O tempo que altera os lugares

De LÉA MARIA AARÃO REIS*

Retratos Fantasmas, filme do festejado e premiado cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho, segue a sua trajetória brilhante. No início da caminhada, em diversos festivais estrangeiros desse ano, em seguida em tradicionais mostras do Rio de Janeiro e de São Paulo, nas telonas dos cinemas, e prossegue encantando a crítica cinematográfica e as grandes plateias no streaming**.

Para alguns, Mendonça é um “historiador do sentimento”. Para outros, é o mestre em “recuperar o imprevisível; como fazem os melhores jazzistas”. Essa, a mais exata definição do seu trabalho. Um jazzista, um inventor permanente do improviso na arte.

Autor de luminosas obras primas do cinema brasileiro – O Som ao redorAquarius e Bacurau (este premiado pelo júri do Festival de Cannes em 2019) – além de celebrado pelo jornal Financial Times dos britânicos como um dos diretores (e também roteirista e produtor), no mundo, que “merecem atenção”, o cineasta, nascido em Recife com graduação em Jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco, com certeza é um dos melhores do cinema em exercício.

Agora, ele retornou na perspectiva de indicação ao Oscar de 2024, em março próximo, com o poético filme documental, misto de exercício de memórias e de ensaio artístico. Filmetes de família, fragmentos de filmagens que faz desde garoto, inserções de filmes de atualidades de época e comoventes mini entrevistas com velhos projecionistas de cinemas antológicos ao lado de suas máquinas enferrujadas são ingredientes de um documento que revolve ternas lembranças de menino e adolescente.

A vida de Kleber com a mãe e irmãos na sua casa da rua do bairro de Setúbal exala afeto. As irrupções inesperadas que ele promove de vez em quando com a caricatura dos fantasmas cruzando as pontes sobre os rios dessa ‘cidade das águas‘(uma das alcunhas de Recife) são como se fossem uma risada do diretor.

Em especial, ele traz preciosos filmetes de época do Centro e das ruas onde os portentosos cinemas eram pontos de referência da cidade durante as décadas do pós-guerra.

“Depois de uma trajetória incrível no cinema, com mais de 80 mil espectadores em 10 semanas em cartaz, é muito bom saber que Retratos Fantasmas chegou a um novo público, especialmente a pessoas que não têm acesso à sala de cinema em suas cidades, e exibido nos mais altos padrões de imagem e de som em streaming”, comemora Kleber.

Quem conheceu, como nós, ou viveu ou visitou a Recife do tempo evocado em Retratos Fantasmas reconhecerá uma cidade em festa permanente, cosmopolita à maneira brasileira, um universo ainda patriarcal dos primeiros momentos da década de 60. A Rua da Aurora separada da Rua do Sol pelo Capibaribe em cujas margens a madrugada era dos rapazes que saíam do bar Savoy; o restaurante Leite dos boêmios da classe média mais abonada. O Hotel Boa Viagem recebendo a célebre brisa de Recife e trazendo até seus hóspedes os perfumes do porto.

“A boemia celebrava a vida”, recorda o jornalista e poeta Celso Japiassu, uma das testemunhas oculares dessa fascinante época da capital pernambucana. Tempo do ateliê rural do ceramista Francisco Brennand começando uma carreira artística de sucesso internacional e no qual ele recebia amigos. Muito tempo depois, a sua Torre de Cristal foi instalada no Parque das Esculturas, nessa mesma região central.

O passo a passo do despertar do pequeno cinéfilo Kleber está lá, no filme. “Éramos tão jovens”, diz o narrador que é o próprio diretor, com a entonação de voz levemente nostálgica e quase embargada. Assim é encerrada a primeira parte do filme, a que se passa durante o período dos muitos anos vividos na sua casa de Setúbal que passou por várias reformas, todas filmadas e documentadas pelo então adolescente. Sobre as mudanças, a reflexão do narrador: “O tempo se encarrega de alterar os lugares”.

“Eu amo o Centro do Recife”: o narrador anota que o processo de desvitalização e consequente decadência das tradicionais regiões centrais de todas as cidades costuma obedecer sempre à migração do dinheiro na direção de outros bairros. As livrarias viram igrejas, os cinemas são fechados e abandonados. O tempo mais uma vez altera os lugares, e é essa a segunda seção de Retratos Fantasmas. Os setenta anos do São Luiz, do Trianon, os cinemas e a cinefilia. Na parte final do filme, Igrejas e Espíritos Santos, “a tomada do poder pelos evangélicos” e os cinemas mortos voltando como templos.

A sequência/fecho do filme, com o diretor viajando em um carro conduzido por motorista de aplicativo através as ruas da cidade, e conversando com ele, é pura poesia cinematográfica. Filmaço.

Assista ao trailer:


*Jornalista carioca. Foi editora e redatora em programas da TV Globo e assessora de Comunicação da mesma emissora e da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Foi também colaboradora de Carta Maior e atualmente escreve para o Fórum 21 sobre Cinema, Livros, faz eventuais entrevistas. É autora de vários livros, entre eles Novos velhos: Viver e envelhecer bem (2011), Manual Prático de Assessoria de Imprensa (Coautora Claudia Carvalho, 2008), Maturidade – Manual De Sobrevivência Da Mulher De Meia-Idade (2001), entre outros.

**Disponível na Netflix.

Imagem: divulgação.

Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaositered@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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