Os pobres na ditadura: Vadias, Vagabundos, Imorais?

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Por LÉA MARIA AARÃO REIS*

Embora o Código Penal hoje, especificamente em seu artigo 59, oriente o juiz no sentido de levar em consideração a conduta social do réu, os seus antecedentes e a gravidade de determinado crime, o denominado artigo 59 da Lei de Contravenções Penais, com o conceito denominado vadiagem foi revogado nada menos que após trinta anos de validade, em 2019. O seu texto definia como contravenção “entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou de prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita”.  A pena prevista era de prisão simples de quinze dias a três meses.  Além de ‘vaguear sem rumo’, ou ‘andar sem rumo’, o termo vagabundo tinha (ou tem ainda?)  significado semelhante.

Mas durante o arbítrio autoritário, nos anos da ditadura civil-militar de 1964/1985, centenas de homens e mulheres – uma esmagadora maioria de pessoas pobres, desnorteadas, desempregadas, todos vulneráveis – foram penalizadas com base nesse conceito legal que abarcava também a ideia de ‘imoralidade’. Pessoas que foram presas, humilhadas, espancadas, torturadas, estupradas e enquadradas no artigo 59.

Esse é o tema, pouco conhecido, de um interessante filme curta-metragem com direção e roteiro dos professores da Universidade Federal Fluminense, a UFF, Nina Tedesco e Paulo Terra, este também o autor da pesquisa sobre o assunto que busca lembrar as consequências da ‘vadiagem’ na sociedade brasileira, com o foco dessa disposição durante o período da ditadura. Foi um período de uma ‘festa’ sinistra para criminalizar a pobreza, a população indígena e a negra, e as suas práticas culturais, como o samba e cantos das nossas origens, além de comportamentos considerados ‘imorais’. 

Vadias, Vagabundos, Imorais foi lançado no começo deste mês de julho na UFF e se encontra em cartaz no canal do LABHOI, o Laboratório de História Oral e Imagem da UFF/Universidade Federal Fluminense, onde está disponível gratuitamente. Estreou em sessão na Universidade de Pittsburgh, EUA, e foi exibido  na Alemanha, Dinamarca e na Índia.

Nele,são entrevistadas a jornalista e uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado, Neusa Maria Pereira; Shirley Krenak, ativista indígena do povo Krenak; Jovanna Baby, fundadora do movimento organizado de pessoas transgênero no Brasil, e Nataraj Trinta, historiadora e organizadora da Marcha das Vadias, no Rio de Janeiro. Elas mostram como o Artigo 59 constituiu um instrumento eficaz para criminalizar a pobreza, a população negra e suas práticas culturais, essa até para além do fim da ditadura e a partir das nossas raízes escravocratas.

O documentário mostra como era (ainda é?) proibido às comunidades indígenas, por exemplo, cantarem seus hinos, falarem sua língua de nascença, acender fogueiras, e grupos de negros e negras a priori serem considerados ‘baderneiros’ e  ameaça permanente à coisa pública. As prostitutas, classificadas como ‘desocupadas’, mesmo quando passeando pelas ruas e praças, eram usadas para caracterizar a prostituição e se enquadrarem no artigo 59. Como registra uma das entrevistadas no filme, ‘’ a sociedade não entende a prostituição como uma ocupação, uma tentativa de trabalho remunerado para sobreviver’’.

Sobre a marcação dos grupos LGBT/Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros, o passado e o presente se mesclam em alguns aspectos, lembra o filme. E apesar da ideia de ‘vadiagem’ ainda hoje ser considerada e adotada, é comentada também a organização atual eficiente, das dezenas de organizações e de comunidades que procuram efetivar a inclusão, os direitos e a visibilidade das pessoas com  orientações sexuais específicas e com identidades de gênero. São modos de resistência da sociedade civil e da defesa da honra do ‘vadio’: alguns, negros, baderneiros que por outro lado sempre teria em mente ‘agir contra a coisa pública’.

Vadias, Vagabundos, Imorais  relembra também o trabalho de personagens históricos na linha da defesa de direitos, como Abdias Nascimento e Leila Gonzalez – ela, defensora e ativista pró-cultura afro-brasileira – e de poetas e músicos que organizavam e participavam de atos públicos denunciando a perseguição das minorias e de um ‘Brasil antidemocrático’ como diziam as faixas dos comícios, das concentrações e das marchas onde eram usadas câmeras para reconhecimento dos participantes que depois eram usadas como forma de controle social contra eles.

Um exemplo de que a temática da chamada vadiagem ainda hoje se faz presente é o edital de licitação elaborado em 2024 e lançado pelo governo de Pernambuco para a aquisição de câmeras para segurança pública no qual é declarado o uso das imagens para a “detecção de vadiagem” nas ruas. Como é oportunamente lembrado no documentário, se um delegado de alguma cidade distante, do interior, resolver aplicar o artigo 59, hoje, ele pode aplicá-lo e deixará o curriculum da pessoa com a marca de ‘processada’.

Conclusão: pode ser considerado que o pano de fundo do tema de Vadias, Vagabundos, Imorais  é o racismo de amplos setores da nossa sociedade, o sexismo e a LGBTfobia no país que se servem do termo “vadiagem” para promover a opressão, a injustiça e a intolerância.

O filme está aqui:  


Léa Maria Aarão Reis é jornalista.

lustração de capa: Divulgação

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