Por EDELBERTO BEHS*
Até mesmo o mais qualificado profissional da psicanálise certamente terá dificuldades para decifrar a alma dos barões da imprensa brasileira e seu comportamento nos últimos 70 anos.
Sempre na defesa de interesses de uma elite econômica, mandachuva, retrógrada, mas com discursos de modernidade, de defesa da democracia e “interpretando a vontade” do povo, a grande imprensa colocou o governo Vargas contra a parede, apoiou o golpe cívico-militar de 1964, elegeu o caçador de marajás, incentivou o impedimento da presidenta Dilma Rousseff foi um sustentáculo da Lava Jato, ajudou na prisão de Lula, defendeu a candidatura de Jair Messias Bolsonaro e agora tenta desqualificar o governo Lula III.
Em 70 anos não aprendeu nada – porque seus interesses são outros – sobre a construção de uma nação mais justa e igualitária, de inserção autônoma no cenário político internacional, de políticas públicas que conferem saúde, segurança, educação qualificada para que a população possa bem se inserir no mercado de trabalho e gozar de vida plena. A grande mídia parece estar sempre atenta para que o povo, que tanto ela diz defender, fique relegado a um gandula num campo de futebol.
Para não esquecer:
O Globo, em editorial no dia 2 de abril de 1964, assinalava:
Salvos da comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares que os protegeram de seus inimigos.
Este não foi um movimento partidário. Dele participaram todos os setores conscientes da vida política brasileira, pois a ninguém escapava o significado das manobras presidenciais.
E festejava depois:
Ressurge a democracia! Vive a Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente das vinculações políticas simpáticas ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é de essencial: a democracia, a lei e a ordem.
Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas que, obedientes a seus chefes, demonstraram a falta de visão dos que tentavam destruir a hierarquia e a disciplina, o Brasil livrou-se do governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições.
O Jornal do Brasil justificava, em editorial, no dia 1º de abril:
Golpe? É crime só punível pela deposição pura e simples do Presidente. Atentar contra a Federação é crime de lesa-pátria. Aqui acusamos o Sr. João Goulart de crime de lesa-pátria. Jogou-nos na luta fratricida, desordem social e corrupção generalizada.
E arrematava:
…A legalidade está conosco e não com o caudilho aliado dos comunistas.
Ou seja, não foi golpe!
A Folha de S. Paulo criticava, no dia 1º de abril, o discurso do presidente João Goulart proferido na Central do Brasil, no Rio, em 13 de março, anunciando reformas de base, seguindo um desejo “comunista”:
Mais forte, porém, do que esse anúncio de benefícios salariais foi a insistência nas reformas de base, a reforma que nem o presidente nem os seus assessores até agora deram conteúdo. Usou delas, como tem repetidamente feito, pura e simplesmente como aríete contra a Constituição, que ele deseja reformar a qualquer preço […] Não poderia faltar, é obvio, o condimento do ataque aos privilegiados […] todos aqueles brasileiros que lutam por situações democráticas e legais, pois estes é que são hoje os “privilegiados”, termo não à toa criado pelos filósofos comunistas que orientam as falas presidenciais […]
O papel da Folha de S. Paulo no golpe de 1964 está delineado no livro “A Serviço da Repressão”, de autoria de Amanda Romanelli, Ana Paula Goulart Ribeiro, André Bonsanto, Flora Daemon, Joëlle Rouchou e Luca Pedretti, publicado pela Editora Mórula.
A parceria entre o Grupo Folha e a ditadura, conta uma das autoras em entrevista para Outra Manhã, Flora Daemon, “aparece algo que começa ainda antes do golpe, acompanha as distintas fases do período autoritário, assume múltiplas feições e envolve uma barganha. Os afluentes empresários que dirigiram o jornal à época colaboraram com a ditadura no plano editorial, na montagem de ‘operações psicológicas’ em que a esquerda era equiparada ao ‘terror’ e no acobertamento de operações sangrentas”.
O livro revela como o grupo Folha abrigou na Folha da Tarde agentes da ditadura, que tinham sala, salário, telefone, secretária e carro. “Mas sua função em nada se relacionava com a atividade jornalística ou administrativa do jornal. Apenas acobertava o verdadeiro papel – espionar e denunciar ‘elementos perigosos’ – alguns dos quais foram torturados e mortos”.
Aliás, os agentes dos porões da ditadura não atuavam somente na Folha da Tarde, “mas também em outras empresas do grupo, como o Notícias Populares, a Agência Folhas e a própria Folha de S. Paulo. Ocupavam cargos e funções variadas”.
