O Segredo do Concreto

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06/07/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Prédios mais antigos de Porto Alegre. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Por JORGE BARCELLOS*

As coisas precisam durar menos do que nós. Cada geração precisa construir a própria cidade.” Antônio Saint’Elia, Manifesto da Arquitetura Futurista, 1914.

Você já se perguntou por quanto cimento tem em Porto Alegre? Falamos que a cidade está crescendo rápido demais, criticamos a fome das incorporadoras por mais prédios em nossa capital para aumentar seus lucros, mas, de fato, estamos diante do campo da construção civil somente no instante em que fazemos obras em nossa casa. Já falei em ensaio anterior do desgaste que tive simplesmente por procurar em meu apartamento um vazamento. Falei em outro que estou com obras na casa da praia e foi neste momento em que vi, de fato, os seus efeitos pela primeira vez: estou falando do cimento. Fazer reboco, duas colunas de concreto armado para um muro e a base para uma piscina, a tradicional 4mx2m, me proporcionou a oportunidade de adquirir 8 sacas de cimento, o que me possibilitou entrar em um mundo que desconhecia. Contratei um empreiteiro, que é, claro, subcontratou um operário para fazer todo o trabalho. É do capitalismo a divisão do trabalho. Não posso reclamar, já que eu mesmo contrato o meu vizinho para pequenas obras de manutenção em minha casa de praia. Sou velho e fraco, o que fazer? Gerar emprego e renda, diz o manual neoliberal.

O que chamou minha atenção foi, entretanto, o cimento. A empresa de transporte trouxe as sacas em casa: vi seus trabalhadores carregando aquelas sacas de cinquenta quilos. Eu os via descarregando aquele peso bruto como os trabalhadores que carregavam sacas de café da famosa obra Café, de Candido Portinari. Ninguém dá valor ao trabalho de carregar uma saca de café como o de uma de cimento. Café é charmoso, saca de cimento não. Entretanto, ainda que um trabalho difícil, não encontrei nenhuma obra de arte retratando um trabalhador carregando sacos de cimento. Digo isso porque entendo que a atividade merecia ser retratada pela arte; mas digo isso principalmente porque eu mesmo, num surto psicótico, tentei carregar um saco de cimento de cinquenta quilos, dos altos dos meus sessenta anos. Não consegui. Tentei duas vezes, utilizando, inclusive, alavancas como rodas. Precisei de Novalgina. Não saiu do lugar. Imaginar trabalhadores tendo de lidar com toneladas de cimento por toda a cidade foi uma imagem aterradora.

Um ensaio que nasce da dor

Enquanto minha coluna urrava de dor pelo peso na tentativa fracassada de carregar apenas um único saco de cimento, eu pensava em quantos teriam sido necessários para construir uma cidade como Porto Alegre. Em 2024, a indústria nacional produziu 64,7 milhões de toneladas de cimento, de acordo com dados do Sindicato Nacional da Indústria de Cimento (SNIC). Um aumento de 3,9% em relação ao ano anterior; só a Votorantin Cimento declarou lucros de um bilhão no terceiro trimestre de 2024. O setor da Construção Civil, que consome a maior parte da produção de cimento, cresceu 4,3% em 2024, contribuindo para um PIB de R$ 359,523 bilhões (disponível em https://abre.ai/nXfZ).

Eu olhava para o operário que fazia o piso de minha piscina. Eu fiz o que podia: providenciei EPI, que ele não tinha e seu empreiteiro não forneceu, além de colaborar com café e lanches, que era o que podia fazer, amenizar a sua dor. O pior é que ele queria ficar além do tempo de serviço, invadindo o seu horário de almoço, e eu tinha de lembrá-lo de que era para fazer intervalo: talvez essa atitude fosse a pressa de terminar a obra, mas eu temia o pior, a assimilação natural de um lento aprendizado de perda de direitos. Eu pensava no livro As mãos da obra: histórias e reflexões de uma arquiteta no canteiro, de Shirlei Zonis (Olhares, 2025). Ela já havia escrito Arquitetura no divã, uma obra que eu considerava muito capitalista, pois buscava atender às preocupações dos proprietários que contratam arquitetos; nesta obra, o foco eram os trabalhadores. Eu gosto desta relação da arquitetura com psicanálise desde que li Arquitetura e Psiquê, um estudo psicanalítico de como os edifícios impactam nossas vidas, de Lucy Huskinson (Perspectiva, 2021), pois comecei a perceber que era preciso um foco novo de crítica para a esquerda reagir ao avanço neoliberal no campo da construção civil, que agora se apropria do próprio Plano Diretor de Porto Alegre para aumentar seus lucros. A autora toca num campo sensível dos trabalhadores do canteiro de obras; eu transformei a obra que fazia na minha casa de praia em um deles.

