Por DANIEL AFONSO DA SILVA*
O dossiê das tarifas virou questão existencial para o presidente Donald J. Trump. Muito além da dimensão geoeconômica e geopolítica, o assunto beira à desesperação. Mas com método. Que sugere uma busca incessante – e, quem sabe, até alucinada – pela reabilitação da Era de Ouro, do America first, do Great Again. Que, ao fim das contas, ninguém sabe muito bem situar, no passado nem no futuro, quando foi nem quando será. Impondo ao propósito a condição de obsessão. Pura e simples. Com fundamentos, reconheça-se. Mas todos guiados e realizados no medo, na intimidação, no terror e na razão egoísta. Típicos da personagem Trump.
De fato, desde a sua primeira presidência que o assunto mobiliza atenções. Em 2018 – ano e pouco após a sua entronização –, a nova administração norte-americana acionou a seção 232 do Ato de Expansão Comercial de 1962 para infligir a ampliação das barreiras alfandegárias sobre o aço e alumínio estrangeiros, subindo para 25% o imposto sobre o aço e 10% o sobre o alumínio. Com desdobramentos em todos os seus derivados. Notadamente sobre refrigeradores e máquinas de lavar.
Voltando no tempo, o curioso foi que, à época, quase ninguém, internamente, protestou. Os traumas da crise financeira de 2008 ainda eram visíveis. Pouco ou nada deles haviam sido superados pelas presidências de Barack Obama. Sendo a operação trumpista excelente e exitosa. Primeiro em termos de comunicação. Em seguida, levando o mundo inteiro à crise de nervos. Enquanto os norte-americanos – adoradores ou não do MAGA ou de Trump – passavam a, enfim, após 2008, a sonhar futuros positivos.
Não há notícias que o presidente Joe Biden tenha voltado atrás nas tratativas de seu imediato antecessor. Agora, também, sucessor. Que, em 2025, voltou à carga sobre o dossiê das tarifas, acrescentando mais 25% à taxação anterior e elevando, assim, virtualmente, para 50% a barreira de entrada de insumos e derivados de aço e alumínio nos Estados Unidos. Ampliando o seu efeito sobre carros, ônibus, vans, tratores, aviões, jatos. E adicionando, também, sobre fármacos, semicondutores e minerais críticos. Além de lançar outros sete, oito, dúzia e meia de insumos e derivados sob investigação para possível contingenciamento. Com potencial de incorporar cestas variadas de produtos. Bem mais abrangentes que as de agora. Podendo chegar até a artigos de luxo. Como os prestigiados perfumes franceses. Que não levam alumínio nem aço tampouco possuem concorrentes norte-americanos, mas incomodam a obsessão dos antigos lobos de Wall Street.
Ainda em retrospecto, quando essas medidas foram anunciadas da primeira vez, quase ninguém deu-se conta do estrago. Tudo aparentava distante. Coisa da tensão norte-americana com a China. Envolta na “guerra de moedas”. Afligindo apenas os asiáticos. E ninguém mais. Mas não era bem assim. E, agora, todos sabem que não era.
Dessa vez, a operação de comunicação foi bem mais contundente. Ocorreu perto de cinquenta dias do novo de mandato de Trump. Quando ele próprio organizou a cena e falou claramente da taxação e dos países implicados.
Como reação, autoridades europeias e asiáticas manifestaram-se em instantâneo. As reações canadenses e mexicanas também vieram rápidas. Mas com cadências diferenciadas. Desde o Canadá, com alguma fúria. Desde o México, com grande prudência; feito um chamado à razão e aos dados, para se dizer que não seria o fim do mundo. Pois entre eles, canadenses e mexicanos, vai válido o adágio “… longe de Deus e perto dos Estados Unidos”. No caso do Brasil, preferiu-se o silêncio.
Aliás, da primeira vez, em 2018, a reação brasileira foi quase nula. Vivia-se, a presidência de Michel Temer. Que, passado o Joesley Day, seguia ereta, mas claudicante. Agonizante e lutando para sobreviver.
