Por JORGE BARCELLOS*
“Este é um ensaio de ficção. Nomes, personagens, lugares e incidentes são produtos da imaginação do autor ou são usados de forma fictícia. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, ou eventos reais é mera coincidência.”
Jorge Barcellos, doutor em Educação
Esta frase que costumamos ver no início de filmes foi adotada pelos estúdios de Hollywood após casos polêmicos de processos como o filme de 1933 sobre Rasputin, que levou a ações judiciais. Os produtores incluíram a mensagem para se proteger, tornando-o padrão em produções fictícias. Eu o faço aqui porque este texto é de fim de ano, e eu quis fazer um ensaio de ficção, diferente dos que faço normalmente, de não ficção. A história que eu vou contar eu mesmo inventei, ainda que como qualquer produto de fantasia, possam ser relacionados com pessoas ou fatos.
Esta estória é sobre um fato corriqueiro de fim de ano, a reunião de condomínio. O ano acaba não com o especial de Roberto Carlos, mas com a assembleia de seu condomínio. O que escrevo é ficção porque eu não participei da reunião de condomínio de meu prédio. É, portanto, produto da minha imaginação. E eu fiz questão de imaginá-la como se fosse um filme de Stephen King. É que eu já referi aqui em RED os problemas de viver em condomínios. O ano não termina enquanto não fazemos a única reunião anual que serve para indicar o próximo síndico, o valor das taxas e os assuntos gerais. É quando todos os moradores de um prédio se encontram. Deveria ser para que todos também socializassem, espécie de test-drive de festa natalina onde trocássemos votos de boas festas. É final de ano, e porque não, mesmo em um site de esquerda, não fazer literatura, ainda que certas verdades, ao leitor atento, também possam ser ditas?
Tudo começa com a mudança climática daquela segunda para terça-feira, quando se realizou mais uma reunião de condomínio do prédio de Eddie. Não era uma simples virada do tempo como as que ocorrem em nossa época de transtornos ambientais e crises climáticas; foi como se um portal sombrio se abrisse lentamente sobre seu prédio. Num dia, o céu estava claro; no outro, o tempo mudou como se prenunciasse a sombra pesada da reunião que estava por vir no seu condomínio. O vento, que costumava sussurrar entre as árvores, agora faz barulho nos fios que foram vítimas de vândalos durante a madrugada: Eddie havia ouvido o som de seu carrinho e o barulho na noite, mas ninguém ousou abrir a janela ou chamar a autoridade responsável. Em seu prédio, também há medos e receios; sempre há uma sensação difusa, um arrepio sutil à flor da pele. Eddie sabe que não tem a sorte de Stephan King, o escritor que admira, que vive numa casa do Maine e outra na Florida. Eddie mora em um apartamento em um condomínio em Castle Alegre.
O dia da reunião amanheceu nublado, anunciando a chegada da chuva. Tudo estava de cabeça para baixo no clima, mas também no condomínio de Eddie. O barulho dos trovões, com a chuva, parecia ser um julgamento cruel daqueles que ousavam se reunir mais uma vez – a reunião é anual – no apartamento de um escolhido para mais uma reunião de condomínio. A deste ano seria no apartamento de Annie, embaixo do de Eddie. Já havia estado no apartamento de Susannah, companheira de Dolores. Aquelas nuvens escuras eram, no horizonte, o prenúncio não de uma chuva que iria tomar conta de Castle Alegre, mas das frustrações e iras de seus moradores que estavam prestes a eclodir. Talvez em seu prédio, caro leitor, as reuniões sejam amenas e os debates, frívolos; talvez no prédio de outra pessoa, seja apenas uma reunião comum da qual todos queiram se desvencilhar. Mas naquela reunião de Eddie, diferente das demais, havia algo estranho porque as relações entre algumas pessoas haviam se contaminado.