Ela reconhece que essa relação é sensível e não está nos currículos de formação de profissionais, nem as histórias desses trabalhadores invisibilizados, seus impasses e os efeitos da desigualdade neles. Diz Nilton Bonder no prefácio que “repentinamente as mãos ganham identidade nos Ubiratan, João, Valentim, Junior, Getúlio, Francelino, Jaci e tantos outros a quem é concedida a visibilidade que ressignifica a arquitetura do trabalho. Essa presença, que em nosso país de domésticas e peões é tão abafada e anulada, ganha físico e psique própria, contestando a hierarquia que favorece o desejo e o planejamento, mas que despreza a habilidade e o artifício.” Olho o operário contratado para fazer minha obra: ele também se chama Jorge, é quase como se fosse o inverso social da minha existência; eu, com pós-graduação; ele, semialfabetizado. Como é possível o destino juntar duas pessoas tão diferentes com o mesmo nome em um único espaço?

Um saco de cimento tem um mundo

Por isso comecei nesse período a leitura da obra de Anselm Jappe, Concreto: arma de construção em massa do capitalismo (Todavia, 2025). O livro foi esclarecedor sobre muitos aspectos que estava vivendo, pois trata do material com que fazemos nossas cidades, o concreto. E eu, minha obra.Comprei 8 sacas de cimento para fazer uma simples obra e não consigo entender o quanto é necessário para edificar uma cidade como Porto Alegre, sequer imaginar a quantidade de prédios construídos e a tonelagem empregada. Encontrei que a Comissão da Indústria Imobiliária (CII/SINDUSCON-RS) realizou, entre 1998 e 2018, um censo que apontava o número de imóveis novos e, para aquele último ano, informava que Porto Alegre possuía 14.402 condomínios registrados (disponível em https://abre.ai/nXhi). Já no Censo de 2022, uma informação mais atualizada surge: Porto Alegre possuía um total de 686.769 domicílios naquele ano. Destes, 276.628 (49,55%) eram apartamentos, 264.811 são casas (47,44%), ainda que não haja indicação exata do número de prédios (disponível em https://abre.ai/nXhu). Pergunto à IA Perplexity quanto de cimento é necessário para a construção de um apartamento padrão de 2 quartos como o meu, um prédio velho no bairro Petropólis: ela me diz que a quantidade é estimada em cerca de 150 a 200 sacas de cimento de 50 kg, sendo 14 só para o reboco.   Pergunto então, apenas por curiosidade, quanto de cimento seria necessário para construir as unidades habitacionais citadas pelo IBGE, e a resposta que recebo é de “5,16 milhões de toneladas de cimento (150 sacos de 50 kg para 687.679 domicílios / 1000)”. Não é à toa que a indústria da construção civil dispara em 2024 (disponível em https://abre.ai/nXhW).

Entenda, estimado leitor: estas reflexões partem unicamente de minha dor nas costas por tentar carregar um único saco de cimento para ajudar meu pedreiro.   Às vezes a dor inspira.  Meu pedreiro, que já estava chegando na minha idade, carregou as sacas, como meu vizinho, com alguma dificuldade: “Não se preocupa não, chefia, é da lida”. Essa aceitação do destino, de que fala Mafessoli, para mim só agravava a situação. Eu precisava saber mais das relações que o cimento engendra. Vemos os novos prédios em Porto Alegre como expressão da modernidade, como o novo prédio do grupo Zaffari inaugurado na Avenida Carlos Gomes, com suas torres imponentes e lojas comerciais. Será? Essa ostentação com orgulho do concreto armado esconde o fato de que ele se impôs sobre a capital dos gaúchos produzindo uma uniformização sem precedentes, a mesma criticada por Thomas Heatherwick, em seu Humanizar: um guia para construir o nosso mundo (Olhares, 2025): a verdade é que essa nova paisagem reflete não apenas a perda de humanidade de nossa capital, mas a sua própria história. Vejo operários na obra ao lado de minha casa em Porto Alegre fazendo uma reforma sem proteção. Voltarei a este caso adiante.

