Por SOLON SALDANHA*
Para alimentar os moradores de rua, esse contingente humano que nada tem, que vive ao relento e da caridade alheia, qualquer organização ou pessoa precisará em breve de autorização prévia da Prefeitura de Porto Alegre. Um projeto de lei nesse sentido foi protocolado pela presidente da Câmara de Vereadores, Nádia Rodrigues Silveira Gerhard (PL), que gosta de ser chamada de Comandante Nádia, devendo ser votado ainda nesta segunda-feira, 3 de novembro. Isso porque ela tratou de colocá-lo no topo da pauta da sessão do dia e a situação acumula os votos que são necessários para mais esse absurdo.
São muitas as regras criadas, todas elas burocratizando e dificultando o trabalho voluntário que há anos garante a esse povo aquilo que a própria prefeitura nunca demonstrou interesse e capacidade para fazer. Assim, uma vez aprovado o texto, ONGs, entidades e voluntários precisarão, entre muitas outras coisas, apresentar seus documentos e solicitar uma autorização para desenvolver o trabalho. Mais do que isso: terão que, com a devida antecedência, informar local, data e horário de cada uma das entregas. E todos terão que estar com crachás.
A justificativa maior é que a segurança alimentar tem que ser a base de tudo. Então, desde as doações recebidas – que precisarão ser todas elas rastreáveis – até o preparo e o transporte dos alimentos, cada uma das etapas terão que cumprir normas rígidas. A vereadora finge uma imensa preocupação com a possibilidade de que algum dos moradores de rua morra intoxicado. O que jamais aconteceu até hoje, se faz necessário dizer. Entretanto, ela nunca revelou temor algum de que qualquer deles morresse de fome.
Nádia pretende ainda que haja o compromisso dos envolvidos na dura e cotidiana tarefa da solidariedade, no sentido de “manter a segurança e a ordem” dos locais. Ao melhor estilo do que na certa fazia – por ser na época sua obrigação – com a tropa que algum tempo atrás comandava. E, a cereja do bolo: desobediências que forem constatadas, uma vez que este texto legal passe a ter validade, custarão uma multa de R$ 2,9 mil ao voluntário ou organização que as cometerem. O que causará também a retirada do seu direito de continuar contribuindo.
Não há uma estimativa confiável sobre quantos e quais são os grupos que hoje em dia realizam esse trabalho meritório. Alguns deles têm uma ligação com entidades religiosas, mas nem todos. Um dos sem vínculos é o Cozinheiros do Bem, que realiza ações durante a semana entre os bairros Humaitá, Centro, Passo D’Areia, Cidade Baixa e Menino Deus. São 300 voluntários que se organizam pelo WhatsApp e servem até 2 mil almoços. Do que não abrem mão é que as marmitas sejam abundantes, gostosas e servidas quentes. O processo segue higiene rigorosa, com os que manuseiam os alimentos usando luvas e toucas. Existem ainda a Nós por Nós Solidariedade, no Rubem Berta, que entrega tanto pratos prontos quanto cestas básicas; a Associação Prato Feito das Ruas e seus 200 cafés da manhã e 1,5 mil marmitas no Centro; o Grupo Amor em Ação, que também dá lanches para crianças e providencia roupas e agasalhos, além das refeições; o Clube da Sopa com ações semanais; e o fantástico movimento das Cozinhas Solidárias, que apoia um número grande de cozinhas comunitárias e que durante a enchente, por exemplo, foi essencial para milhares de pessoas.
Citei seis, mas são muito mais. É impossível avaliar com precisão aquilo que todos fazem. Em Porto Alegre, há quase 5,3 mil pessoas vivendo em condição de rua. Gente vulnerável, abandonada à própria sorte. Não sei se a vereadora doa sequer tempo para alguma obra de caridade. Torço que sim. Do mesmo modo, desconheço se ela destina alguma fração do subsídio de R$ 22.589,54 que recebe como presidente do Legislativo, além de outros benefícios, para causas sociais. Também torço que sim. Mas, fazendo isso ou não, seria tão positivo se ela não atrapalhasse o trabalho de quem faz uma ou mais dessas ações solidárias, entregando seu tempo, dinheiro, trabalho, atenção, carinho e respeito.
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*Solon Saldanha é jornalista e blogueiro.
Texto publicado originalmente no Blog Virtualidades.
Foto de capa: Cozinha Solidária da Azenha, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), chegou a marca de 200 mil marmitas distribuídas. Em comemoraçao, o movimento serviu bolo na Praça Princesa Isabel. | Isabelle Rieger/Sul21





Uma resposta
Isso daí é a consequência do voto nefasto que os gaúchos de POA deram a essa cidadã auto definida como ” comandante”, deveria sentir vergonha de se auto intitular assim.
Seguramente, a defensoria pública deverá tomar atitude judicial contra esta medida, que mede exatamente o nível solidário que essa senhora tem.