O prédio respirava fundo com medo porque havia conflitos entre Eddie e Annie, moradores que vinham de longe. Do passado, quando obras em um perturbavam o sono da esposa de Eddie, Holly; do presente, quando instalações hidráulicas malsucedidas de Annie afetavam a vida de Eddie. Essas memórias estavam prontas para explodirem na reunião, e, por isso, para não ser mais um distraído a ser apanhado pelas garras de suas emoções, Eddie não foi. Enquanto a reunião ocorria, ele apenas podia ouvir sussurros e palavras ditas sem entender o significado. Seu apartamento era acima do qual haveria a reunião; Eddie podia ouvir apenas palavras e risos, nunca frases completas: estariam falando dele, de seus problemas com a futura síndica? Eddie deixava o barulho indescritível da reunião para pensar no barulho das folhas das árvores com o vento que prenunciava a chuva por vir, que faziam uma dança macabra enquanto no seu prédio ocorria uma reunião de condomínio que anunciava a mesma escuridão, a mesma ausência de luz que também era a presença de algo antigo na memória de ambos, Eddie e Annie. Naquele dia, a chuva não era apenas uma mudança de clima, um evento meteorológico: era também um anúncio de decisões desconhecidas para Eddie. O prédio nunca mais seria o mesmo.
Eddie queria ser como aqueles insetos que se prendem às luzes fluorescentes para sair de seu apartamento e ver o que estava acontecendo. Queria lançar sua sombra sobre aqueles que eram testemunhas de algo que ele não queria, que a possível candidata a síndica se elegesse, Annie, com quem ele tinha desavenças. Quem não tem poder teme. Eddie perguntou a seu filho, Paul, se caso acontecesse algo, teria chance na justiça: ele respondeu que não, que quaisquer desavenças são tratadas como dissabores, algo que não tem vencedores nem vencidos. Nesse mundo condominial é impossível exigir perdas e danos, apresentar-se como vítima. Todos somos ora um, ora outro num prédio de apartamentos. É como o relógio de parede dos filmes de King que Eddie assistia; ele se sentia como aqueles ponteiros do relógio de parede que, fixos em um mesmo centro, terminam se movendo devagar, pois não estão mais marcando o tempo em que ele vive no prédio, mas o tempo de suas próprias emoções nele.
Eddie podia imaginar a síndica atual, Susannah, abrindo a reunião. Ela é jovem, magra, e companheira da filha de um colega do curso de filosofia de Eddie. É intelectual e escreve bem. Eddie podia imaginar sua voz um tanto afetada, embargada, já que, além dele, ela sabia de seus conflitos; ela sentiria a falta de outros que também sabem da sua condição e que também não estariam presentes, como nas reuniões anteriores. Ela iria saber na hora que isso estava relacionado aos conflitos naquele prédio, prova de que sua gestão, por mais que se esforçasse, não tinha tido sucesso em reduzir. A reunião, marcada para as 18h30, ainda aguardou meia hora, na esperança de que mais alguém chegasse. Os presentes já se entreolhavam, pois sabiam dos conflitos entre os moradores. A pauta era a de todo o ano: previsão orçamentária, reajustes das taxas, anúncio do que foi feito e previsto, e o principal, a eleição do síndico. Ou síndica. Iria se comentar os roubos de fios, com certeza; as reformas feitas e vazamentos misteriosos nunca descobertos, mas o silêncio de meu apartamento na reunião só poderia significar uma espécie de resistência condominial à maneira de Gandhi.