Quando a saca de cimento cai no chão de minha casa, uma poeira toma conta de tudo, exatamente como a onipresença desse material em sua vitória sobre a arquitetura clássica de Porto Alegre. Anselm Jappe escolheu o cimento que eu uso em minha obra para sua reflexão porque encontrou nele mais do que um produto para uso pela engenharia de construções. Entendeu nele outro lugar para criticar o capitalismo como organização social. E o ponto de ligação, nos termos de Marx, é a sua afirmação de que o trabalho abstrato se transforma no capitalismo numa espécie de “gelatina” (gallerte): “qual outra coisa parece mais com uma gelatina do que o concreto?”, pergunta Jappe. É verdade: olho o carrinho de mão do operário que está fazendo minha obra e vejo a gelatina de que fala o autor de Concreto. Eu mesmo tento fazer um remendo numa rachadura de minha casa com ela, algo que incomoda minha esposa, aproveitando a que o pedreiro a fez. E lá estou eu, nos termos de Marx, alienando o produto do trabalho do pedreiro, exatamente como fazem todos os integrantes da classe dominante, ainda que eu não me considere seu integrante como tal. “É só um pouquinho de cimento”, digo, mas já sinto culpa. E o cimento, como geleia, escorre por entre meus dedos. “Posso ser um ensaísta mediano, mas sou um péssimo pedreiro”, penso. Para Jappe “o concreto é a materialização perfeita da lógica do valor”, pois é “um material sem limites próprios (líquido de início), amorfo, polimorfo, que pode ser moldado em qualquer forma”, e que “se adapta a todos os climas, a todas as circunstâncias” e que, “mesmo não existindo em lugar nenhum em estado natural, tornou-se onipresente”. Por isso, para Jappe, leitor de Marx, a gelatina do trabalho abstrato atual é feita de cascalho e calcário. O capitalismo é nossa geleia de concreto.

“O cimento está entre nós”

É como se fosse tudo uma imensa igreja: o cimento é nosso objeto de fé. Enquanto escrevo, estão trocando postes próximos do apartamento onde moro em Porto Alegre. São muitos caminhões, trazidos pela CEEE Equatorial, com inúmeros trabalhadores localizados entre a Avenida Palmeira e a Avenida Protásio Alves. Esse trecho, de duas quadras apenas, está vendo a troca de postes e fios. Diz a CEEE em seu site que isso é para garantir maior estabilidade no sistema, aumentar a eficiência e reduzir as quedas de luz. Os postes da CEEE novos são de concreto, são volumosos, e precisam de uma logística grande para sua troca. Vejo os transtornos na avenida: filas de carros, espera, buzinas. Quando saio de carro, paro na esquina aguardando minha vez de passar: vejo aquele imenso poste balançando de um lado para o outro ao meu lado pelo vidro e imagino, como Paul Virilio, o acidente que ele pode causar. Passo veloz. É a mesma velocidade de meu andar pela mesma rua quando, depois, vou ao armazém para buscar um litro de leite: passo por três caminhões que estão trocando três postes no espaço de meia quadra e vejo, adiante, até a Protásio, outros postes sendo mudados e caminhões. É uma linha de montagem. Sei que pesam toneladas, e eu não passo dos 80 quilos e sei que, se um deles cair sobre mim, não poderei mais escrever os textos para RED. Apresso o passo enquanto penso nas regiões de Porto Alegre que ainda não têm luz, tem postes de madeira tortos ou têm serviço precário, entre outros problemas. Mas aqui é o bairro Petrópolis, e o bairro explica tudo. Ele é um dos que onde moram as classes dominantes de nossa cidade, ainda que eu seja apenas o resto de uma população pobre original que luta por sobreviver no local em seus prédios antigos. Já falei disso também em RED.