As Organizações Globo, ao lado de militares, golpistas e “pessoas de bem”, levou 50 anos para reconhecer que errou ao apoiar o golpe de 1964. A Folha não foi tão longe, pois, afinal, entendeu que o governo ditatorial então instalado foi apenas uma “ditabranda”. Editoriais dos grandes jornalões deixou evidente o apoio ao golpe cívico-militar. Cívico, justamente porque contou com a mão nem tão invisível do empresariado e bem tangível da imprensa. Duas instituições que continuam atuando juntas no Brasil de 2025.
O Correio da Manhã, do Rio, que saiu às ruas dias 31 de março e 1º de abril, com dois editoriais impressos na capa do jornal, sob os títulos “Basta” e “Fora”, naquele texto pedindo a saída do presidente João Goulart, e neste saudando a “revolução”, dias depois não se sentia mais tão a vontade com os rumos do governo militar.
Os jornalões que em 1964 aplaudiram o golpe viram, com a introdução do Ato Institucional nº 5, em 1968, que talvez estivesse equivocados. O AI-5 estabelecia que a imprensa só podia divulgar a versão oficial sobre o combate ao “terrorismo”.
Depois veio a censura, com militares instalados em redações fazendo a leitura de notícias e reportagens, liberando sua publicação total, parcialmente, ou mandando-a para a lata do lixo. Os editores substituíam as matérias censuradas com a publicação de receitas de bolo, poemas, versos de Camões, versículos bíblicos, literatura de cordel, publicidade da própria casa… Para engrossar o caldo, em 1969 entrou em vigor a Lei de Segurança Nacional que botou em cana jornalistas que questionavam o governo.
Parecia que os barões da imprensa tinham aprendido a lição. Ledo engano. Empenharam-se para o Brasil eleger o caçador de marajás, uma lenda que não se sustentava ante a mais simples apuração do que ocorria em Alagoas, onde Fernando Collor de Mello foi governador. Depois, voltaram-se contra o presidente preferencial, quando ele foi guindado ao julgamento do Congresso por crimes contra a pátria.
Em 2002, não conseguiram impedir a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, mas infernizaram a vida do presidente, com questionamentos à política de cotas, reportagens sobre o mensalão, divulgando, acriticamente, já contra Lula ex-presidente, desmandos da Lava-Jato, como o envolvimento do juiz de primeira instância Sérgio Moro na condução de ações da “República de Curitiba”, com o compadrio de Deltan Dallagnol.
O Globo serviu de canal de difusão de vazamentos promovidos por Sérgio Moro, inclusive grampeando a presidência da República, sob Dilma Rousseff, e até mesmo o escritório de advocacia da defesa de Lula. A suspeição de Moro foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal, o que resultou na anulação das “provas” (inexistentes) contra o réu, acusado de ser dono de um tríplex e de receber benefícios de construtoras na reforma de um sítio em troca de negociatas na Petrobras.
“Quanto tempo o Jornal Nacional gastaria se fosse Lula e não Moro que virasse sócio de uma empresa norte-americana que trabalha com a recuperação fiscal da Odebrecht, OAS, entre outras?” – perguntou Celeste Silveira do Portal Antropofagista. Como se tratava do queridinho da Globo o envolvido no escândalo da Vaza-Jato, o baronato da casa se calou, sob o argumenta de que as informações obtidas pelo The Intercept Brasil, que “vazou a Lava-Jato”, tinham sido passadas por hacker. Como se a Globo não tivesse recebido de Moro e vazado inclusive conversas telefônicas grampeadas da presidência da República! Então o vazamento, criminoso, sequer foi questionado.
A imprensa tem, muitas vezes, o péssimo papel de julgar a pessoa ou entidade acusada antes de o processo tramitar em julgado. Ela se antecipa à Justiça, como ocorreu no emblemático caso da Escola Base, de São Paulo. Os donos da escola infantil, acusados de abuso sexual de crianças, foram linchados pela imprensa, com base numa entrevista concedida pelo delegado do caso, mas sem apresentar provas. Ficou claro, depois, que não ocorreu qualquer abuso. Mas a essas alturas a escola já fora fechada e a vida dos proprietários da escola destroçada.
No campo político, para não ficar restrito ao PT, em 1998, Eduardo Jorge Caldas Pereira, ex-secretário-geral da Presidência da República no governo Fernando Henrique Cardoso, passou a sofrer o que ele denominou de “linchamento da mídia”, acusado de desviar 169 milhões de reais das obras do Tribunal Regional do Trabalho, em São Paulo. O esquema teve outros envolvidos, e Eduardo Jorge foi absolvido pela Justiça e não deixou barato. Moveu processo contra Veja, Folha de S. Paulo, Correio Braziliense, O Globo, Estado de Minas e Jornal do Brasil. Recebeu indenização de todos os sete.
