Glossário do Anexo 1, o termo Gasômetro é definido como “o edifício da Usina do Gasômetro, excetuadas suas áreas externas”; quando o termo aparece mais, como no Anexo 8 do Memorial Descritivo, em seu Capítulo II, se trata da história da Usina sim, mas ela omite, de forma grave, as características do movimento social que se criou ao seu redor, especialmente as ideias sobre que tipo de memória deveria ser abrigada no seu interior e, mesmo no Anexo 9, do Estudo Arquitetônico de Referência, quando remete as características do que deverá ser incluído no Memorial da Usina, o documento dá pouca importância a ele conceito, se resume a quatro linhas onde se lê que “Prevê-se ainda no térreo a consolidação de um espaço expositivo permanente destinado a conteúdos vinculados à própria história do GASÔMETRO. Tal local recebe o nome de Memorial Usina e se instala ao redor de alguns dos fornos que eram utilizados para a queima do carvão para produção de energia elétrica. A proximidade dos fornos evidencia a função original do prédio, sendo, portanto, local propício para a valorização de sua história”. E isso é tudo. Para o historiador que sou, isso é pouco.
Eu vou desenvolver aqui dois argumentos para defender minha ideia que, claro, visa ampliar o debate sobre a Usina. O primeiro é a importância do resgate da história de lutas sociais que resultaram na sobrevivência da Usina, que defenderam ali a criação de um Museu do Trabalho; e a segunda, minha experiência enquanto trabalhador da Usina na década de 90, na minha visão do que eram os Anos Dourados da Usina: os de uma Usina com Alma.
Lições da Usina nos anos 80-90
A Usina do Gasômetro foi tombada por iniciativa popular e é um marco da organização da sociedade civil de Porto Alegre. É verdade que não é qualquer empresa contratada pela administração que consegue dar conta dos detalhes dessa história para redigir um Edital que seduza o licitante vencedor ou adjudicatário pelo retorno financeiro, simplesmente porque a Usina não é um prédio vazio: ela é um prédio que abriga uma instituição com alma, isto é, possui uma identidade própria que a une à cidade e seus moradores. O ato fundador desse vínculo simbólico foi o famoso “abraço” realizado pela comunidade no seu entorno nos anos 80, que significou a afirmação de um sentido que a Usina deveria ter a partir de então, que deveria ser para todos e, portanto, pública. Ao longo do tempo, ela foi foco da luta política que se gerou ao seu redor, seja da política dentro dos projetos dos partidos de governo, seja dos atores de fora dela. No programa do candidato registrado no TSE (disponível aqui), encontrei a palavra Usina citada apenas 2 vezes: na página 6, onde o candidato declara as reformas que fez “já de cara nova na parte externa e a qualificação interna está na reta final” e na página 25, onde é citada como objeto “para dar sequência às propostas de parceria para gestão de equipamentos como Usina do Gasômetro, entre outros”. No meu entendimento, salvo melhor juízo, para o governo, a definição do que a Usina é se resume a um objeto a ser privatizado e não a um equipamento que tem alma.
A Usina foi objeto de diversos projetos e instituições. Entre elas, Emerson de Carvalho Guimarães, em seu A Usina do Gasômetro: memórias da construção (disponível aqui), que uso aqui como apoio histórico, cita entre as principais entidades envolvidas no projeto de sua criação nos anos 80 “o Museu do Trabalho, Associação dos Dirigentes de Vendas do Brasil (ADVB), Associação Brasileira de Agências de Viagens (ABAV), Serviço Nacional do Comércio (SENAC), Movimento Gaúcho em Defesa da Cultura (MGDC) e a Empresa Brasileira de Turismo Embratur [onde] acabaram destacando-se dois grandes blocos de interesse. Forma-se, por um lado, um polo cultural, de certa forma orquestrado predominantemente pelo Museu do Trabalho e, por outro, um polo comercial que congregava os interesses de uma série de empresas ligadas ao comércio e ao turismo, tendo à sua frente a Embratur”. Para o autor, a Usina se constituiu como um espaço de luta social. “A Usina confrontava-se com interesses diametralmente opostos. Ambos, porém, imbuídos do espírito memorável de resgatar aquele prédio como lugar de memória, ainda que para alguns a ênfase fosse dada na memória dos patrões e para outros na memória dos operários (p. 119-123).
