Presidentes governantes na encruzilhada

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Por ANTONIO LAVAREDA*

O livro “Presidentes Governantes”, do professor Vitalino Canas, lançado agora no IDP, em Brasília, não é um trabalho intelectual qualquer. Trata-se de uma obra monumental, que faz de todos nós cientistas políticos, juristas e analistas políticos em geral, para sempre seus devedores.

Devemos a ele um trabalho comparativo de fôlego, poucas vezes igualado. À diligência descritiva dos marcos constitucionais dos países enfocados, o professor somou uma cuidadosa análise dos principais fatos políticos havidos ao longo do tempo, sob a égide de cada ordenamento mencionado.

E a partir desse conjunto nos ofereceu diagnósticos precisos dos desafios que os mesmos enfrentam. Falei em trabalho de fôlego, porque os objetos de estudo foram nada menos que 40 países.

Quarenta, repito. Não por acaso ele é presidente do Fórum de Integração Brasil-Europa, o Fibe. Poucas vezes os estudiosos do direito e da ciência política portugueses , brasileiros ou de quaisquer nacionalidades tivemos o privilégio de encontrar análises com escopo tão amplo e com tamanha profundidade.

Ao Brasil, nesta edição, com a mesma acuidade demonstrada ao longo do estudo, ele dedicaria um olhar ainda mais prolongado. Como ele afirma: somos um caso paradigmático. Portanto, nos brindou com valiosas reflexões que, partindo de uma análise multicausal das “malaises” do nosso sistema politico, nos endereçam conclusões, podemos dizer “prescritivas”, igualmente relevantes. É sobre esse capitulo oitavo do livro, especificamente, que tecerei alguns poucos comentários.

Após apontar, com exatidão, algumas das principais evidencias recentes de disfunções, de desarranjos do nosso sistema politico, o autor envereda pela identificação de caminhos corretivos.

Ele argumenta que é necessário superar o risco de vermos nossa dinâmica institucional se transformar duradouramente num Sistema Presidencial de Assembleia sem coligação majoritária, que é uma característica do Lula 3. No qual, o poder reside difusamente no Parlamento, com maiorias ad hoc ali construídas pelos presidentes das casas e pelos lideres partidários. Um arranjo que o autor classifica, corretamente, como politicamente insustentável e sistemicamente ineficiente. Para enfrentar esse problema ele sustenta três hipóteses do que chama “recalibragem do sistema”.

A primeira, seria a blindagem do mesmo na sua integridade constitucional, com o objetivo, já referido tempos atrás por Sérgio Abranches, de se encontrar mecanismos de disciplina das coalizões de governo, para evitar-se a fragilidade presidencial perante a coligação por ele formada, ou diante das coalizões que são estruturadas no Congresso.

A segunda, é dotar-se de maior equilíbrio o sistema de governo. Posto que o parlamento tem a capacidade de encurtar pelo impeachment o mandato presidencial, dever-se-ia atribuir ao presidente o poder de dissolução do Congresso.

Porém, dados os obstáculos consideráveis para a consecução dessas hipóteses, o autor envereda por uma terceira, cuja discussão, como reconhece, segue no Brasil razoavelmente avançada (o ex presidente Temer e o ministro Gilmar Mendes têm com frequência abordado o tema) que seria a evolução para um sistema semipresidencial.

Marcado pelo principio fundamental de equilíbrio entre o presidente, o primeiro ministro mais o governo, e o parlamento.

Com o presidente, continuando a ser eleito diretamente, com a legitimidade politica disso decorrente, e não mais havendo sentido para a manutenção do instituto do impeachment. O governo sendo desempenhado por um órgão executivo colegial deliberativo chefiado pelo primeiro ministro, órgão esse com composição capaz de espelhar a coalizão que o presidente identificou no Congresso a partir dos resultados eleitorais.

Não sendo obrigatória, contudo, a condição de parlamentar para poder integrá-lo. O passo mais “difícil” de ser adotado segundo ele, indispensável à boa operação do sistema, seria o poder presidencial de dissolução do parlamento na ausência de governabilidade em determinadas conjunturas. Difícil, por motivos óbvios.

O professor Vitalino não esqueceu de lembrar aos leitores que essa reforma implicaria: a) necessariamente um referendo — já os tivemos em 1963 e 1993; — b) que esse presidente poderá ser ou menos ativo, no modelo português, ou mais ativo, no modelo francês ( em tempos de normalidade); c) e que seria necessário enfrentar a excessiva fragmentação partidária, pela alteração do sistema eleitoral e das regras de financiamento dos partidos.

Sem discordar das colocações do autor, permitam-me ser ainda mais enfático do que ele foi a respeito de alguns tópicos.

Qual o estado, do ponto de vista homeostático, do nosso sistema hoje?

A despeito da resistente percepção panglossiana por parte de alguns cientistas políticos brasileiros, segundo a qual manter-se-ia a sua funcionalidade, apesar das muitas evidencias em contrário, estamos às voltas com algo que merece o rótulo de “presidencialismo esgotado”.

Com parlamentarismo orçamentário, Congresso sem accountability, e partidos hidropônicos, sem raízes na sociedade, que na Câmara Federal produzem, o que já chamei “513 empreendedores individuais”, autônomos em relação à sociedade, o que explica a aprovação recente naquele plenário, num piscar de olhos, da famosa PEC da Blindagem.

Nessa moldura absurda, a cada quatro anos os brasileiros votam para presidente num “salvador da pátria”, que logo adiante o sistema transformará em “bode expiatório”.

A inviabilidade do atual presidencialismo brasileiro é apontada, de modo dificilmente refutável, por um indicador bastante parcimonioso que adoto há algum tempo, o qual denominei como “Taxa de Sinistralidade dos Presidentes Eleitos”.

