O Tropeço com um fascista declarado

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Por LINCOLN PENNA*

Um encontro imprevisto aconteceu hoje. Estava aguardando atendimento numa loja quando me deparei com um indivíduo, que alteando a voz verberava que o incêndio ocorrido em uma das favelas da zona norte do Rio de Janeiro não fosse debelado pelos bombeiros para que toda “aquela gente” fosse consumida ´pelo fogo, pois eram todos bandidos.

Mal o indivíduo havia dito o que acabara de dizer não pude me conter e contestei de pronto a sua fala manifestando a minha discordância. Ao argumentar que a generalização que dizia era descabida porque nem todos os favelados são bandidos, e acrescentei que ao contrário, a imensa maioria é trabalhadora, o sujeito virou-se e disse: “então que esses saiam de lá”. Bem que gostariam, disse ao homem surpreso com minha insistência em contrariá-lo. De imediato acrescentei: ou o senhor acha que o morador do morro prefere a favela ao asfalto?

A troca de farpas continuou até que não mais do que de repente o meu indigesto interlocutor bravejou em voz ainda mais alta: sou fascista. Pode me chamar de fascista. Vou até colocar uma suástica no braço, pois não temo bandido. Se me ameaçarem sei como me defender. “O que precisamos é exterminar todos esses ladrões!” Diante dessa afirmação peremptória respondi que os piores ladrões estão entre os ricaços. Estes têm a cobertura que os mantêm impunes, ao passo que o ladrão de galinha é encarcerado e povoam as nossas cadeias. E mais, as organizações criminosas estão infiltradas no estado e estão irmanadas com algumas autoridades.
Sua exaltação não diminuiu quando procurei que passássemos para trocarmos argumentos, apesar de que ainda estava atravessada a sua tese da “solução final”, isto é, o do extermínio de favelados. Diante desse episódio fico a pensar duas coisas: a primeira é como avançou e de forma descarada o que tem sido chamado de extrema-direita! Na verdade, o fascismo que muita gente faz questão de diferenciar dessa onda regressista, quando o que denomino de novo surto fascista se encontra escancarado e tem sido entendido apenas como um mero anticomunismo, geralmente visto mais como um adjetivo do que um substantivo.

Tentar diferenciar o fascismo clássico com o comportamento e as atitudes dos que exaltam ações meramente punitivas e ao mesmo tempo defendem pautas privatistas contrariando os fundamentos do nazifascismo que impôs a presença de um estado forte, não percebe que os surtos fascistas se amoldam de acordo com a evolução desordenada e caótica do modo de produção capitalista. Se à época de seu primeiro surto era indispensável o fortalecimento do estado, presentemente os estados nacionais são dispensáveis para a resolução da atual crise crônica do capital.

A outra coisa intercalada que faz pensar é como a insatisfação proporcionada pelo capitalismo, que ao desqualificar o trabalho precarizando a força de trabalho enseja o que vem sendo chamado de empreendedorismo, que consiste numa falsa saída dentro dos marcos de um modo de produção absurdamente desigual de modo a levar as pessoas às portas do fascismo, isto é, como um remédio para todos os males gerados pelas continuadas crises que vivemos. Delas decorrem a prevalência da lógica do capital a instigar o ganho imediato não importa como alcançá-lo, mesmo e inclusive atropelando as normas e preceitos legais.

Ainda sobre o encontro indigesto se o fascista assumido com o qual tivera esse diálogo impertinente era um militar da reserva. Não sei, disse-me o atendente que parecia conhecê-lo acrescentando que supunha ser um tresloucado a despejar sempre mal humor. Segundo outros, deveria ser um aposentado a resmungar a torta e a direita. Mais uma razão para uma nova reflexão, segundo a qual o fato de muita gente tipicamente de classe média baixa ou média demonstrar revolta e se apegar aos métodos e práticas fascistas como solução para a insegurança nas grandes cidades ter ganho muita gente para apelar à tese de que bandido bom é bandido morto, dos tempos em que a bandidagem era representada exclusivamente nas classes subalternas da sociedade carioca.

Mas, a involução desse sentimento de impotência chegar à admitir o fascismo como saída para essa e outras situações de incômodo é, positivamente desconhecer a história, algo que merece a atenção daqueles que entendem a importância da escola na formação da cidadania na qual o conhecimento de nosso passado é fundamental. Para isso, é preciso ser levada muito mais a sério do que um simples depoimento num final de tarde e tendo como protagonista um ser humano inteiramente desiludido com o que se passa entre nós e a apostar na tese absurda e criminosa do extermínio de seus compatriotas sejam ou não passíveis de punição por eventuais atos de contravenção. Esse cenário de desagregação de valores a ponto de agredir os princípios humanitários e civilizatórios não pode servir a intentos regressistas apoiados em manifestações antidemocráticas.