Não é exatamente esta luta que é atualizada na atual proposta de PPP da Usina? O que me surpreende é que, no debate sobre sua privatização ou não, não vi uma discussão, salvo melhor juízo, sobre a identidade da Usina, o que para mim é o elemento ausente do projeto. E qual é ela? A prioridade esquecida hoje e elemento essencial de sua identidade é que a Usina do Gasômetro foi criada como centro cultural, lugar da memória de trabalhadores e espaço de sua formação. Esse debate ocupou as páginas dos jornais nos anos 70 e 80, onde a sociedade reconhecia a necessidade de sua restauração como a parte final de um movimento que envolveu os movimentos pela preservação do muro do Guaíba, a perimetral e a própria Praça Brigadeiro Sampaio.
A Usina nasce pela cultura e não pelo comércio
Desde suas origens, a Usina era idealizada não como um centro comercial, mas um centro cultural-educativo e de memória. Guimarães lembra que uma das primeiras propostas de reconhecimento “partiu da primeira dama do Estado, Ecléia Guazelli, que, juntamente com Paulo Amorim, diretor do DAC/SEC (Departamento de Assuntos Culturais da Educação do Estado), passou a pensar em conservar o máximo da Usina a fim de proporcionar a criação de um Centro de Criatividade. Segundo ela, “o Centro será para todos, mas dará atenção especial às camadas mais carentes da população”, segundo reportagem do Correio do Povo de 18 de maio de 1978. Espécie de misto de centro cultural e escola de formação, foi ela que, com o governador Guazzeli, solicitou a audiência no Rio de Janeiro com Antônio Carlos Magalhães, então presidente da Eletrobrás e responsável pela encampação do prédio, para pedir sua liberação para a criação de um Centro de Criatividade, luta a qual se uniu Antônio Hohlfeldt e uma comissão elaborou um documento em que se previa a criação de uma fundação para administrar a Usina. Quando foi divulgada a notícia de que a Usina seria vendida pela Eletrobrás, em setembro de 1980, um ato público reuniu na Usina estudantes de arquitetura e integrantes do planejamento urbano defendendo sua preservação, junto com o IAB, a Associação Riograndense de Imprensa, o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, a Divisão de Patrimônio da Secretaria Estadual de Cultura e Esportes e representantes do campo de patrimônio histórico de Porto Alegre.
Infelizmente, nessa época, o prédio já começou a ser depredado, inclusive pela própria CEEE que, em julho de 1981, “não hesitou em fazer enormes rombos nas paredes da Usina para retirar o maquinário e as peças de metal vendidas como “sucata”, que foram inclusive vendidas para a Usina de Maldonado, onde estariam à época funcionando”, segundo Adroaldo Xavier e Marcos Flavio Soares, do Museu do Trabalho à época. A depredação incluiu equipamentos, escadarias, galerias de ferro trabalhado, assim como os famosos tijolos refratários ingleses, que terminaram servindo para interesses particulares.” Guimarães diz que, diante das manifestações populares, foi então criado o primeiro Edital, que dizia que não haveria investimento por parte da Prefeitura, mas que “o aproveitamento do prédio deveria ser para fins culturais, proibindo desta forma a apropriação para fins comerciais ou políticos”, conforme se noticiou em Zero Hora em 22 de dezembro de 1981. A proposta congregava o interesse cultural apresentado pelo grupo que defendia ali a criação do Museu do Trabalho e as propostas de empresas ligadas ao comércio e ao turismo, tendo em frente a ADVB e a Embratur.
Em sua origem, o resgate da Usina esteve ligado ao projeto da criação de um grande Museu do Trabalho em nossa capital. O projeto foi elaborado pelo sociólogo Marco Flávio Soares e visava ser “capaz de acolher histórias do trabalho, colocando em relevo não apenas a dimensão objetiva do trabalho, como os demais ângulos que necessariamente estão implicados nos processos pelos quais o homem intervém na natureza, em particular o processo produtivo, mas também devem ser consideradas as conquistas do operariado, os aspectos institucionais, o comportamento do Estado, a postura das classes dirigentes e até os hábitos e costumes destas classes. Só assim, computados todos estes fatores, chegaremos à compreensão da questão do trabalho”, como disse o autor do projeto ao Jornal do Arquiteto em janeiro de 1982. Com isso, seria possível atingir o objetivo de “manter a memória daquelas profissões que estão desaparecendo como consequência do progresso.”