Eddie imagina sensações e sentimentos porque não estava na reunião. Ele sabia que, entretanto, cada vez que deixava de se pronunciar, lá era um silêncio interrompido, e a reunião segurava uma espécie de fôlego para não revelar seus segredos, os segredos dos conflitos entre Eddie e Annie. Ele imaginava Jessie, moradora do apartamento acima do seu, levantando a mão com hesitação, já que ela bateu fotos do seu apartamento da instalação de ar-condicionado instalada erroneamente para que Eddie cobrasse da síndica e da imobiliária uma providência quanto ao problema. Isso produzia medo que tomava conta do ar, ele pensava, das falhas das frases que se revelavam ainda que ele não estivesse lá. Eddie, com sua ausência, era como essas sombras que se movimentam entre os personagens de um filme de terror; um movimento rápido e ele não está mais lá. Então o que era para ser uma discussão sobre o prédio se transforma num ritual estranho, em que cada morador está prisioneiro de sua própria trama invisível, e Eddie também, mesmo não estando presente nela.
E então, sem aviso, quando as luzes piscaram, no meio da discussão, a própria candidata a síndica Annie revelou que estava com um problema com Eddie. Surpresa para todos, ela assumiu o problema. Annie descreve a instalação de um ar-condicionado que aconteceu à sua revelia; ela já tinha manifestado que iria mudá-lo assim que possível e anunciou a mudança para 48 horas. Isso, para todos os que participaram da reunião, sabedores de conversas no corredor de que havia um problema, sentiram-se aliviados. Era sua estratégia para conquistar o poder. Eddie não estava lá para argumentar na reunião, como ele argumentou numa carta escrita à mão, porque se recusava a participar de grupos de WhatsApp. Ali ele dizia o quanto era difícil aceitar aquilo. Não por ele, mas pela incômodo que provocava em sua esposa, Holly, que trata depressão. Eddie não estava lá para dar voz à sua esposa. Naquela reunião, todos já sabiam de quase tudo, porque, num prédio, os moradores são sempre os olhos do prédio e sempre têm histórias para contar. Quando no próximo ano houver uma nova reunião e Eddie não estiver mais no prédio, sua voz será então definitivamente esquecida.
Se Eddie tivesse a possibilidade de ser um fantasma naquela reunião, ele estaria no canto escuro da sala, movendo-me imperceptivelmente. Quando a síndica atual, Susannah, falasse dele, ela sentiria um arrepio correr na nuca; quando a candidata a síndica, Annie, apresentasse sua plataforma, um arrepio iria correr por seus braços; quando a vizinha, Bervely, que pensava que votaria acompanhando sua posição, mas que ao final o trai, sentiria um zumbido no ouvido sem motivo. Era ele que estaria ali para sussurrar a cada um no seu ouvido, provocar um arrepio, e produzir um ruído. É assim, pensa Eddie, que espíritos tocam os vivos. Ele não consegue imaginar como, sabedores de sua recusa do nome da candidata, afinal, estava com um problema com ela não resolvido, eles ainda assim votariam nela. Eddie estaria com o olhar fixo, ainda que como uma alma penada, olhando o presidente da reunião, a secretária, e os demais condôminos, vendo seus rostos distorcidos pela luz da luminária enquanto tomavam e encaminhavam a reunião. Numa reunião dessas, mesmo que Eddie seja uma alma penada sussurrando sobre os ouvidos alheios, ele sabia que nunca seria ouvido. Aqueles que Eddie pensa que são aliados estão ali apenas para se desembaraçar da obrigação de ser síndico; aqueles que estão ali para assumir uma candidatura o fazem porque sabem que, lá adiante, poderão ter um benefício. Numa reunião de condomínio, nunca se fala a verdade, apenas se esconde algo que é mais complexo do que contas e valores de condomínio.