Confesso que fiquei entre estarrecido e assustado, se é que esses vocábulos não se completam diante do que presenciei e estou a repassar a quem ler essas linhas. O fato é que não basta diagnósticos que venham na mesma direção do que estou aqui a expor ou que se manifestem contrariamente, porquanto o que importa é que estejamos atentos para uma escalada fascista em curso que só poderá ser detida com a massificação de informações e o domínio do conhecimento respaldado na história.

Cabe alertar que a cultura política brasileira comporta a absorção do fascismo porque trás consigo uma tradição conservadora, reacionária, escravocrata e, portanto, propensa à aceitação de políticas extremadas como o extermínio sugerido pelo fascista assumido do encontro de hoje, e que foram comuns aos surtos fascistas, tanto do passado mais remoto como das suas mais recentes manifestações.

Por último, a bandidagem tão apregoada pelo fascista para ser exterminada prosperou não somente em razão do crescimento da criminalidade junto as camadas pobres e desassistidas de sociedades, tão desiguais quanto a nossa. Mas, sobretudo nos altos escalões onde a bandidagem tem se feito presente e alimentado a maior de todas as corrupções, que consiste na privatização dos estados nacionais e daqueles constituídos regionalmente, como nas repúblicas federativas. No Brasil essa tendência tem se tornado persistente e encontra amparo junto às instituições de nossa precária República, cujo sentido vem sendo constantemente desvirtuado para atender ao patrimonialismo e as suas demais sequelas expostas na farra das emendas parlamentares.

Essa criminalidade pelo alto da hierarquia social não incomoda quem acena para as soluções extremadas, pois são elas acobertados em virtude do expediente fascista encontrado pelas classes dominantes para o enfrentamento de suas crises periódicas cada vez mais agudas. Assim, além do conhecimento da engrenagem de um sistema ancorado na acumulação de capital torna-se imprescindível a tomada de consciência da cidadania mundial de maneira a não cair na esparrela de soluções mágicas encarnadas por meros aventureiros de ocasião, despreparados e incultos a abraçar alternativas antipovo e antinacionais.


*Lincoln Penna É Doutor em História Social; Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos).

Foto de capa: : Reprodução/RJ2 

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Respostas de 2

  1. Temos hoje muitos estudiosos em comportamento social, pena que artigos como esse, que serve muito de alerta, não é lido. Parabéns. Com certeza que precisamos urgentemente achar um modo de chegar mais perto desse povo e exterminar essa visão estereotipada.

  2. É impressionante como o fascismo se instalou rapidamente no Brasil a partir da ascensão de Jair Bolsonaro. Com certeza, as redes sociais foram um fator determinante. Mas realmente já havia uma estrutura social que favorecia este crescimento da extrema direita. Nasci em São Paulo, capital, e vive lá até os anos 90. Vivi de perto o nascimento do antilulismo e hoje compreendo como aquele movimento, que tinha raízes e se misturava com o velho racismo/elitismo de origem colonial, já era um fascismo embrionário. Muitos dos amigos meus na época possuíam esse ranço e esse ódio das classes inferiores. Era uma coisa que eu não compreendia bem naqueles anos, mas hoje vejo o quanto era repulsivo. Então, de repente, tudo isso ganhou corpo no Século XXI, virou algo poderoso, todo aquele pessoal se identificou com o neofascismo, porque eles na verdade já eram neofascistas e não sabiam. Com a ascensão de Bolsonaro, a grande diferença é que eles passaram a se sentir “autorizados” a ser o que eram. Muitos “saíram do armário”, também. Agora é esta desgraça. O pior é que hoje eles têm que conviver com novas pautas sociais, que não existiam naquela época, como a ambiental, a das desigualdades ou das das diferenças de gênero. Enquanto o mundo caminha para a conscientização dos problemas da humanidade, essa gente surge com seus preconceitos e negacionismos, querendo que nada mude, querendo só destruir, sem acreditar em nada que não seja a ilusão da meritocracia neoliberal e sua mentalidade predatória. Não passam de ignorantes da história, papagaios humanos, que invejam e odeiam os que não concordam com eles.

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