Por MARIANA GARCIA E FELIPE MATEUS*
O filósofo francês Pierre Dardot analisa como a subjetividade mercadológica impacta as relações sociais e a democracia.
Ao assumir a Presidência da República na Argentina, em dezembro de 2023, Javier Milei pôs em curso um projeto ultraliberal. Com a justificativa de reorganizar o país e solucionar sua grave crise econômica, emitiu decretos e projetos de lei promovendo desregulamentações, privatizações e outras mudanças na estrutura do Estado argentino. Também houve uma reorganização dos ministérios, agora reduzidos a apenas oito. Temas como infância e adolescência, educação, trabalho, seguridade social e cultura ficaram reunidos sob o novo Ministério do Capital Humano. Mais do que um projeto econômico, uma nova mentalidade passou a governar os nossos hermanos.
Pensar o neoliberalismo na qualidade de uma lógica que orienta a organização social e impõe uma nova subjetividade aos cidadãos é o trabalho de Pierre Dardot, filósofo francês e pesquisador da Universidade Paris-Nanterre. Na entrevista a seguir, o estudioso explica como governos de direita e de esquerda perpetuam a racionalidade neoliberal, analisa a atualidade latino-americana e ressalta a importância de novas experiências que fortaleçam a democracia.
Jornal da Unicamp – Suas análises partem de uma leitura do neoliberalismo enquanto razão que organiza a sociedade. Gostaria que o senhor explicasse essa ideia.
Pierre Dardot – Minha ideia se distingue da análise habitual de considerar o neoliberalismo como uma política econômica. Quando escrevi A Nova Razão do Mundo (Editora Boitempo, 2016) com Christian Laval, entre 2009 e 2010, éramos vozes solitárias no campo intelectual, porque não havia um discurso do tipo em voga. A diferença é a seguinte: não falamos apenas de uma razão que orienta a formulação de uma política econômica. Quando falamos que o neoliberalismo constitui uma política econômica, consideramos a política do governo militar do Chile, por exemplo, ou do governo de Valéry Giscard d’Estaing, que comandou a França entre 1974 e 1981, ou mesmo de governos recentes. Trata-se de um cenário em que existe uma ideologia, e o governo é levado a aplicar uma política ditada por essa ideologia.
A ideia de racionalidade é diferente. Antes de tudo, essa é uma lógica que organiza as práticas. Para nós, essa ideia revela-se muito importante porque não podemos pôr fim a uma racionalidade da mesma forma como a um governo. Podemos mudar quem está no governo, mas a racionalidade pode continuar sempre a mesma. Isso é importante porque indica que precisamos romper com a racionalidade neoliberal, não apenas com a política neoliberal. Essa política materializa uma ideia de concorrência mercadológica a organizar as relações sociais, a conduzir o funcionamento do Estado. Quanto mais o Estado interioriza as normas da concorrência, do direito privado, mais ele se torna neoliberal de forma orgânica. Não se trata de uma ideologia em primeiro lugar, nem de uma política econômica. Essa é, em primeiro lugar, uma lógica total, uma lógica de práticas.
O filósofo francês Pierre Dardot: “A América Latina desempenhou um papel de laboratório das políticas neoliberais elaboradas pelo Fundo Monetarop Internacional para o continente”
JU – O senhor acredita que o cenário da América Latina favorece a consolidação dessa racionalidade neoliberal?
Pierre Dardot – A região é um terreno favorável [para isso]. Nunca podemos nos esquecer que a América Latina desempenhou um papel de laboratório das políticas neoliberais elaboradas pelo Fundo Monetário Internacional para o continente. Isso teve início com o Chile, durante a ditadura de Pinochet, mas o continente como um todo serviu de laboratório do neoliberalismo. Em 1975, os chamados Chicago Boys assumiram a economia chilena e reformaram completamente o país. Pinochet, no entanto, tinha perfeitamente clara a consciência de que não se tratava apenas de uma questão de política econômica. Jaime Guzmán, que elaborou o projeto da Constituição Chilena de 1980, dizia que o objetivo não era mudar apenas a política econômica, mas transformar todas as relações sociais. Em 1976, houve o golpe civil-militar na Argentina. É interessante notar que as duas ditaduras se apoiaram no neoliberalismo. Porém, no que diz respeito à racionalidade neoliberal, a Argentina foi menos eficaz. No Chile, até hoje existe uma subjetivação neoliberal muito mais avançada que na Argentina, e isso mesmo depois do surgimento de personagens como Javier Milei. Foram 40 anos de dominação neoliberal no Chile. Pinochet deixou o poder em 1990, no entanto, como dizem os chilenos, o pinochetismo ainda não foi embora.