Enquanto os demais moradores conversavam entre si, a síndica atual chama para o seu lado a sua candidata: Annie é lançada como candidata a síndica. Ela, já vice síndica, assumiria o poder. Nesse condomínio, há uma clara divisão de gerações: há os mais velhos, como Eddie, que estão, numa palavra melhor, desaparecendo; e há os mais novos, como Annie e Susannah, que estão dando, digamos assim, as novas cores do lugar. Há muitas formas de se morrer num prédio: nunca se trata de assassinatos frios ou mortes súbitas, que podem afetar os mais antigos. São as formas simbólicas de desaparecimento: a primeira é assumir a forma da mudança, como a que ocorreu com Lisey, a vizinha que tinha um filho esquizofrênico, Derry, e que saiu recentemente do prédio; a segunda é pela morte propriamente dita, como quando, então, ficam na memória apenas as lembranças de Alan, o senhor idoso e muito magro, morador mais antigo que Eddie conheceu e que saía do carro e deixava a janela aberta; a terceira é a de Eddie, a morte antecipada: ele já tomou a decisão de se mudar do prédio para que sua esposa, Holly, não sofra com os problemas que o condomínio lhe traz. Ele decidiu ir para uma casa. Lá Eddie sabe que não terá os problemas do condomínio. Sabe que terá outros, mas não os atuais. Nesse mundo, não há como fugir de seus problemas. É nossa maldição. Essa divisão de jovens e velhos, de velhos que já foram síndicos e passaram essa função aos jovens, é típica de cidades como Castle Alegre. Quando Susannah chama a sua candidata, Annie, Eddie já está no canto da sala, sob a forma espectral, sentindo uma ansiedade e um temor. O que aconteceu? Ele sabe que seu último pensamento foi de estar naquela reunião; ele havia se colocado impedido de concorrer e todos sabiam o motivo, representado que foi pela esposa de Allan, Frannie; Eddie havia declarado em documento para ela que votaria em qualquer um, menos na possibilidade da sua vizinha, Annie, com a qual tinha diferenças. Por alguma razão durante a reunião ela olha para o canto da sala onde meu espectro está e sorri. Eddie não sabe como foi parar lá, e ela, com seus olhos escuros e profundos, se fixam por um instante em seu espectro. Só ela o vê; os demais não. Annie sabe que Eddie está lá e, por um segundo, parece sussurrar uma palavra curta, carregada de grande intensidade: “Eu vou me vingar”.
Eddie não sabe como foi parar lá, só sabe que não é visto, que é um espectro. Seria isso produto da sua própria imaginação, que apenas intui o que está acontecendo sem estar lá? Seu coração dispara mesmo assim, como se algo apertasse o peito de Eddie. Ele via a sala onde se realizava a reunião diminuir, via o espaço entre os moradores ficando cada vez menor. Ninguém, entretanto, era capaz de ouvir as batidas aceleradas de seu coração; ninguém ouvia ruído algum enquanto a nova candidata a síndica era apresentada. Talvez todos estivessem ouvindo as batidas de seu coração e apenas fingindo não ouvir. Havia motivos para ele temer represálias. Só os que o acompanham sabem dos problemas que enfrentou ali. Mas como nem todos têm obrigação de sabê-lo, farei um breve flashback das histórias velhas de água e tetos vazando. É uma história de ficção.
Tudo remonta ao ano de 2019, coisas do passado de Eddie no prédio. Quando Annie se mudou para seu apartamento, ela tinha necessidade de obras de reforma. Eddie não podia negar a ela o direito de fazer reforma, como ela não podia negar o seu. Entretanto, o problema é que qualquer que seja a reforma, ela causa barulho. O problema sempre é a intensidade. O barulho em Bassey Park, onde está o Pine Condominium, está muito pior hoje do que no tempo em que Eddie veio morar nele, há quase 30 anos, por causa do caminho de desenvolvimento e crescimento vertical de Castle Alegre. Ali só ouvia passarinhos. Hoje há prédios novos por todo o lugar. A todo instante. O exemplo está no prédio em construção ao lado do seu.