Mas, agora, como notada, a orientação da presidência Lula da Silva foi tácita: silêncio; aguardar; manter-se a calma. Num primeiro reflexo, pelo fato de a situação estar relativamente favorável ao Brasil. O país seria apenado em “apenas” 20%. Distanciando-se de outros que receberiam taxação de 50% ou mais. Sendo prudente, assim, o silêncio.
Mas, com o tempo, esse silêncio foi virando imobilismo. E, agora, quando a fervura subiu de vez, esse silêncio tornado imobilismo vem cobrar o seu preço. Que ficou bem caro. Muito caro para um país como o Brasil pagar. Virando disputa moral em lugar de gestão tarifária. Onde ninguém consegue prever um fim.
Nesses quase dez anos da participação política de Donald J. Trump em primeiro plano, ninguém pode alegar desconhecimento de suas práticas tampouco de sua capacidade de fazer dor. Todas as movimentações internacionais de Trump concorrem para el bien del imperio. Muito além das finanças. De modo que seria consequente, ao Brasil e a todos os países inicialmente silenciosos, atracar-se na questão das tarifas. Com o tempo passou, agora não dá mais. Virou moral. Quase pessoal. Envolvendo essencialmente duelo de força, dominação e poder. Como pode-se ver no caso europeu.
A União Europeia gritou bastante no começo. Mas de maneira totalmente confusa. O que resultou na situação constrangedora do último domingo, 27 de julho, na Escócia. Quando a presidente da Comissão Europeia, Úrsula von der Leyen, obrigou-se a dizer “sim” enquanto os grandes do espaço europeu ainda se debatiam para definir a melhor posição. Com verniz de humilhação, mediante a presença da presidente da Comissão ao seu espaço de golfe, Trump concedeu a taxação de 15% em lugar dos 30% iniciais. Impondo uma vitória moral muito mais que econômica. Sobretudo por ser desconhecido o conjunto de cláusulas do acordo.
De todo modo, os franceses bradaram alto contra o acordo. Os italianos, em contraponto, disseram sem dizer que foi o melhor que se poderia fazer. O mandatário da Hungria somente sorriu. E sorriu por entender o jogo de Trump e apoiá-lo na humilhação à coletividade europeia.
Os alemães, por seu turno, hesitaram em criticar o acordo. Afinal, eles seguem os principais exportadores de produtos de alto valor agregado – veículos BMW à frente – aos Estados Unidos.
No caso irlandês, a hesitação também foi desconcertante; e com razões ainda mais evidentes. Os seus fármacos exportados além-mar possuem relevância estrutural na composição de seu PIB. De modo que 15% de taxação é, sim, ruim. Mas não tão pior que tarifas a 30%.
Trump venceu na Europa por semear a ampliação do dissenso entre os europeus. Justamente o que ele queria: confundir, dividir, desarmar. E, de resto, enviar mensagens subliminares aos seus rivais existenciais em verdade que seguem os chineses e os russos.
O Brasil não chega a essa situação de antagonista existencial dos Estados Unidos. Mas a interação entre os dois países sempre foi ambígua. E, agora, ganha contornos de paralelismo. Visto que o Brasil figura concomitantemente completamente fora e completamente dentro da cartografia de influência da administração norte-americana. Operando no interior do dilema da indiferença mútuo e da impossibilidade de ignorar-se. Sendo mais direto, Trump e Lula da Silva querem ignorar-se. Mas não podem. E sabem que não podem. Mas insistem. E insistem porque, ao fundo, desejam atenção. Da parte de Trump, impondo ao Brasil níveis de tarifação que o Brasil não pode suportar. Da parte de Lula da Silva, negando-se, a todo custo, a falar com seu homólogo norte-americano.
Não deve ser segredo para ninguém que o desejo inequívoco de Trump é ter Lula da Silva às súplicas na Casa Branca ou em algum não-lugar com em seu campo de golfe na Escócia. Trump gostaria disso. Quer isso. Uma cena. Com fronteiras movediças. Onde ele possa controlar, dominar e demonstrar poder.
