Por CASTIGAT RIDENS*
Há revelações que não exigem acusações diretas. Bastam perguntas bem formuladas. Ontem, em furo publicado no UOL, a jornalista Daniela Lima trouxe à luz um conjunto de fatos que, juntos, formam uma interrogação incômoda demais para ser ignorada: por que um juiz determinaria gravações ilegais contra autoridades com foro privilegiado e, depois de obtê-las, optaria por escondê-las fora dos autos e longe das instâncias competentes?
A Polícia Federal encontrou, na 13ª Vara Federal de Curitiba, documentos, despachos e gravações atribuídos ao então juiz Sérgio Moro que indicam a realização de escutas clandestinas envolvendo integrantes do Tribunal de Contas do Paraná, desembargadores do TRF-4 e outras autoridades. O material só veio à tona porque o Supremo Tribunal Federal, diante da recusa reiterada da Vara em encaminhar esses arquivos, autorizou uma busca e apreensão.
A democracia brasileira, ao que tudo indica, precisou de um mandado para acessar o próprio Judiciário.
Escutas sem processo, processo sem destino
Os fatos revelados não apontam para interceptações clássicas destinadas à produção de prova. As gravações não instruíram ações penais, não fundamentaram denúncias e não foram submetidas ao crivo do STJ ou do STF, como exige a Constituição quando se trata de autoridades com prerrogativa de foro.
O que elas continham, conforme já se sabe, eram conversas de teor político-institucional, avaliações sobre investigações, críticas ao método da própria Vara, manifestações de receio e comentários sensíveis sobre a atuação do Judiciário e dos órgãos de controle. Em resumo: material potencialmente constrangedor, mas juridicamente estéril.
E aqui a pergunta retorna, insistente: se não serviam como prova, para que serviam?
O despacho que torna a pergunta inevitável
A resposta não está escrita, mas o indício é eloquente. Entre os documentos apreendidos está um despacho de julho de 2005, atribuído a Moro, determinando que um colaborador realizasse nova gravação de uma autoridade porque a anterior não havia sido “satisfatória para os fins pretendidos”.
Fins. Pretendidos.
Não se tratava, portanto, de colher casualmente um diálogo. Tratava-se de obter determinado conteúdo. E, uma vez obtido, esse conteúdo não seguiu para os autos, não foi remetido às instâncias superiores e não produziu efeito processual algum. Foi guardado. Arquivado. Preservado.
Quem guarda algo que não serve ao processo guarda para outro uso.
Informação como instrumento de poder
Na prática, o que emerge dos achados da PF é um sistema informal de coleta e retenção de informações sensíveis, algumas delas referentes à vida íntima de autoridades que, por definição constitucional, estavam fora do alcance do juiz de primeira instância. Um arquivo paralelo, mantido sob controle restrito, capaz de desequilibrar relações institucionais sem jamais se expor à luz do contraditório.
Não é irrelevante notar que alguns dos desembargadores cujas conversas foram gravadas integravam o TRF4, a corte que, anos depois, confirmou a condenação de Luiz Inácio Lula da Silva e ainda aumentou sua pena, em um julgamento relâmpago que entrou para a história não pela sobriedade, mas pelas manifestações pouco usuais que o cercaram.
À época, o então presidente do TRF-4, Thompson Flores, declarou publicamente que a sentença de Sérgio Moro era “irretorquível” — antes mesmo de tomar conhecimento de seu conteúdo. Meses depois, foi o mesmo Thompson Flores quem revogou, de forma excepcional, a decisão do também desembargador Rogério Favreto, que em seu plantão havia concedido habeas corpus a Lula e determinado sua soltura, numa intervenção que também fugiu aos ritos ordinários, já que o presidente não tem autoridade para revogar uma decisão de outro desembargador.
Diante dessa sequência de fatos, a pergunta deixa de ser retórica e passa a ser institucional: que papel desempenha a posse de informações clandestinas quando decisões judiciais de enorme impacto político parecem previamente alinhadas?
O silêncio que fala
Não é preciso escrever a palavra “chantagem” para que ela ecoe no texto dos fatos. Basta lembrar que informação clandestina só tem valor quando pode ser usada. E que seu uso mais comum, quando não vira processo, é a pressão silenciosa. O constrangimento implícito. O “nós sabemos”.
Não por acaso, esse material jamais foi espontaneamente encaminhado ao STF. Só saiu da gaveta quando o Supremo mandou a PF buscá-lo.
A defesa que agrava o quadro
A reação pública de Sérgio Moro tentou reduzir tudo a tecnicalidade histórica, evocando entendimentos antigos sobre gravações feitas por um dos interlocutores. A explicação ignora o ponto central: não se tratava de gravação espontânea, mas de orientação judicial reiterada para produzir escutas envolvendo autoridades com foro, seguida da ocultação deliberada do material.
Se o objetivo fosse jurídico, o destino seria o processo. Se fosse institucional, o destino seria o Supremo. O destino real foi a gaveta.
Do herói técnico ao personagem coerente
Politicamente, a revelação desmonta o pilar central da mitologia lavajatista. Moro construiu sua imagem como juiz técnico, avesso à política, obediente à lei. O que os documentos revelam é outra figura: um magistrado que operava no limite — e além — das regras, acumulando informação como ativo de poder.
Nesse contexto, sua posterior adesão ao bolsonarismo deixa de parecer desvio e passa a soar como coerência. O desprezo pelas garantias nunca foi acidente. Foi método ensaiado.
A indignação que não pode ser contida
Não se trata de condenação antecipada. Trata-se de lógica elementar. Juízes não coletam segredos. Julgam fatos. Quando passam a fazer o primeiro, a democracia entra em risco.
As escutas ilegais encontradas na 13ª Vara não são apenas um escândalo jurídico. São o retrato de uma cultura que naturalizou a exceção e chamou isso de virtude. Ontem, Daniela Lima fez jornalismo. Agora, resta saber se as instituições terão coragem de escutar até o fim.
*Castigat Ridens’ é um pseudônimo criado a partir da expressão latina “Castigat ridendo mores”, que significa “corrige os costumes rindo” ou “critica a sociedade pelo riso”, muito usada no contexto da comédia como instrumento de crítica social.
Ilustração da capa: Gravações ilegais e clandestina decretadas por Sérgio Moro – Imagem gerada por IA ChatGPT