Então, cadê a memória real do trabalho na PPP?
Ora, dissociar no projeto atual da PPP do vínculo do objetivo central e original daqueles que batalharam pela preservação da Usina é apagar uma memória de luta social e substituí-la por outra na qual espaços que poderiam ser destinados a frações dessa memória são substituídos por hubs criativos e espaços de coworking, entre outras destinações. Localizei no PowerPoint de apresentação da PPP o mapa do Programa de Usos dos Espaços e não encontrei o espaço do Memorial da Usina. Em seu lugar, localizei apenas a palavra “Exposições”, como se ela fosse outra qualquer. Não é. A única vez em que a menção ao Memorial aparece na apresentação do projeto é onde diz que fica vedada a cobrança de ingresso, o que é o mínimo, e a destinação de espaços da Usina para o projeto Noite dos Museus no teatro, nave central, sala de apresentação e cinema no mês de maio sem mencionar o Memorial da Usina. Entendo, salvo engano, que essa dissociação atual visa estabelecer um novo conceito de memória no interior da Usina, exatamente aquele que é pretendido pelo neoliberalismo, no qual a memória de luta do movimento dos trabalhadores contra o capital é substituída pela memória de submissão ao mundo do empreendedorismo. Fim da ideia defendida por um grupo de 40 pessoas, entre sociólogos, historiadores, arquitetos e trabalhadores, no início dos anos 80, a de um grande Museu do Trabalho no interior da Usina do Gasômetro. “O próprio prédio é um dos documentos mais expressivos da história do trabalho”, registra reportagem do Correio do Povo de 8 de maio de 1983. Sequer o objetivo educativo se preserva hoje. Procurei as expressões “educação” e “ensino”, tanto no PowerPoint de apresentação como no próprio Edital, e salvo engano, são praticamente inexistentes. Quando aparecem no Anexo 9, na seção referente às premissas do projeto arquitetônico – Extensão, Inovação e Ativação – a produção cultural é vista como o somatório de eventos, sem definição de um princípio de base que não seja dentro da visão da administração de excelência e gestão, já criticada por Vincent de Gaulejac em El coste de la excelencia (Sapere Audi, 2017) e Gestão como doença social (Ideias e Letras, 2007): querem modernizar a Usina como se fosse o cantinho de obras do mundo dos negócios, mas ela envolve outras esferas, especialmente a preservação do seu significado simbólico como lugar de lutas sociais, memória e educação.
Ainda nos anos 80, os grupos que defendiam o Museu do Trabalho se rearticularam, sensibilizando a opinião pública do abandono da Usina e tomaram a documentação do museu ali então abandonada. Foi criada a Associação dos Amigos do Museu do Trabalho para manter a manutenção do acervo e o governo estadual cedeu um depósito para o acervo na Rua dos Andradas, quase em frente ao Gasômetro, onde funcionou o “provisório” Museu do Trabalho, que ali terminou ficando definitivamente, como assinala matéria do Jornal Folha da Tarde de 8 de dezembro de 1982. Nesta época, Júlio Nicolau Barros de Curtis pediu ao governador Jair Soares o tombamento da Usina com base em seu valor como lugar para o Museu do Trabalho, “já que o Gasômetro é um documento de arquitetura industrial estreitamente ligado à vida de Porto Alegre”, como consta no ofício do processo referente ao tombamento da Usina. Mas o Museu do Trabalho nunca foi para lá.
A memória do trabalho e o trabalho da memória
Com o tombamento, isso não significa que a classe empresarial desistiu da Usina. A ideia de um centro destinado à área comercial continuava nos objetivos dos atores sociais contrários à ideia de um grande Museu do Trabalho. Realizou-se nessa época na ARI uma reunião de empresários do turismo, comércio e hotelaria que queriam transformar o espaço que seria o futuro Teatro Elis Regina num espaço para estes eventos. Conseguem pensar o Teatro Elis Regina atendendo shows de comércio? É disto que se tratam as lutas do passado que precisam ser lembradas. Conseguem ver a Usina transformada num espaço como a Fenac, de Novo Hamburgo? Era esta a luta dos anos 80 que deve fincar raízes no conceito de memória na Usina.
