Por CHRISTIAN VELLOSO KUHN*
Nesse último domingo, dia 07 de setembro, assistimos uma cena estarrecedora e vergonhosa. No dia em que se costuma celebrar a nossa independência, falsos patriotas se aglomeraram e estenderam a bandeiras dos Estados Unidos da América. Tamanha incoerência e irracionalidade, de tão costumeiras nas reuniões da extrema-direita, já não causam mais tanta surpresa.
Que Bolsonaro e seus asseclas são entreguistas e vendilhões, isso não é novidade para os mais sensatos e minimamente instruídos. Todavia, seu grupo não constitui o único que merece críticas pelo comportamento inadequado perante à defesa da Soberania Nacional.
Pelo bem da verdade, esse tema só veio à tona depois da ação errática e enfadonha, adotada pelo presidente norte-americano Trump, de elevação das tarifas que incidem sobre produtos brasileiros exportados para os EUA. As suas reais motivações já foram debatidas em artigo anterior[1]. Até então, o assunto não vinha sendo tratado com a devida importância pelo governo brasileiro, tampouco pela parcela da esquerda luloafetiva.
A soberania brasileira não foi duramente atacada a partir de meados de 2025, como muitos parecem ignorar. Ela é historicamente afrontada desde nossa descoberta. Fomos colonizados e explorados. Sofremos com o Tratado de Methuen (também chamado de Tratado de Panos e Vinhos), acordo militar e comercial firmado em 1703 entre Inglaterra e Portugal, que nos impôs a exploração do ouro para quitar dívidas dos portugueses junto aos ingleses, e atrasou nossa industrialização (e dos próprios lusitanos) até 1836. Após a Independência, passamos mais de 70 anos sob um regime monárquico, cujo imperadores (Dom Pedro I e II) tinham raízes com nosso país colonizador, Portugal. Depois, com a instituição da Velha República, se por um lado passamos a sofrer menos interferência estrangeira, por outro, a política do café com leite imposta pelas oligarquias mineira e paulista comprometeu nosso desenvolvimento econômico, social e regional.
Mesmo no período em que o trabalhismo e o desenvolvimentismo prosperaram no Brasil entre 1930 a 1963, nos governos Vargas, JK e Jango, tivemos dois episódios de tentativas de golpe (1954 e 1961), evitados principalmente por dois grandes líderes trabalhistas (Getúlio Vargas e Leonel Brizola). Infelizmente, em 1964, o atentado à democracia, sob organização dos militares, com apoio e participação de segmentos conservadores da sociedade civil e de forças estrangeiras (EUA), impeliu o país sofrer com uma longa ditadura civil-militar até 1985, que resultou no esmorecimento dos direitos dos trabalhadores e recrudescimento no poder de compra dos assalariados, dentre outras mazelas socioeconômicas – a despeito da continuidade do Processo de Substituição de Importações (PSI) iniciado na década de 1930.
Sucedendo a transição democrática no governo Sarney, sob a presidência do liberal Fernando Collor, o Brasil ingressou no processo de globalização seguindo a cartilha do Consenso de Washington, que nos forçou a adotar políticas de uma agenda neoliberalizante que preconizava privatizações, abertura comercial e financeira e estabilização macroeconômica, numa concepção de Estado Mínimo que iniciou o processo de desmonte de todos os avanços com a política desenvolvimentista empreendida desde o primeiro governo Vargas.
A globalização e o neoliberalismo foram o fio condutor dos dois governos Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), concretizado pelo Plano Real nas suas duas etapas: a primeira sob o regime de câmbio fixo (1994-1998) e sob o regime de câmbio flutuante, superávit primário e metas de inflação iniciado em 1999, o chamado tripé macroeconômico (e vigente até hoje). Se o Plano Real logrou a estabilização de nossa moeda, aprofundou três processos de DES´s: DESestatização, DESnacionalização e DESindustrialização. Embora o primeiro processo tenha sido atenuado nos Governos Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016), com avanços na redução da desigualdade socioeconômica, miséria e pobreza e desemprego, por outro lado, não foram estancados e revertidos os dois últimos – em que pese as tentativas frustradas de políticas industriais, como Plano de Ação do Crescimento (PAC), em 2007, e Brasil Maior (2011).
A forte recessão iniciada em meados de 2014, e aprofundada nos dois anos seguintes, serviu de pano de fundo para os planos conspiracionistas de Michel Temer, Eduardo Cunha e companhia de impeachment da Presidente Dilma, retomando o protagonismo de uma agenda neoliberal -para o qual a chapa vencedora não foi conduzida à presidência em 2014 – agora sob um conservadorismo nos costumes evidenciado já em meados de 2016[1]. A orientação ortodoxa da política econômica, consolidada através do Teto dos Gastos Públicos (2016) e Reforma Trabalhista (2017), mesclada com o já citado conservadorismo nos costumes, serve de condão para o Governo Bolsonaro (2019-2022), não apenas dando-lhe prosseguimento, mas radicalizando-a sem pruridos e comiseração (como é de costume da extrema-direita). Reforma da Previdência (2019), Marco do Saneamento (2020) e Privatização da Eletrobras (2022) são apenas algumas das ações de continuidade dessa agenda.