O governo que sucedeu Pinochet, o governo da chamada Concertación, uma coalizão de três partidos, não pôs fim à Constituição de 1980. Os governos da Concertación seguiram até 2013, quando a coalizão ruiu durante a presidência de [Sebastián] Piñera. Piñera não fazia parte da Concertación, mas seu sistema era concertacionista, já que se apoiava nos acordos entre os partidos, algo horrível, porque coloca os cidadãos de lado. Essa lógica permanece no Chile, de um certo ponto de vista. Mesmo [Gabriel] Boric não foge da lógica da Concertación.
JU – Aqui no Brasil tornou-se comum o discurso de pessoas que defendem ser empreendedores de si mesmos e de que o Estado seria um obstáculo para seu sucesso. Essa é uma forma de consolidação dessa subjetividade neoliberal?
Pierre Dardot – Penso que a subjetivação neoliberal no Brasil tem bases históricas diferentes. A ditadura militar de 1964 não foi neoliberal, mas uma ditadura nacional-desenvolvimentista. No Chile, tudo ocorreu ao mesmo tempo e isso faz uma diferença considerável. Penso que [Jair] Bolsonaro se beneficiou desse cenário. Essa subjetivação que você menciona, dos empreendedores de si mesmos, surgiu antes de sua ascensão ao poder, em 2018. Nós sempre temos a ilusão de ser a ascensão ao poder de um governante que cria as condições de subjetivação neoliberal. Mas nem sempre.
Penso ser importante essa questão, sobre como a subjetividade neoliberal ocorre no Brasil, a fim de pensarmos novas maneiras de enfrentá-la e experimentar novas formas de luta e de democracia. A esquerda brasileira baseia-se muito no poder federal central. Isso resulta em algo contraproducente, principalmente se considerarmos a situação atual do terceiro governo de Lula [Luiz Inácio Lula da Silva], porque ele não tem maioria no Congresso. A maioria é formada pela direita e pela extrema direita. Sobra uma margem de manobra muito estreita. Nessa situação, a esquerda precisa reinventar suas formas de intervenção ao invés de se prender a uma espécie de projeção imediata em escala federal. No Brasil, a esquerda tende a pensar que, a partir do momento em que chega ao governo federal, pode transformar tudo. E, sim, muitas coisas foram feitas. Contudo a situação atual mostra-se difícil. Não podemos esperar a ação do governo federal.
Encontro de Bóric e Lula em Santiago, em agosto deste ano: para Dardot, presidente chileno “não foge da lógica da Concentración”
JU – O senhor faz uma crítica à postura das esquerdas, que buscariam sempre o consenso entre os partidos, o que faz com que o pêndulo do poder se aproxime cada vez mais da direita. É o caso de países da América Latina em que a esquerda está no governo, como no Brasil, na Colômbia, com Gustavo Petro, ou no México, até recentemente com Andrés Manuel López Obrador?
Pierre Dardot – López-Obrador é um caso diferente. Ele é muito popular, mas tende ao autoritarismo. Ele esvaziou as instituições de defesa dos direitos humanos e as enfraqueceu. No meu ponto de vista, isso não é uma democracia. Petro atua de forma diferente. Acho interessante que, pelo menos no início, foi diferente de Boric no Chile, que expressou o espírito do concertacionismo por meio dos acordos com outros partidos. Petro, não. Ele comprou uma briga com os juízes do país que começaram a fazer acusações contra ele, algo clássico na América Latina. Sua resposta distoa da de Boric, algo diferente do que acontece no Brasil. Essa foi uma resposta ofensiva. Ele chamou seus partidários a protestarem, houve manifestações importantes contra a ofensiva dos juízes. Acredito que ele foi corajoso e não expressa nem um pouco o espírito da Concertación, uma atitude bem diferente da esquerda chilena, por exemplo, ou mesmo dos partidos de esquerda brasileiros. Penso ser preciso que as esquerdas se renovem e tenham um espírito mais ofensivo, porque hoje a grande dificuldade é o fato de as esquerdas estarem na defensiva. É necessário se opor com uma lógica diferente, contra a racionalidade neoliberal.
JU – E, neste contexto latino-americano, como interpretar e lidar com a situação da Venezuela de Nicolás Maduro?