A Usina foi tombada em 23 de maio de 1983, mas desde essa época, persiste o abandono da responsabilidade pelas autoridades quanto ao conceito da Usina. Guimarães lembra a surpresa do então presidente do Sindicato dos Arquitetos, Clóvis Ilgenfritz da Silva, que dizia que “o projeto deveria ter sido feito por técnicos da Secretaria de Desenvolvimento e Obras sob a orientação de um conselho comunitário, e não por uma equipe da Epatur (…) parece que o anteprojeto foi desenvolvido por um estudante, existindo tantos profissionais dispostos a dar sua contribuição”, cita reportagem de Zero Hora de 23 de abril de 1982. Não é exatamente esse o espírito do governo atual, que dá à SP Parcerias, uma sociedade de economia mista de São Paulo, a responsabilidade de um projeto para a Usina quando há equipes e técnicos do serviço público local, de Universidades e da iniciativa privada, como a 3C Arquitetura, (disponível aqui), aptos a desenvolverem projetos nessa área e com conceitos mais alinhados à ideia original de Museu do Trabalho?
Nos anos 80, o grupo do Museu do Trabalho, para avançar o projeto na Usina, convidou para realizar o projeto de restauro Lina Bo Bardi. Com experiência em espaços similares como o Centro de Trabalho e Lazer Sesc, Bardi foi defensora da preservação não só da arquitetura e equipamentos, como da ideia de sediar o Museu do Trabalho, que passaria a ser o Museu Nacional do Trabalho. Em sua visão, a Usina tinha capacidade de fazer convergir para Porto Alegre toda a documentação da história do trabalho nacional, pois não há museu similar no país, exceto o Museu da Indústria e o Museu da Máquina, mas a originalidade da proposta do Gasômetro estava não no progresso das máquinas, que outros museus já fazem, mas na ênfase na transformação social que elas geram. Isso, até em termos turísticos, não ampliaria os atrativos da Usina?
O destino da Usina era limitado no passado pelo fato de que a Prefeitura respeitava o regime de comodato que impedia a sua administração por uma entidade privada. Segundo Guimarães, à época, o então presidente da Assembleia Legislativa, Antenor Ferrari, entregou ofício para fazer a transferência do Museu do Trabalho, então em galpões, para a Usina, mas o município terminou por barrar a transferência, afirma Marcos Flávio Soares. Nova tentativa para o reforço da ideia de Museu do Trabalho na Usina veio quando Ernest H. Berninger, um dos diretores do Museu do Trabalho de Munique, que, depois de visitar a Usina, deixou a sugestão de que não se deve esquecer a comunidade na organização do Museu do Trabalho naquele local. “Ela deve sentir que o Museu lhe pertence”, disse, conforme depoimento à Zero Hora em novembro de 1983.
O Pacto pelo Museu do Trabalho na Usina
No final de 1985, o autor informa que os candidatos a prefeito assinaram a Carta da Usina do Gasômetro, comprometendo-se com o projeto do Museu do Trabalho na Usina. Alceu Collares, eleito, passou a acolher as sugestões para ele, projetando inclusive uma escola municipal no local como “Centro de Preparação de Mão-de-obra integrada ao Museu do Trabalho”. Foi nesse momento em que foi projetada a construção do teatro e, com os projetos de escola e museu concluídos, a implantação dependia de limpeza e recuperação da Usina, que começaram em agosto de 1987, num projeto articulado entre SMC e SMED e coordenado pelo arquiteto Robert Levy. Quer dizer, quando a Usina foi aberta em 29/12/1988, mesmo com sua reforma incompleta, ele assumia a sua vocação cultural, educativa e de memória do trabalho, num projeto que foi continuado pelo Prefeito Olivio Dutra.