A eleição de Lula para presidente em 2022, reeditando o presidencialismo de coalizão dos seus dois mandatos anteriores, interrompe muito mais o conservadorismo de costumes (com acenos ao identitarismo), do que uma mudança radical na política econômica. Tanto a tímida Reforma Tributária, quanto o Novo Arcabouço Fiscal (NAF), ambos no primeiro ano de mandato, foram iniciativas muito mais para abrandar a ortodoxia macroeconômica do que para romper abruptamente com essa lógica. Observa-se certa dialética com a troca de gestão de Bolsonaro por Lula: há mudança, pois se retoma o diálogo, a civilidade, o respeito às regras democráticas e finda o autoritarismo, assim como confere maior sensibilidade social nas decisões governamentais; todavia, há também continuidade, com a austeridade fiscal (atenuada com o NAF) e a política de juros altos do Banco Central (mesmo com a substituição do presidente indicado por Bolsonaro), sem revisão das reformas impopulares dos dois antecessores. Mesmo as propostas de alteração do IOF e elevação do imposto de renda, ainda que debatidas nas redes sociais com o uso de argumentos relativos à justiça tributária, mostram-se notoriamente voltadas para fins de arrecadação, revelando a postura fiscalista do atual governo. Resumidamente, nos últimos 35 anos, os preceitos neoliberais de fiscalismo e financeirização reinaram e tutelaram todos os governos, em maior ou menor grau. O tripé macroeconômico, instituído como resposta a uma crise monetária e cambial em 1999, segue vigente como base de sustentação da “credibilidade” da política econômica para cada governo eleito, e qualquer tentativa de ajuste ou mudança de diretriz, sofre chantagem dos agentes do mercado financeiro, apoiados pela grande mídia. Mesmo os governos ditos progressistas jamais conseguiram (e alguns nem tentaram) romper com os entraves fiscalistas e da financeirização.
Nesse ínterim, não fora apresentado nenhum Projeto Nacional de Desenvolvimento formalizado, apenas meras iniciativas esparsas compensatórias do processo de desindustrialização em curso desde meados dos anos 1980, muito aquém da postura desenvolvimentista dos governos de Vargas, JK e Jango.
Por conseguinte, não basta a redação de manifestos por alguns partidos políticos do campo progressista, pregando “unidade em defesa do Brasil”[1], de forma reativa e atrasada, somente após uma elevação tarifária imposta pelos EUA, quando há mais de três décadas – em que tais partidos fizeram parte do governo por pelo menos metade do período – nossa soberania vem sendo confrontada e desmantelada pelas grandes corporações internacionais e o mercado financeiro, com apoio da grande mídia, forçando a adoção de políticas liberalizantes e impopulares, comprometendo nosso patrimônio público e freando nosso desenvolvimento socioeconômico.
Ademais, a concepção de soberania deve ser ampliada, como apregoa a Carta pelo Novo Trabalhismo, apresentada no Fórum do Novo Trabalhismo[2], ocorrido em São Paulo, em 24 de agosto de 2025 (mesmo dia e mês do suicídio e da Carta-Testamento de Getúlio Vargas). Através da imagem abaixo (Figura 1), é possível perceber que existem várias dimensões que o termo soberania pode abarcar. A mais conhecida é a geopolítica, todavia, diante do crescimento das Big Techs, é preciso também pensarmos em uma soberania digital. Além disso, um país sem soberania econômica e social, com melhor distribuição da renda e riqueza e fortalecimento da sua capacidade produtiva, capaz de enfrentar o rentismo, aliado a um Projeto Nacional tecnológico, levando em contaaspectos ambientais e territoriais, que permita uma neoindustrialização sustentável, tampouco terá autonomia. A dimensão política, igualmente, faz-se necessária, pois um sistema político que não dá voz e ignora os interesses de seu povo sequer pode ser considerado devidamente democrático. Para tanto, a dimensão moral,com a defesa da ética e dos interesses coletivos e republicanos, bem como a cultural, respeitando e fomentando a identidade, valores e crenças nacionais, contribuem para esse direcionamento.
Figura 1 – Soberania conforme defendida na Carta pelo Novo Trabalhismo. Elaborado pelo autor

Quando nos deparamos com essa visão sistêmica de soberania, compreendemos que os “soberanistas de ocasião”, com sua passividade e omissão diante de várias das dimensões supracitadas, presos em interesses particulares e eleitoreiros, precisam aprender muito sobre a nossa história, principalmente com as experiências trabalhistas e desenvolvimentistas de outrora, mas fundamentalmente necessitam ampliar sua concepção de soberania, de modo a agir e governar visando o progresso e desenvolvimento social e econômico do país, seguindo o exemplo de grandes estadistas como Vargas, JK e Jango.
Referências
[1] Economista. Doutor em Economia do Desenvolvimento.
[3] Dois exemplos são emblemáticos desse apelo conservador nos costumes: a formação de um ministério predominantemente masculino, branco e mais “experiente” e a esposa do novo presidente, Marcela Temer, que apareceu capa da revista Veja com o título “Bela, Recatada e do Lar”.
[4] Manifestos esses, hipocritamente, muito mais motivados por questões eleitoreiras, do que realmente com o propósito anunciado.
[5] Ver na íntegra em https://www.instagram.com/p/DM8IhVoulpE/?igsh=MWwwNm0zbjR2dWM2Mg
*Christian Velloso Kuhn é Professor e economista do Instituto PROFECOM.
Foto de capa: Reprodução





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Gostei muito!