Pierre Dardot – Esse quadro é uma tragédia para a Venezuela e para toda a América Latina. Na verdade, o que acontece lá decorre da erosão democrática de todo o continente, não sendo apenas uma consequência do cenário interno do país. Precisamos reconhecer que [Hugo] Chávez tinha um caráter autoritário em sua forma de governo, mas diferente de Maduro. Desde a morte de Chávez, a situação mudou completamente. Maduro está no poder desde 2013 e acredito que, pelo menos alguma vez antes deste último pleito, já tenha perdido as eleições. No entanto continua no poder de forma obstinada e, para isso, tornou-se ainda mais autoritário. Isso é trágico porque, francamente, se sou um cidadão venezuelano, não sei o que fazer em um cenário no qual preciso escolher entre María Corina Machado e Maduro. Atualmente, o regime venezuelano é totalmente autoritário e as mínimas formas de participação popular que existiam durante o governo de Chávez acabaram suprimidas. Por outro lado, Corina Machado é pró-Milei. Ela considera boas as políticas de Milei. De um lado, há uma extrema direita neoliberal e, de outro, alguém que tenta representar uma sobrevida do chavismo, mas que, na verdade, entrega uma ditadura populista.
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JU – Em sua obra, o senhor atribui parte dos problemas que ocorrem na América Latina ao modelo presidencialista adotado pelos países e defende a democracia deliberativa. Como um sistema desse tipo funcionaria?
Pierre Dardot – Eu me apoio nas ideias do jurista argentino Roberto Gargarella. No entanto, para mim, a verdadeira democracia é uma extensão da prática da deliberação coletiva. Para compreender essa ideia, temos de repensar a lógica da separação de poderes. Por exemplo, da Suprema Corte dos Estados Unidos participam juízes indicados pelo presidente, que leva em conta a postura desses juízes, como ser contra ou a favor do aborto. Isso não é democrático. Esse não pode ser o Poder Judiciário de uma democracia. Na visão do constitucionalismo deliberativo de Gargarella, um tribunal constitucional não pode modificar a ou decidir sobre a constitucionalidade de uma lei sem considerar a vontade dos cidadãos. Nessa perspectiva, um tribunal constitucional deve articular a intenção dos poderes com a vontade popular por meio de referendos. Por esse ponto de vista, essa é uma democratização radical.
A tentativa recente de reformar a Constituição chilena é uma aplicação do princípio da deliberação coletiva. No entanto aconteceu uma experiência fechada, que não atingiu o conjunto da população. Houve discussões apenas entre determinados setores, não com o conjunto da sociedade. A Constituição resultante desse processo foi muito vanguardista. Por exemplo, inclui-se no texto a questão da identidade não binária de gênero. Mas será que isso deve constar em uma Constituição? Na minha visão, houve um exagero. A ideia era que essa fosse uma Constituição dos movimentos sociais. O resultado, porém, foi que esses movimentos afastaram-se da sociedade, levando ao fracasso do processo. Quando se utiliza o recurso da deliberação coletiva, precisamos ter cuidado para não fazer recortes da sociedade. Estima-se que 25% da população chilena tenha participado de protestos entre 2019 e 2021. Ao negligenciar toda a extensão da sociedade, é inevitável uma volta ao ponto de partida. Foi justamente o que aconteceu no Chile.
JU – O senhor acredita que as práticas de deliberação coletiva são uma forma de frear o avanço da racionalidade neoliberal?
Pierre Dardot – A deliberação coletiva é uma forma de criar brechas, o que já é importante. No entanto, para pensarmos no fim da racionalidade neoliberal, temos de projetar um horizonte temporal muito amplo, uma vez que a razão neoliberal é global. As ações de movimentos sociais e os intercâmbios entre movimentos de países diferentes, que levam a práticas transfronteiriças e a alianças transnacionais entre movimentos, revelam-se fundamentais. A razão neoliberal, porém, é uma razão global. Não podemos resolver essas questões apenas dentro dos limites nacionais, porque em tudo há a razão neoliberal. Veja o exemplo do Estado chinês. Não se trata de um Estado neoliberal, mas o país joga um jogo de razão neoliberal. Há um método para manter o Estado centralizado, ditatorial, há uma grande vigilância sobre os cidadãos, o que é terrível. Contudo, ao mesmo tempo, vemos uma inserção do Estado chinês no jogo da racionalidade neoliberal. Essa é uma situação muito complexa, e a China oferece um bom exemplo disso.
Publicado originalmente em Jornal Unicamp.
Foto de capa: Protesto em Buenos Aires contra o Decreto de Necessidade e Urgência de Javier Milei: empossado em dezembro de 2023, presidente argentino adotou projeto ultraliberal
Foto: Lúcio Camargo Antoninho Perri/Fotos Públicas
Edição de Imagem Alex Calixto Paulo Cavalheri
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