O problema foi então a discussão sobre o espaço do Museu do Trabalho por ocasião da reabertura da Usina. “O diretor do Museu do Trabalho, Marcos Flavio Soares, diz que ‘o projeto original previa a ocupação do térreo e do último pavimento pelo Museu do Trabalho [onde hoje é previsto um espaço de coworking], e agora estão relegando para ele apenas 300 metros nos fundos do primeiro pavimento. Nós fomos os inspiradores da luta que durou 10 anos para conquistar a restauração da Usina. Não vamos abrir mão de que o eixo principal do local seja o Museu”, afirma Soares em entrevista a Zero Hora, de 14 de dezembro de 1989. O que é o eixo principal hoje no projeto? É o espaço para exposições do saguão principal, chamado “nave”. Como será o acesso da população pobre a estas exposições? Posso estar errado, mas pelo que entendi da apresentação do projeto, não será uma exposição permanente e gratuita, como defendiam os defensores originais e, inclusive, a arquiteta Lina Bo Bardi, mas exposições temporárias, com cobrança de ingresso e apenas a exposição da história da Usina – e não do Museu do Trabalho -, pequena e ao fundo, será gratuita. Será isso ou entendi errado? No Governo Olívio Dutra, a reivindicação do projeto do Museu do Trabalho já estava no objetivo da criação da Gerência Municipal da Usina do Gasômetro, já que o órgão “tinha como objetivo permitir a sua utilização como ‘Centro Cultural do Trabalho e do Trabalhador’.” Para onde foi essa ideia?
Meu ingresso na Usina
Eu trabalhei na Usina do Gasômetro no período que chamo de “os anos dourados”. Ali vi a alma da Usina se manifestar com grandes exposições de memória, debates, seminários, oficinas, cinema e teatro que mobilizavam multidões. Depois da conclusão de meu mestrado, em 1992, fui servidor cedido da Câmara Municipal à Secretaria Municipal da Cultura por cinco anos. Passei pelo Museu Joaquim José Felizardo, onde aprendi a fazer exposições, pelo Centro de Pesquisa Histórica, que me ensinou a fazer pesquisas de memória oral, e pela Usina do Gasômetro, que me ensinou a organizar seminários. Essa experiência levei para a Câmara Municipal, mas isso conto noutro artigo. Ingressei na Secretaria da Cultura quando era Secretário Municipal o jornalista e escritor Luiz Pilla Vares, no primeiro governo do Partido dos Trabalhadores, o governo Olívio Dutra. Filósofo que influenciou uma geração de intelectuais, ele ajudou a construir a identidade da produção cultural da Secretaria de Cultura: alinhada ao trabalhador, pública e gratuita.
Chamo de Anos Dourados a gestão de Fernando Schuler, que foi sucedida pela de Jussara Bordin, uma gestão de esquerda alinhada ao ideal do trabalhador e que transformou em realidade os objetivos defendidos por Pilla Vares: a criação de um centro cultural com identidade própria, dinâmico, público e inovador. Isso acontecia porque havia dois pressupostos básicos: a liberdade de criação, com uma equipe qualificada, e a autonomia de captação de parcerias, que fazia com que, caso necessário, cada gerente de projeto, como eu, de Humanidades, buscasse os apoios para a realização de sua programação. Qual era a identidade da usina à época? Na prática, a de ser um centro cultural à procura de sua identidade no trabalho: discutíamos em torno deste conceito as principais ideias que fomentavam a criação da Usina e as exposições sempre que possível eram a ela alinhadas; a equipe discutia os fins e objetivos da programação da Usina a partir da ideia de Centro Cultural do Trabalho, mas, claro, não somente dele. O fato de vermos hoje novamente dois grupos em confronto, com a aparente vitória de um deles, de querer, nos termos de Santana e Rodrigues Júnior, privatizar a usina, nos alerta para a importância de voltar ao passado.
A Usina em que vivi
Se os anos 70 e 80 viram a preservação e construção coletiva de um objetivo e identidade para o espaço, os anos 90, em que trabalhei ali, foram os de colocá-los em prática. Eu me lembro da Usina exatamente como a descrita por Márcia Regina Escorteganha e outros autores em Revitalização do Patrimônio Industrial em espaço cultural. Usina Gasômetro de Porto Alegre e Cais do Porto Mauá (disponível aqui). A identidade era definida pelas ações que vi e atividades em que participei, que ajudaram a construir os principais projetos da Usina do Gasômetro a partir da época em que estive lá. Eu vi as origens da Usina das Artes, criada em 2005, nos espetáculos que eu ajudava a fazer de teatro, dança e música que eu ajudava a fazer e que a originaram. Via montar-se um palco para artistas na rua, em frente à entrada lateral, e músicos como Luiz Melodia apresentavam-se gratuitamente. Tudo era conseguido com parcerias à época, restaurantes e hotéis. Havia uma equipe especializada na Usina que coordenava tudo com os artistas, era muito experiente, buscavam e levavam os artistas do aeroporto para os devidos lugares de agenda e conseguia-se hospedagem no City Hotel num trabalho que nada devia aos produtores de alto nível do centro do país. Eram servidores públicos concursados e CCs que, envolvidos com o projeto da Usina, com muito profissionalismo, com parcerias individualizadas por projetos e os recursos captados por eles. É claro que o Teatro Elis Regina era central neste projeto, ainda que não fosse único.