Dos eleitos apenas, deixando-se à margem os muitos “vices” que assumiram o cargo. Sinistralidade significando eventos negativos de grande monta sofridos pelo presidente durante o mandato, ou depois dele, mas em sua decorrência.

Para fins de exemplo, essa taxa aplicada à atual Quinta Republica Francesa seria de 12,5%. Com a prisão, iniciada hoje, do ex- presidente Sarcozy. Único dos oito presidentes eleitos diretamente desde 1965 a sofrer sinistralidade. Lembrando que a primeira vitória de De Gaulle foi no Colégio Eleitoral após o Referendo de 1958.

Em três, das nossas seis republicas, elegemos — diretamente — presidentes. Tivemos portanto até hoje, começando em 1894 (uma vez que o primeiro presidente, Deodoro, foi eleito pelo Congresso) 24 disputas presidenciais , porque houve necessidade de outra eleição no início de 1919 para substituir Rodrigues Alves que morrera antes da posse. Pois bem, cada uma dessas repúblicas teve sua fórmula política de estabilidade, para assegurar a governabilidade dos respectivos mandatários.

Na Primeira República, embora fosse um período marcado por tensões que não raro mergulhariam o país no estado de sítio, ainda assim o arranjo governativo adotado pela elite dirigente, a “política dos governadores”, fez com que, dos dez presidentes eleitos diretamente que tomaram posse, apenas um deles sofresse um sinistro: Washington Luís, o ultimo deles, deposto pelo que se convencionou chamar a Revolução de 30.

Na Quarta República, que vai do pós guerra ao golpe de 1964, a exceção dos governos do centro, do PSD, a tônica foi a instabilidade. Dos quatro presidentes eleitos — Dutra, Getulio, JK, e Jânio — dois deles sofreram sinistros. Getúlio, suicidando-se para escapar à deposição certa, e Jânio, renunciando por motivações até hoje não de todo compreendidas.

E chegamos à atual, a Sexta, a Nova República. Quando, independentemente das reeleições, o país elegeu até o momento cinco personagens para ocuparem a presidência. Collor, FHC, Lula, Dilma e Bolsonaro. Essa a ordem da primeira eleição de cada um deles.

Pois bem, dos cinco, quatro seriam vítimas de sinistralidades. Collor, foi impichado (e preso por problemas posteriores ao mandato); Lula foi condenado, preso e tornado inelegível (embora depois reabilitado); Dilma, foi impichada; e Bolsonaro foi declarado inelegível, preso e condenado.

Ou seja, professor Vitalino, saímos de uma taxa de sinistralidade de 10% na Primeira Republica, para 50% na Quarta, e atingimos agora 80% na Nova República. Emerge uma pergunta óbvia, professor: que taxa o Brasil pretende alcançar?

Sabemos, hoje, o quanto as disfunções da nossa democracia explicam não apenas a derrocada dos governantes, como também a elevada insatisfação da população com a própria democracia. O que tem graves consequências.

Sua baixa capacidade de produzir desenvolvimento econômico e social, de reduzir as nossas desigualdades extremas, e de combater a corrupção dentro do arcabouço legal, serviu para produzir o caldo de cultura onde ganhou corpo e legitimidade o radicalismo populista de ultradireita, entre nós agravado pela confessada nostalgia dos seus lideres pela ditadura militar que tivemos. O julgamento da “trama golpista”, com a inédita punição aos extremistas, apesar do seu extraordinário significado, está longe de nos assegurar que fatos semelhantes não ocorrerão adiante.

Para escaparmos a isso, para seguirmos protegendo a democracia, será necessário fortalecê-la. É sua fragilidade que oportuniza o proselitismo dos seus inimigos. Para tanto, não há outro caminho, embora sabidamente difícil, que o das mudanças institucionais.

A transição para o semipresidencialismo será inevitável. Mas como o nosso autor comentou em trecho do livro, essa mudança deve ser incremental.

Por conta disso, é muito importante acertar na escolha do primeiro passo dessa caminhada. Parece difícil que outro não seja senão o da mudança do sistema eleitoral, da regra de escolha da Câmara dos Deputados, das Assembleias Legislativas e das Câmaras Municipais.

O atual, de listas abertas, desordenadas, e votações em grandes distritos — como exemplo, os paulistas tiveram no ultimo pleito que escolher um entre 1.540 candidatos a deputado federal, e um entre mais de 2.000 candidatos a deputado estadual — é uma jabuticaba negativa que individualiza a representação, exige campanhas caríssimas, sub-representa mulheres (o Brasil ocupa 133º lugar no ranking internacional da ONU, com apenas 18,1% do gênero feminino na CF), e inviabiliza o acompanhamento dos parlamentares pelos representados. Pesquisas apontam que, um ano depois da eleição, não mais que três em cada dez brasileiros(as), lembram o nome do deputado(a) federal em quem votaram.

Só com essa mudança — com adoção da lista pré ordenada, ou do voto distrital misto — poderemos enraizar partidos — sobretudo os de centro. E somente com partidos de fato, um governo parlamentar fará sentido aos olhos da sociedade, e poderá vir a gozar da indispensável legitimidade.

Discurso proferido na mesa de lançamento do livro “Presidentes Governantes”, do professor Vitalino Canas, em evento IDP/ FGV Justiça / FIBE. Brasília, em 21/10/ 2025.

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*Antonio Lavareda é cientista político e sociólogo (Ipespe e UFPE). Presidente de honra da Abrapel (Associação Brasileira dos Pesquisadores Eleitorais).

Foto de capa: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

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