“Fiz isso para restaurar a minha honra, obter reparação e mostrar à imprensa que ela não pode noticiar dessa maneira”, disse Eduardo Jorge para Geiza Martins, do Portal Consultor Jurídico. No geral, afirmou, “a cobertura da mídia é sempre superficial, preconceituosa, apressada”. De todos os veículos processados, “a IstoÉ e a Folha de S. Paulo foram os mais escandalosos, os menos verazes, os que levaram mais longe a coisa”. A absolvição do acusado não mereceu manchete, “deram noticinha, escondida”, apontou.
Mesmo com todo esse histórico, a imprensa continua sua peregrinação acusatória de acordo com sabores políticos-ideológicos, não raro sem qualquer fundamento ou sustentação legal. Como interpretar o “super castigo” aplicado às pedaladas do governo da presidenta Dilma Rousseff? O que importava, e ainda interessa, é criar um clima antipetismo, assim que para muitos brasileiros e brasileiras o ex-presidente Lula é o maior ladrão da história do país. Provas?
O jornalista Reinaldo Azevedo, que mais bateu no PT nos 13 anos de governo, colunista do programa “O É da Coisa”, desafiou Moro e juízes do TRF4 a apresentarem as provas que constam na peça condenatória contra Lula. Ninguém se pronunciou.
Por acaso alguma ONG, organização que trabalha com estatísticas, pesquisa histórica ou até mesmo a imprensa desenvolveu um “corruptometro” para concluir que o PT foi o partido que mais roubou no Brasil? Brasileiros têm memória curta. Durante a construção de Brasília, quantas denúncias apareceram de superfaturamento de obras?
Já estão mais do que esquecidos os casos Banestado, Capemi, Montepio da Família Militar, Coroa-Brastel, Ferrovia Norte-Sul, cometidos durante o regime tido como “sem corrupção”,
Depois disso, os barões decidiram apoiar a candidatura de Jair Messias Bolsonaro, um deputado do baixo clero, parlamentar que não teve um projeto apresentado em 28 anos de legislatura que tivesse repercussão nacional. Ele foi o escolhido pela “grande” imprensa para conduzir a nação, sem questionar suas fake news eleitoreiras, como a mamadeira de piroca e o kit gay, nem mesmo perguntar sobre as “rachadinhas”.
Jornais que preferiram Bolsonaro ao candidato do PT à presidência da República destacaram, depois, em editoriais e reportagens o caos em que o Brasil esteve mergulhado no campo da Saúde, da Economia, do Meio Ambiente, da Educação, das Relações Exteriores.
Tiraram alguma lição dos seus favorecimentos a candidatos que depois os próprios jornalões tripudiaram? Não!
Embora faltem ainda praticamente dois anos para a eleição presidencial, observemos o comportamento da imprensa, se trarão reportagens equilibradas, notícias sem factoides, apurações de denúncias, mas apurando-as, praticando um jornalismo investigativo – e não do tipo “caiu no meu colo e vou divulgar”, como se todo o denunciante não tivesse algum interesse envolvido na denúncia! Enfim, observar as regras mais elementares contidas em qualquer Manual de Redação.
Indicativos apontam, infelizmente, que os barões da imprensa, junto com divulgadores de pesquisas de opinião, continuarão nos divãs de psicanalistas.
*Edelberto Behs é Jornalista, Coordenador do Curso de Jornalismo da Unisinos durante o período de 2003 a 2020. Foi editor assistente de Geral no Diário do Sul, de Porto Alegre, assessor de imprensa da IECLB, assessor de imprensa do Consulado Geral da República Federal da Alemanha, em Porto Alegre, e editor do serviço em português da Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação (ALC).
Foto de capa:
*Edelberto Behs é Jornalista, Coordenador do Curso de Jornalismo da Unisinos durante o período de 2003 a 2020. Foi editor assistente de Geral no Diário do Sul, de Porto Alegre, assessor de imprensa da IECLB, assessor de imprensa do Consulado Geral da República Federal da Alemanha, em Porto Alegre, e editor do serviço em português da Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação (ALC).
*Edelberto Behs é Jornalista, Coordenador do Curso de Jornalismo da Unisinos durante o período de 2003 a 2020. Foi editor assistente de Geral no Diário do Sul, de Porto Alegre, assessor de imprensa da IECLB, assessor de imprensa do Consulado Geral da República Federal da Alemanha, em Porto Alegre, e editor do serviço em português da Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação (ALC).
Foto de capa: João Goulart em discurso polêmico no Automóvel Clube, em 30 de março de 1964 / Arquivo/Agência O GLOBO
Uma resposta
Toda a mídia sempre foi tendenciosa…quem paga mais , leva ! A serviço da Casa Grande, desde quando existia senzalas no Brasil.