Eddie sabe que isso é passado, que o passado é passado e fica lá. Ele queria esquecer, mas o problema é justamente esse, a memória dos afetos: em algum lugar aquilo fica guardado e aí, num novo conflito, ele volta. Por isso, quando Eddie entrou em conflito com Annie, a vizinha, atual síndica – sim, ela já foi aprovada; ele viu como espectro a votação – vem a lembrança de que ele já deveria estar encerrando seu ciclo naquele prédio. É isso que faz a linguagem, dizem os psicanalistas. Eddie chega à conclusão de que era uma falha da Lei de Castle Alegre: existe uma lei do silêncio que protege quem trabalha de dia, mas nada diz para quem trabalha à noite, como sua esposa, Holly. Foi o primeiro conflito. O mundo é do barulho, não do silêncio, e isso foi naturalizado, aceitamos como natural, quando não é. Hoje há uma obra junto ao Condominium Pine que é somente silenciosa no horário da reunião. Durante o dia é um barulho infernal.
Na época, Eddie defendeu o direito à saúde de Holly, enquanto Annie defendia o seu direito de fazer uma obra. Mas não eram direitos comparáveis e, na visão de Eddie, era uma equivalência injusta. “É para isso que existem limites legais”, pensava, “porque necessitamos do silêncio.” Eddie defendia o “direito à saúde” de Holly. Infelizmente Eddie foi derrotado naquilo que os maridos devem fazer, que é defender suas esposas, e a obra foi adiante. Nas condições que tinha, era uma contradição sem solução. O barulho dói e aumenta os hormônios do estresse, enquanto o silêncio cura, é reconfortante, nutritivo e acolhedor. “O silêncio cura. O barulho adoece.” Essa frase nunca saiu da mente de Eddie. Na época, tudo se resolveu pelo paradigma do horário da convenção do Condomínio Pine, cuja regra, ao final, foi atendida pela vizinha. A frustração de Eddie e a origem de sua animosidade foram devidas ao fato de que em Castle Alegre todo este campo é muito vago e sem regras definitivas. A solução foi suportar. Eddie sentia-se frustrado no papel que deveria desempenhar.
Nesse mundo de frustrações acumuladas, anos depois veio o segundo dissabor: um ar-condicionado fora do lugar. Ainda que Annie se comprometesse com sua retirada, o fato de não dar um prazo foi psicologicamente insuportável para Holly. Eddie seguiu os ritos normais: conversar com a parte, com a síndica, com a imobiliária. O que é um prazo? É uma estimativa: 15, 30, 45, 60 dias, Eddie se perguntava. No contexto depressivo de Holly, isso é importante. Annie não deu. Foi quando então voltaram as lembranças da primeira situação. Cada um tem o seu próprio modo de sentir o acontecimento. Eddie é um aposentado, Annie está na sua luta do dia a dia. Talvez outro morador não se importasse com o lugar; talvez outro só aguardasse sua retirada sem pressionar, e talvez outro morador, nesse caso Eddie, precisasse de uma data mais precisa. Em um condomínio também há sofrimento. Os condôminos são atores e vítimas, produzem ações e confusões; é o espaço natural do transitivismo, aquele espaço entre quem age e sofre ações: olhamos sempre para o outro como causa de nossos problemas. Às vezes é. Às vezes não. Quem pode saber?
Tudo isso vem à mente no exato instante em que Annie é eleita síndica. Para Eddie, o silêncio se instaurou e era pesado. Ele estava ali, um espectro observando, sem poder falar quando queria gritar, com uma sensação de angústia pela expectativa de um sentimento de perseguição. Ele não existe. Annie tem muitos mais problemas para resolver do que a relação com Eddie, mas para ele, isso seria sensível nos dias seguintes: o que antes era reduzido a um bom-dia, boa tarde, e boa noite, nem isso haveria mais. O olhar e o silêncio passarão a povoar os dias. Eddie sabia que, após aquela eleição, naquele prédio antigo chamado Condominium Pine, de poucos moradores, a conta do condomínio não seria apenas a única conta a pagar. Ela seria antecedida de outra muito pior, a do olhar que cobra. Algo no ar estava prestes a mudar o que envolvia seus moradores.
