Por CRISTIAN GÓES, do Mangue Jornalismo*
Relatos de pessoas em Aracajú viciadas em apostas
ALERTA! Esta reportagem contém fortes relatos de pessoas com sofrimento mental em razão da ludopatia, o vício em jogos de azar. Caso você se considere sensível ao tema, não recomendamos a leitura. Além disso, informamos que o Sistema Único de Saúde (SUS) tem um Pronto Atendimento de Saúde Emocional que é acessado gratuitamente pelo telefone 0800 888 6466. Existe ainda o contato de telefone do Centro de Valorização da Vida: 188.
“Antes de começar, peço empatia e muito respeito. Se for para me julgar, não comente. Estou aqui para contar algo que vivi com jogos. Não estou tirando minha responsabilidade, entrei porque quis, mas digo uma coisa: não consegui sair na hora que quis. Chorei vários e vários dias, pedia força a Deus para me tirar de lá. Não sabia o que fazer, só chorar. Por causa do vício em jogos, perdi a herança que meu pai me deixou, meu apartamento”. Este relato é de “Alice”, 28 anos, profissional da saúde que atua em Aracaju.
Apesar de ela autorizar sua real identificação e a publicação do seu desabafo, a Mangue Jornalismo optou por usar o nome “Alice”, preservando e protegendo sua identidade e família. O mesmo ocorreu com os relatos de outras duas vítimas de jogos de azar online entrevistadas para esta reportagem. Para protegê-las, a Mangue usou os nomes ficcionais de “Rosa” e “Cláudia”. Na história das três, somente seus nomes próprios foram alterados. A Mangue entrou em contato com dois jovens que se reconhecem viciados em jogos, mas eles não quiseram falar, mesmo com garantia de anonimato.
O vício em jogos de azar, que hoje estão na palma da mão no aparelho celular, não é mi mi mi, não é brincadeira, não é frescura. É uma doença registrada na Organização Mundial da Saúde (OMS) como ludopatia, o desejo incontrolável de continuar jogando. Ela tem na OMS a Classificação Internacional de Doença como “mania de jogo e apostas” (CID: 10-Z72.6) e “jogo patológico” (CID: 10-F63.0). O vício atinge todas as classes sociais, a maioria de homens entre 18 e 40 anos.
Alguns pacientes com esse transtorno chegam nas unidades públicas de saúde. Dados do Ministério da Saúde indicam que houve um grande crescimento de atendimentos ambulatoriais de pessoas com vício em jogos de azar online, principalmente depois do aparecimento das bets, empresas de apostas e cassinos virtuais. A procura por socorro nas unidades do SUS no país saltou de 65 pessoas no ano de 2019 para 1.292 em 2024. O Intercept Brasil constatou que esse aumento foi impulsionado por três estados: Rondônia (415 atendimentos em 2022), Roraima (465 em 2023) e Sergipe (692 em 2023). Ou seja, Sergipe teve o maior número no país, em 2023, de atendimentos pelo SUS a pessoas viciadas em jogos de azar. Além disso, naquele ano, três pessoas receberam no estado o auxílio-doença pelo INSS por conta desse vício. “É uma patologia, e não uma escolha do indivíduo ou um desvio de caráter”, explica a psicóloga Ana Cristina Novelino Penna Franco.