O segundo projeto era a Galeria dos Arcos, um espaço notável porque aproveitava as estruturas da arquitetura que ali estavam. Eu via as crianças pobres das escolas que visitavam a Usina, as via brincando, correndo de um arco para outro, uma experiência que nunca esqueceram porque o lugar tinha também uma função lúdica. Localizada no andar térreo ao fundo da Usina, era um espaço onde montávamos exposições de grandes fotógrafos locais e nacionais, e que depois inspirou a galeria Lunara no 5º andar. Será que continuará acessível a elas? Eu trabalhei no quinto andar antes de se tornar espaço expositivo e quando ali era um espaço administrativo onde diversos setores ali exerciam atividades. Foi uma homenagem ao fotógrafo amador Luiz do Nascimento Ramos, conhecido como Lunara, que possibilitou preservar no lugar o legado do artista. Havia diversas homenagens em outros espaços e é difícil acreditar que o termo Vasco Alves, em um desses espaços, esteja disponível para negociação com o vencedor da licitação, pelo que entendi.
Não conheci o Le Cibernarium, criado posteriormente à minha passagem, em 2004, mas conheci seu antecessor, a Sala Pública de Informática, sem a qual não teria sido possível. Essas salas disponibilizaram nos anos 90 o uso de computadores gratuitos para a população pobre na época de nascimento da internet, já que nem todos possuíam acesso à rede mundial de computadores. O projeto avançou na Companhia Municipal de Tecnologia (Procempa), agregando cursos de qualificação de informática para reduzir a exclusão social e o acesso, inclusive de deficientes visuais, projeto que foi selecionado para receber ajuda financeira da União Europeia, vocação da identidade da Usina voltada para a educação popular.
O último projeto com que tive contato foi a Usina do Papel. Criado em 1992, era uma escola de reciclagem do papel onde se produziam objetos para venda na loja da usina que então existia no andar térreo. Era um programa educativo para sensibilizar a população, principalmente as crianças, sobre a preservação do meio ambiente. Com o tema do colapso climático, deveria estar hoje em evidência, não? Eu não a vi no escopo do projeto. Eu espiava pela porta traseira da sala de aula e via a dedicação de sua organizadora, criando todo o processo didático para acesso às camadas populares. Esta era a base da identidade da Usina do Gasômetro: memória do trabalho, educação para o trabalho, cultura e arte gratuitas para o trabalhador. Isto é enfatizado no atual projeto? Para mim, não.
Uma usina de Power Point
Olho hoje o mapa previsto para os espaços da Usina do Gasômetro que consta da apresentação de PowerPoint. O que eu vejo? No lugar onde antes havia o Memorial da Usina do Gasômetro, dedicado ao trabalho e onde havia objetos museológicos, na frente do prédio, os organizadores da PPP dedicam a uma loja de souvenirs e recepção, que no meu tempo era integrada ao acesso lateral. Não era o ideal, sabíamos, mas era o que existia à época. O segundo e terceiro pavimento, frente, onde hoje é previsto um terraço com hub criativo, não fica claro para mim o destino do espaço do segundo pavimento, pois ali estava, na época em que trabalhei na Usina, a Sala da Administração. Ali trabalhavam colegas que se dedicavam à produção e divulgação da programação de eventos da Usina, Relações Públicas, produção dos shows musicais e dos seminários que eu integrava.
