Por LÉA MARIA AARÃO REIS*
Quando chega o pôr do sol
Curiosamente, a França, onde foi realizado o filme Quand vient l’automne, não se alista na relação de países com as populações mais longevas atuais. O envelhecimento da população francesa está atrás daquele verificado na China, Rússia, Índia, Japão e Estados Unidos, apesar de o interesse pela análise científica da expectativa de vida por parte dos centros de pesquisa gauleses ser um tema recorrente, e o cinema francês usá-lo regularmente na sua cinematografia.
Na França, atores e atrizes mais idosos são cultuados e convidados com frequência para trabalhar, e filmes como o de François Ozon, Quando Chega o Outono, cartaz atual nos cinemas brasileiros, são cercados de expectativa e apresentam altas bilheterias. O talento descontraído desse realizador francês de 58 anos de idade encanta os europeus. Ele é admirado pela massa das plateias e pela crítica especializada, e entrega ao público cerca de um filme por ano. Nunca quis trabalhar para Hollywood e diz isso com frequência.
O seu mais recente trabalho, Quand Vient L’Automne, traz duas atrizes de 70/80 anos de idade brilhando em uma trama de suspense e mistério, os temas habituais na filmografia do diretor. Hélène Vincent e Josiane Balasko já trabalharam com Ozon em Graças a Deus (Grâce à Dieu), premiado no Festival de Berlim de 2018 e motivo de grandes debates entre os católicos, na época.
A trama do seu filme atual é esta: em um bucólico vilarejo da Borgonha, Michelle e Marie-Claude, amigas e vizinhas desde a juventude, vivem solitárias, sem sobressaltos, após a aposentadoria. Michelle conseguiu amealhar reservas financeiras com o seu trabalho quando jovem, mas ela e sua filha não chegaram a ser amigas. Ao contrário. A filha (atriz Ludivine Saignier) é fria, distante e implicante com a mãe. Não aceita que ela tenha trabalhado como prostituta superprofissional, em Paris, quando jovem. É o que se apresenta logo no começo ao espectador. Marie-Claude, a vizinha, por sua vez, está com o filho na prisão.
Mas Michelle adora o neto adolescente e está ansiosa para passar um fim de semana com Lucas e a mãe dele em sua casa. Capricha no almoço e prepara deliciosos cogumelos frescos, colhidos naquela manhã no campo, em companhia da amiga vizinha. Mas o fim de semana acaba abreviado quando a filha Valerie passa mal e vai parar no hospital, intoxicada depois de almoçar os tais deliciosos cogumelos (venenosos?). Decide voltar com Lucas para Paris.
A seguir, após essa introdução do filme, a vida continua solitária para Michelle até que ela começa uma amizade com o enigmático filho da vizinha amiga (ator Pierre Lottin, premiado no Festival de San Sebastián). Ele acaba de sair da cadeia e começa a trabalhar para Michelle na jardinagem da casa dela enquanto não guarda dinheiro suficiente para abrir um bar, que é o seu objetivo. É aí que se inicia a trama de mistério, com algum suspense e muitos meios-tons.
Um trunfo do filme é a surpresa que ele proporciona, fazendo de um drama familiar que trata da tranquila vida de uma mulher idosa — que ganhou a vida trabalhando arduamente como prostituta quando era jovem — se mesclar com o suspense originado com as três mortes súbitas que permeiam a história. O tema geracional acaba em segundo lugar e não desaparece de todo, porque o desempenho tocante de Hélène Vincent arrasa, fazendo a ex-prostituta.
Quando Chega o Outono é um filme “crepuscular” de Ozon, para o bem ou para o mal do diretor, como sugerem alguns críticos franceses. Abusa das situações com sentido sempre insinuado e nunca afirmativo, desnorteia o espectador e insere semitons no comportamento dos personagens e dubiedade nos seus atos. O suspense passa na frente do tema geracional, exceto no acerto afetivo das duas amigas idosas.
“O filme é um estudo sobre a morte”, disse Ozon, em entrevista. “Aliás, é o meu filme mais mortífero, porque é a minha história em que mais vemos mortes de personagens importantes”. Ele relembra como teve a ideia do roteiro: “Eu tinha uma tia que fazia o gênero da senhora bondosa e acolhedora. Uma vez, ela fez um jantar e todos ficaram doentes com a comida. Questionamos entre nós: será que ela queria nos matar?”
Agora, Ozon está arriscando o suspense onde se espera um drama de geração, um conto sobre o envelhecimento. Ele defende a escolha ancorando os lances da história na sua protagonista, uma atriz de 80 anos de idade. “Existe uma obsessão pela juventude e eu queria o contrário dela. Queria a beleza das rugas do rosto de Hélène Vincent, uma grande atriz, com muita força, que chegou aos 80 com mais energia do que muita gente jovem que conheço”.
Mesmo que abuse, como dissemos acima, das dúvidas, reticências e das situações inacabadas, Quando Chega o Outono intriga e enreda o espectador. Os personagens têm “dois lados”, como diz o cineasta. O garoto Lucas, no final, se mostra companheiro daquele filho da vizinha que saiu da cadeia. Um comparsa do bem? E antes: sua mãe morreu caindo da varanda onde regava as plantas do apartamento em Paris ou foi empurrada? Por quem?
Não é à toa que um dos admiradores do cinema de Ozon era Ingmar Bergman. Sob a Areia, célebre filme de Ozon com Charlotte Rampling, e hoje um clássico, foi elogiado publicamente várias vezes pelo mestre sueco, que admitiu tê-lo assistido diversas vezes — o que não é pouco.
E na França, em quarenta dias de exibição nos cinemas, Quando Chega o Outono emplacou cerca de 670 mil espectadores. Uma marca portentosa para o seu sofisticado cinema.
Publicado originalmente no Fórum 21.
*Léa Maria Aarão Reis é jornalista.
lustração de capa: Reprodução