Eddie estava no andar de cima fisicamente enquanto seu espectro acompanhava a reunião que acontecia no andar abaixo do seu. Eddie observa pela janela o prédio vizinho. É possível que um morador ali tivesse a visão mais privilegiada, olhando diretamente de sua janela para a da sala de visitas abaixo do apartamento de Eddie e visse as cortinas tremulantes da reunião da sala de visitas do apartamento. Ele já esteve lá: há livros que admira na mesa e nas estantes penduradas na parede. Muitas discussões foram perdidas por causa desses sentimentos difusos. Eddie gostaria de ter tido outra história para contar, mas o que fazer, se sempre preferiu manter uma relação distante com seus vizinhos? De alguma forma ele sabia que o peso do seu silêncio não valia mais nada.
No dia seguinte, Eddie liga para a imobiliária e pergunta para a secretária da reunião como ficou seu problema da retirada do ar-condicionado. Quando ele a visitou na imobiliária, fazendo sua queixa, ela, como secretária, é claro que concordou com tudo o que disse Eddie. É isso que fazemos quando achamos que estamos diante de alguém louco. Calamos. Ela olhava e concordava com tudo o que Eddie dizia, mas ela nada podia fazer. Ela olhava vagamente na esperança de que, findo o seu discurso, Eddie se retirasse, pois havia outros condomínios a regular. No mundo da administração condominial, Eddie viu que não tinha importância alguma, somente tem importância metas de gestão a serem batidas, números finalizados, relatórios a serem escritos. Eddie tinha curiosidade, enquanto falava na reunião na imobiliária, dias antes, sobre o que a secretária realmente pensava: ele estava exigindo demais? Ou de menos? Havia uma atendente na entrada, e talvez a secretária desejasse que ela tivesse inventado uma desculpa, de que não estava ali, de que não tinha sido encaminhada; talvez apenas Eddie fosse uma voz a mais em sua mente já repleta de vozes que reclamam e que ela nada pode fazer.
A secretária da reunião era jovem, tinha o cabelo liso amarrado para trás, olhos pequenos, mas afiados como navalha, e um sorriso que, como diz King em muitas de suas obras, nunca alcançava as bordas. Seu nome era Rosie e era responsável por encaminhar os registros da reunião e estabelecia a agenda. Eddie não sabe se ela falou de sua reunião e visita à imobiliária. Se falou, os ânimos ficaram ainda piores; se não falou, ela engoliu seco para não agravar a situação. Ela fazia a chamada: chamava a moradora do andar superior que nunca aparecia e a dos proprietários que não moravam no prédio, mas que sempre vinham às reuniões. É preciso saber ser imparcial nessas reuniões; secretariar é sempre um desresponsabilizar, especialmente a imobiliária frente a um condômino ameaçador como Eddie, que ameaçava a imobiliária com ações de responsabilidade. Ameaçava porque tinha medo de que não conseguir, mais uma vez, atender Holly.
Eddie tentou em vão buscar parceiros no condomínio. O ex-síndico disse não poder ir; a moradora do andar térreo, uma senhora idosa, já experiente em que é preciso ser política, não quis se envolver. Quando Eddie lhe pediu para o representar na reunião, inicialmente aceitou, mas no dia seguinte declinou. Como é possível saber quem está do seu lado e quem não está numa reunião de condomínio? Mesmo com a vizinha que aceitou representar Eddie, ainda assim, ele entendeu que votou em Annie, que lhe causa dissabor. Não há aliados quando se trata de se desvincular de uma responsabilidade. Não há muitos mais em quem confiar. A vizinha jovem que teme insetos aluga o apartamento e não participa de reuniões; os jovens que moram sobre o apartamento de Eddie são silenciosos demais em reuniões para assumirem alguma posição, ainda que ele ouça, na calada da noite, as patas de seus animais de estimação. A geração nova é high-tech; a geração velha, como a de Eddie, é analógica. Ele sente que está perdendo seu lugar na história: para Eddie, é como se o prédio fosse um lar; para os demais, é um lugar, um instante de repouso para o que importava e que estava lá fora.