O presidente brasileiro, mais que todos, tem ciência disso. Sabe do desejo do outro. E, pior, sabe do que ele é capaz. Entende do jogo. E, por isso, nega-se a jogar. Recusa-se à hipótese de ser humilhado. Lembra-se bem do que ocorreu com o presidente ucraniano e com o sul-africano na Casa Branca. E, claramente, foi informado do que fizeram com Úrsula von der Leyen na Escócia.
Lula da Silva foge, portanto, de Trump como o outro foge da cruz.
Enquanto isso, não restam dúvidas que os 50% vão ser impostos aos produtos brasileiros sem nenhum pudor e por tempo indeterminado. O que leva os empresários brasileiros a uma crise de nervos sem precedentes. Pois o interesse nacional foi sequestrado pelas vicissitudes morais do presidente brasileiro e de seu homólogo norte-americano.
Ter com Trump não deveria ser sinônimo de render-se a ele. Lula da Silva entende assim. E, por isso, não quer ir vê-lo. Mas ceder a esse “sacrifício” virou a única opção à taxação excessiva e à entropia da interação entre os dois países.
Os enviados do governo brasileiro em Washington falam com todo mundo sem conseguir falar de fato com ninguém assim como a embaixadora Maria Luiza Ribeiro Viotti, maior representante do Brasil nos Estados Unidos, corre o risco de ser desacreditada a qualquer momento. No início, então, eram as tarifas. Agora virou algo moral. Quase pessoal. Cenário crítico que nunca existiu nos mais de duzentos anos de relações entre os países. E, justamente por isso, levam o barão do Rio Branco e Joaquim Nabuco a virarem-se em seus túmulos.
Lá e cá os mandatários são turrões. Dois elementos cheios demais de si. Que impedem a diplomacia de atuar. Aqui mais que lá. E, consequentemente, conduzem a isso. Coisas assim. Levando os norte-americanos a fustigar mais e mais os traumas brasileiros recentes. Dobrando a aposta em querelas com setores do judiciário. Tomando partido sobre o destino do presidente Jair Messias Bolsonaro. Negando à embaixadora brasileira acesso a quaisquer personalidades de valor por lá. Cerceando os ministros da Suprema Corte brasileira de viajar para lá. Induzindo a uma drôle de guerre. Sim: o que falta para uma decretação de guerra? Culpa dos dois. Superem-se as ilusões. Lula da Silva e Trump são responsáveis diretos por esse impasse.
Os “sul-globalistas” aplaudem o presidente brasileiro. Mas o fazem em silêncio. De modo cínico e até covarde. Pois, ao fim das contas, querem somente livrar a sua própria pele. O que é legítimo. Mas, nesse contexto, cretino demais. Demonstrando, mais uma vez, que, no cair da noite, todos esses “meridionalistas” não passam de pardos. Todos sabem disso. Apenas o pessoal do Planalto parece não querer reconhecer.
“Um país não possui amigos, apenas interesses”. Eis a mensagem da situação. Cada um por si. Adeus, China. Adeus, Rússia. Adeus, Macron. BRICS plus e Sul Global nem se fale.
“O Brasil não cabe no quintal de ninguém”. É verdade. Mas também não pode querer ser sombreado por outros países. Menos ainda por aqueles que fogem justamente na hora principal.
O dossiê das tarifas virou pedagógico. Notadamente ao voltar a afirmar que “o mundo é real, independentemente das ilusões de cada um”.
Indo ou não indo dançar com Trump, Lula da Silva sabe muito bem que, doravante, brinca com fogo. Pois, inequivocamente, do bom desenlace brasileiro desse dossiê das tarifas depende o lugar do Brasil nos Estados Unidos, nas Américas e no mundo nos próximos anos. Muito além do escrutínio brasileiro de 2026.
Publicado originalmente em GGN.
*Daniel Afonso da Silva é Pesquisador no Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da Universidade de São Paulo e professor na Universidade Federal da Grande Dourados.
Foto da capa: Daniel Torok – White House | Flickr