Dados apresentados na CPI das Apostas Esportivas no Senado estimam que 25 milhões de pessoas no Brasil jogam online regularmente. Só entre janeiro e março deste ano, os brasileiros teriam movimentado cerca de R$ 30 bilhões em cada mês em apostas online. Segundo dados do Banco Central, os recursos oriundos do Bolsa Família desperdiçados em bets chegaram a R$ 3 bilhões em agosto do ano passado. Um levantamento do Instituto Locomotiva em 2024 aponta o perfil de quem joga nas bets.
A psicóloga Ana Franco diz que é importante reconhecer que os jogos online de azar estão cada vez mais presentes na rotina, dentro de casa, podendo causar dependência e prejuízos sociais, psicológicos e financeiros em pessoas das mais diversas idades e situações de vida. Ela defende a regulamentação urgente desses jogos. “Apesar da grande quantidade de pessoas declaradas como jogadores patológicos, sabe-se que os números ainda são bastante conservadores, já que existe uma dificuldade das pessoas reconhecerem o problema e procurarem ajuda”, ressalta.
“Saiam enquanto é tempo, isso não é coisa de Deus”
“Tenho 28 anos, sou mãe de um príncipe lindo, casada e no início do ano passado acabei me envolvendo com jogos online. Sim, é difícil, muito difícil contar essa parte da minha história, mas Deus vem falando comigo para eu compartilhar um pouco da minha história para tentar ajudar alguém próximo que esteja preso nesse ciclo maldito e vicioso”, revela Alice. Ela afirma que nunca teve nenhum tipo de vício, não bebe, não fuma, não era compulsiva. “Nunca imaginei que enfrentaria esse tipo de vício na minha vida”, completa.
Alice garante que não começou a jogar online por ganância. “Não foi. Quando você está nesse ciclo, o dinheiro naquele momento perde até o seu valor, eu só queria tentar recuperar e não conseguia enxergar o tanto de dinheiro que já tinha sido perdido. Foram dias, meses, guardando aquilo ali sozinha, sem coragem de contar para ninguém, medo de contar para meu esposo e acabar com meu casamento, e fazer meu filho sofrer”, conta.
Desesperada e afundada em dívidas por conta do vício em apostas online, ela lembra que um dia saiu do apartamento pela madrugada e foi parar na casa de uma tia. “Eu me desabei. Chorou eu, chorou ela e ela só sabia me abraçar e me pediu pelo amor de Deus para contar tudo. Eu sempre fui organizada, e do nada estava pedindo dinheiro emprestado para meus familiares, amigos e conhecidos próximos. Nunca fui disso. Minha família estava desconfiando, só não imaginava a proporção”, relata Alice
Ela conta que o vício não a fez perder só bens materiais, mas a vontade de sair, aumentou a ansiedade, perdeu confiança, credibilidade, afastou-se de Deus. “Fica uma sensação de vergonha. Eu perdi a herança que meu pai me deixou, meu apartamento. Ele trabalhou tanto para deixar todos bem. Eu não consigo me perdoar, eu peço a Deus todos os dias que Ele e meu pai me perdoem por isso, se não meu coração não vai sossegar”, desabafa Alice.
Graças a apoios, ela está em processo de superação. “Eu ainda não superei, ainda vivo dias difíceis quando lembro de tudo que aconteceu, ainda não consigo me perdoar, sinto falta do meu cantinho, da minha alegria, da vontade de viver. Peço a Deus que não falte saúde e trabalho para mim nem para meu esposo. Tenho fé, mesmo que pareça distante, que vamos reconstruir nosso lar”. Ela faz questão de divulgar sua história para ajudar quem passa pela mesma situação. “Isso não é coisa de Deus!! Saiam enquanto é tempo, não voltem, não queriam recuperar, só vai te arrastar cada vez mais para o fundo do poço”.

“Todo dinheiro que entrava na loja era para jogar”
Cláudia tem 32 anos e era dona de uma loja de roupas na Zona Norte de Aracaju. Era, pois não tem mais a loja. “Comecei a jogar online por curiosidade. Apareceu no celular. Era um passatempo. Jogava o mínimo no cartão. Fui ganhando e tudo que ganhava, jogava. Em vez de sacar, preferia apostar. Perdia uma rodada, mas ganhava na seguinte e não sacava. De uma hora para outra, entrei na fase de perder. O que jogava, perdia e queria recuperar, mas não vinha. No fim do dia, estava com prejuízo de mais de R$ 300,00”, contou.
A empresária conta que todo dia acordava com a missão de recuperar o que perdeu no dia anterior. “Era o mesmo: jogava, ganhava uma rodada e perdia duas, mas não parava. Mudava de joguinho, passei pelo Tigrinho, Tourinho, Vaquinha, cassino, aposta em jogos de futebol e o azar era o mesmo. Era uma bola de neve que não se desmancha, só crescia. Acho que gastava uns R$ 2 mil ou mais por semana, o faturamento de 15 dias”, contabiliza.
Cláudia, mesmo torrando as economias da loja e jogando todos os dias, disse que não se sentia viciada. “Só percebi que as coisas não estavam bem quando comecei a vender quase de graça as roupas para quem pagasse no Pix, no meu Pix, não no da loja. Aí eu assumo: fazia isso para jogar”, confessa. Ela é divorciada, tem um filho de 11 anos e sua irmã a ajudava na loja. “Ninguém sabia de nada. Só depois minha irmã descobriu. O dinheiro não entrava no caixa, eu ficava o tempo todo no celular e ela me pegou jogando”.
Sem receber o real valor pelas vendas, sem pagar fornecedores das roupas, sem repor as peças, deixou de pagar aluguel e fez empréstimos. Passava pelo Calçadão, no Centro de Aracaju, e lá entrava nas empresas de agiotas. Os empréstimos não eram para resolver a loja, mas para manter o vício do jogo. “Estava cega. Não pensava em nada, queria recuperar o prejuízo. Jogava, ganhava pouco e perdia muito. Foi o fim. Tive me desfazer da loja e ainda tenho R$ 52 mil de dívidas. Devo, mas tenho como pagar”, afirma Cláudia.
Ela está desempregada e, junto com seu filho e sua irmã, sobrevivem de um benefício do INSS que sua mãe recebe. “Não procurei ajuda psicológica. Acho que essa quebra geral me curou, foi uma lição. Nunca mais joguei apostado, não tenho dinheiro (risos)”, assegura Cláudia. Ela garante que ficou desesperada, que pensou em sumir do mundo, mas tem buscado conselhos numa igreja evangélica vizinha de casa. “Jogo é mentira, é só perder e perder, é coisa do diabo para destruir você e sua vida, mas vou me reerguer”, acredita.

*Cristian Góes é Reporter e Editor-Chefe do Mangue Jornalismo. Esta reportagem foi realizada e publicada pelo Mangue Jornalismo.
Foto da capa: Jogos de azar on line – Foto divulgação.