Eddie está na reunião como espectro e sente a pauta que movimenta a nova síndica, Annie: transformar o prédio, tradicionalmente uma redoma de convivência pacífica, num centro comercial. Permitir que se trabalhe em casa, com lojas abrindo nas antigas unidades residenciais, vitrines substituindo janelas, e barulho e movimento constante esmagando o silêncio, anulando qualquer possibilidade de sossego. A promessa era dinheiro e “modernidade,” mas para muitos do prédio, como Eddie, os “antigos,” isso significava o suicídio da comunidade. Ele desejava gritar contra uma proposta que jamais foi anunciada, mas que sabia que estava escondida em algum lugar da alma de sua nova síndica. Eddie sentia um nó no peito só de pensar nisso, mas isso era o confronto inevitável entre os moradores novos e velhos, ou no peso crescente dessa transformação que ameaça tudo?
O prédio que antes parecia uma fortaleza de memórias e aconchego agora se transformava em uma prisão invisível, onde cada correção, cada multa e cada cruzada minavam sua vontade de resistir. A reunião encerra. A nova síndica assume. Eddie volta para o seu streaming com um suspiro pesado. Imagina o seu futuro, a mudança. Imagina as caixas quase todas prontas. Papéis amarelados, livros e lembranças foram embalados com uma tristeza calma. Não é que Eddie não possa mais olhar os vizinhos, especialmente sua nova síndica: o que não é possível suportar é o silêncio, a rotina de olhares desviados, e o silêncio cúmplice da indiferença. Aquele prédio já não era mais o lar que conheci; era um campo minado em que cada passo podia detonar mais dor. Havia apenas uma testemunha: o próprio prédio que, tendo alma, havia transportado o espectro de Eddie para a reunião. Ele também tinha uma memória: a da primeira obra de reforma de Annie. É que Eddie não sabia, mas teve sempre ao seu lado o próprio prédio, pois ele, mais do que ninguém, sentiu a dor da reforma de Annie no apartamento.
O edifício nunca foi apenas um objeto de concreto e aço, mas o acumulado das memórias esquecidas de seus moradores. O Condomínio Pine, como diz o escrito na fachada do prédio, insistia em piscar na neblina de Castle Alegre e tinha desenvolvido consciência própria: não subestime o poder da dor de uma reforma. Foi ele que dividiu a alma de Eddie em duas e a fez presente na reunião de condomínio: “quero ver com seus meus próprios olhos”, Eddie teria pedido. Ela atendeu. Os vazamentos nunca foram falhas estruturais; eram cicatrizes na alma que vai se moldando para o ódio. Quem faz reforma nunca é bem-visto pelos prédios: é como se fosse um parasita que é preciso eliminar. Ele se lembrava de cada furadeira, de cada obra, de cada cano entupido e vazando que ninguém queria admitir. Cansado de observar, ele prepara sua retribuição.
O ano de 2026 seria diferente em tudo em Condominiun Pine: novos vazamentos, novos conflitos entre moradores, como se houvesse um hálito frio carregando ossos dos habitantes do passado pelos corredores. Como todo leitor de King sabe, a mágoa produzida pela dor ensina aos seres a morderem de volta. E a vingança, ali, seria servida nos corredores centrais. Sem perdão. Eddie se muda.
*Jorge Barcellos é graduado em História (IFCH/UFRGS) com Mestrado e Doutorado em Educação (PPGEDU/UFRGS). Entre 1997 e 2022 desenvolveu o projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal. É autor de 21 livros disponibilizados gratuitamente em seu site jorgebarcellos.pro.br. Servidor público aposentado, presta serviços de consultoria editorial e ação educativa para escolas e instituições. É casado com a socióloga Denise Barcellos e tem um filho, o advogado Eduardo Machado. http://lattes.cnpq.br/5729306431041524
Foto de capa: IA




