Por NUBIA SILVEIRA*
Você, alguma vez, sentiu que, em milésimos de segundo, sua vida deixou de ser real e tornou-se uma ficção opressiva, ditatorial, voluntariosa e com plenos poderes sobre seus atos? Não? Feliz de você, porque, na semana passada, vivi algumas horas me perguntando o que tinha acontecido com a realidade em que eu desfrutava de uma vidinha tranquila, em que meus direitos eram, pelo menos, aparentemente, respeitados.
Antes de contar o que aconteceu, preciso deixar claro que sou de uma geração analógica, vivendo, há alguns anos, neste mundo digital, em que o maior risco é ter fé, acreditar que se é livre, para fazer ou dizer o que queremos, desde que não façamos mal ao outro. Na minha infância, numa cidade pequena, a menos de 100 quilômetros de Porto Alegre, o telefone era uma caixa preta, pendurada na parede, ligada a uma central telefônica. Para nos comunicarmos com quem quer que fosse, devíamos apenas retirar o fone do gancho e pedir para a telefonista nos conectar com esta ou aquela pessoa. Na minha velhice, vivo presa a um celular, que uso para trabalhar, resolver meus problemas e falar com o mundo.
Não resisti às novas tecnologias, que tornaram meu trabalho de jornalista mais rápido e eficiente. Adotei, feliz da vida, a internet, o computador e, mais do que tudo, o celular. Na ponta dos nossos dedos está tudo o que precisamos: redes sociais, e-mail, bancos, cartões de crédito, aplicativos de compra, música, filme, mapas, fotos, pesquisas (nem sempre confiáveis) e mensagens de todos os tipos, das verdadeiras às falsas, mentirosas, espalhadoras de ódio.
Sempre soube de todos os riscos que corremos, neste mundo virtual. Nunca desconheci que as big techs dominam até nossos pensamentos. Mas decidi viver numa realidade paralela, achando que eu jamais cairia nas garras e nas armadilhas destas grandes empresas. Coisas de velhinha!
Cada vez que pensava nos perigos que a tecnologia representa, aplacava minhas ansiedades, me dizendo que não sou ninguém importante ou interessante, a ponto da Meta, por exemplo, olhar para mim. O que as big techs iriam querer comigo? Não sou famosa. Não sou infuencer. Não espalho fake news, nem discursos de ódio. Portanto – sempre acreditei – estaria livre de qualquer ataque. Então, imaginem o susto que levei quando o zap desapareceu do meu Iphone, sem aviso prévio. Na tela do celular apareceu o recado de que o meu número de telefone estava sob suspeita e que a empresa Meta avaliaria a minha conduta. Daria uma resposta dentro de 24 horas. Se eu quisesse seguir com o aplicativo de mensagem deveria usar outro número de telefone.
Minha reação foi crescendo aos poucos. Primeiro, fiquei chocada. Depois, passei a me achar culpada de algo que eu não sabia o que era. Me perguntava, como qualquer criança castigada, sem razão, o que eu teria feito de errado. Naquele momento, estava montando uma comunidade, algo oferecido pelo aplicativo. Finalmente, depois de alguns segundos, veio a reação correta: fiquei profundamente indignada com o ato arbitrário, com a invasão da minha privacidade e, acima de tudo, com o poder da Meta sobre mim.
Para avisar familiares e amigos, com os quais me relaciono, sem parar, por mensagens, coloquei um post no Facebook avisando que tinha sido cassada pelo WhatsApp. Na hora da raiva, esqueci que as duas empresas pertencem à mesma big tech. Não demorou muito para o Face me avisar que havia retirado a minha postagem, por não estar de acordo com as regras deles. Claro que eu poderia recorrer, mas não me deram a chance de dizer o que eu gostaria de afirmar em minha defesa. Apenas marquei uma das opções que me apresentaram. Optei pela que afirmava que a empresa havia adotado uma avaliação muito rigorosa. Esta segunda censura comprova que estamos nas mãos dos Mark Zuckeberg, Elon Musk, Pavel Durov, Bill Gates, Larry Page e outros bilionários que se sentem deuses e donos de um poder supremo sobre a humanidade. Lutar contra eles não é fácil, porque nos faltam recursos e – o pior – porque nos entregamos, comodamente, às decisões dos algoritmos, que nos criam necessidades de consumo que, na verdade, não temos.
Sei, sei, sim, que eu estava vivendo no mundo da Velhinha de Taubaté: acreditando que jamais cairia nas garras destas grandes empresas, porque sou uma velhinha comportada, respeito o direito alheio, acredito que podemos viver numa democracia inclusiva e que as legislações nacionais são capazes de frear este poderio. E é aqui, justamente aqui, que a porca torce o rabo. Se os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário brasileiros continuarem brigando, como vêm fazendo, principalmente, em decorrência da ganância de deputados e senadores, o país não terá como criar leis que nos protejam contra a maior de todas as cobiças, a das big techs, empenhadas em roubar nossas riquezas e interferir nas nossas vidas.
PS: O zap me foi devolvido com a desculpa de que houve um erro. Teriam me confundido com outra pessoa. Será que o algoritmo endoidou?
*Nubia Silveira é jornalista.
Ilustração da capa: Entrelinhas – Caio Gomez.
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