Era um setor orgânico, equipe bem entrosada, qualificada, capacitada (eu tinha mestrado), envolvida com o projeto e que fazia discussões acaloradas para fazer uma programação cultural de alto nível vinculada ao conceito de Memorial da Usina do Trabalho. Fernando Schuller tinha contato com Juremir Machado, que trazia os palestrantes internacionais como Michel Mafessoli e Jean Baudrillard, entre outros; eu ajudava na organização dos seminários e fui responsável pela vinda de Agnes Heller a Porto Alegre e participava da organização das demais atividades. Os principais espaços estão preservados na PPP, é claro, como Teatro Elis Regina, Cinema e Galeria dos Arcos. Mas e a alma da Usina, esse espírito coletivo criativo ligado aos ideais de uma geração? Esse é o caráter imaterial que eu vivi. Agora, vejo as expressões ditas modernas como “hub criativo”, “coworking”, engolir os significados de uma memória do trabalho do passado, apontando para uma memória do futuro que é a do mundo empreendedor, sinônimo da cultura do cada um por si num sistema capitalista que foge da responsabilidade da precarização que produz na classe trabalhadora. Serão espaços gratuitos como seus antecessores? Suas exposições farão a crítica ao atual modelo de exploração do trabalho visando a conscientização da população carente por seus direitos?
Há um amplo espaço destinado em destaque a um restaurante e café, que significam intromissões no projeto original. Entretanto, no passado, era a própria torre da usina, que não vejo ser incorporada ao PPP, que possuía no espaço térreo um bar e depois uma livraria. Eu me lembro que, quando havia um evento pago, era um valor simbólico, justamente para ser acessível à população mais pobre. Será este o objetivo de nossos novos futuros administradores? Nasceu assim ali o embrião do projeto Fronteiras do Pensamento, grandes palestras com valores muito modestos. Hoje, o atual cobra R$ 2.500 por projeto. É disso que se trata? Olho o mapa e vejo que o que é verde, os espaços de permanência, seriam os únicos realmente gratuitos, quer dizer, áreas livres de circulação, pátios e banheiros? Como evitar que um espaço que nasceu da luta dos trabalhadores, teve um projeto destinado a um grande Museu do Trabalho, seja apropriado pelas classes ricas num processo de elitização social contrário aos objetivos iniciais da Usina?
A conclusão é que é preciso rever a herança do passado: a de que a identidade da Usina está na memória do trabalho e na educação das classes populares. Transformar exposições gratuitas em pagas, sem um grande Museu do Trabalho ou projeto educativo em seu interior como a Usina do Papel, morre a função original, cultural, educativa, memorialista, emergindo em seu lugar a função comercial. A Usina não nasceu para ser uma fábrica de eventos ou um shopping de passeio, é um lugar cuja identidade transforma quem o visita não em cliente, mas em cidadão; não é um lugar de consumo, mas de cidadania. Transformá-lo em alavanca de negócios local, espécie de braço da South Summitt, nega os princípios sobre os quais foi concebida porque reforça a banalidade e individualismo dessa geração empreendedora e não um lugar com alma voltada para a cidadania. Enquanto o projeto da PPP for construído com base na visão gerencialista, ele será incapaz de atingir esse patamar de qualidade simplesmente porque seus organizadores especializaram-se em retirar o que é atribuição do Estado para a iniciativa privada. Fim dos objetivos públicos, fim da alma da Usina. O projeto é complexo e bem elaborado, é verdade, mas deixa a desejar não somente porque revela a demissão da autoridade local da questão cultural tal como define a Lei Orgânica, mas porque a PPP atual é incapaz de dar continuidade à história da Usina a partir do passado, é apenas um instrumento de sua consumificação, que cria um Shopping Center em outro formato. É isso que queremos? Se uma PPP é incapaz de conectar a Usina com o seu passado, ela merece ir adiante? Mas essa, é claro, é apenas uma modesta opinião.
Publicado originalmente Sler.
*Jorge Barcellos é graduado em História (IFCH/UFRGS) com Mestrado e Doutorado em Educação (PPGEDU/UFRGS). Entre 1997 e 2022 desenvolveu o projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal. É autor de 21 livros disponibilizados gratuitamente em seu site jorgebarcellos.pro.br. Servidor público aposentado, presta serviços de consultoria editorial e ação educativa para escolas e instituições. É casado com a socióloga Denise Barcellos e tem um filho, o advogado Eduardo Machado. http://lattes.cnpq.br/5729306431041524
Foto de capa: Alex Rocha / PMPA





Uma resposta
Texto de grande valor Histórico!Deve ser considerado por pessoas ligadas ao Ser Trabalho/Vida / Educação /Cultura e não ao setor Comercial/Lucro !É de grande importância a História do Trabalho a preservar !Também aos atores que já realizaram experiências de Eventos no local ,como funcionários públicos !A visão humana é outra !