Esse é o mundo de concreto de que fala Jappe. Mundo dos nossos postes de luz, de nossas redes de esgoto e de nossos prédios ditos modernos. Seu texto foi originado pelo desmoronamento do Viaduto Morandi, em Gênova, em agosto de 2018. A escrita tem dessas coisas: um escreve sobre algo de Gênova, e o outro,  de Cidreira. “Esse outro sou eu”, penso parafraseando o Rei. Enquanto as pessoas acreditavam que a queda do Viaduto era incompreensível, Jappe tinha a certeza de que a razão estava associada ao material do qual era feito: concreto armado. Pesquisou e começou a encontrar não apenas sua história, mas as queixas contra o material, mas não apenas a ele, mas ao uso dado a ele pela arquitetura moderna. A primeira conclusão é que o concreto matou as arquiteturas tradicionais, sentencia. Embora Jappe não seja um especialista em arquitetura, assim como eu não sou nas reformas que realizo na minha casa, ambos conseguimos perceber um notável vínculo negativo entre o concreto e o mundo.

Eu sei que, como o desmoronamento italiano, Porto Alegre e o Brasil já tiveram casos importantes. Pergunto a IA Ceci que me dê exemplos – sim, estou dividido agora minha atenção com uma nova IA – e ela me diz que a fachada de dois prédios na Avenida Barros Cassal  desmoronaram em 2023, quando eu só me lembrava da marquise de um prédio em frente a Santa Casa; ela cita o caso do esqueletão da Rua Marechal Floriano, mas ela sabe que não foi um desmoronamento, mas que tinha risco de um; cita os casos em Gramado que, após fortes chuvas que levaram a uma rachadura no solo, um prédio desabou no bairro Três Pinheiros; as obras construídas por milicianos em Muzema, no Rio de Janeiro, em 2019, construções irregulares e finalmente o Edifício Gralha, em Passo Fundo, interditado por risco de colapso estrutural por rachaduras e falhas graves nas escadarias. O ponto comum entre esses prédios é que todos também tinham cimento armado em sua construção. Grato, Ceci, pelas informações. Peço desculpas à IA  Perplexity por ser infiel.

O argumento de Jappe

Gostaria de reconstruir parcialmente para o leitor o argumento de Jappe que me interessou. É que ainda estou no começo do livro. Ainda que os especialistas divergissem em suas explicações da queda da Ponte Morandi, na Itália, para Jappe, a explicação clara é que ela caiu “porque era de concreto armado e já estava com meio século de existência” (p. 17). Ele diz isso porque poucos sabem — eis a um segredo que poucos sabem — que o limite de tempo de construção com concreto armado é de trinta anos, o que me surpreende, já que meu próprio prédio tem ao menos o dobro desse tempo e possui também concreto armado em sua construção. O que está acontecendo com ele? Eu sempre fiquei meio desconfiando de seus problemas, não apenas pelo vazamento que relatei nas páginas de RED, mas pelo fato de que, fazendo um único furo na parede, encontrei o que parecia ser… areia (!) no espaço que deveria ser a argamassa entre os tijolos. Imagine a cena: eu olho o buraco que abri na parede para colocar uma bucha e como na abertura de It, uma obra-prima do medo (2017), eu sou como Georgie, que olha o bueiro como eu olho o buraco da minha parede, mas eu não vejo nada, enquanto ele vê o sorriso de Pennywise emergindo na escuridão da sarjeta. O que a cena do filme e o buraco que fiz têm em comum é possibilitarem ver uma tragédia anunciada. Foi assim com os prédios citados. Quantos outros mais estarão por aí?

Jappe afirma que a onipresença do concreto armado em nossas cidades nem sempre foi assim. Ao contrário, construido no seculo XIX ele teve um impulso somente entre os anos 1950 e 1970. Qual o segredo que não se diz de milhões de moradias, pontes, barragens, aeroportos e prédios construídos com concreto armado? Que eles não são eternos, eles são sujeitos à corrosão, sofrem alteração substancial ao longo do tempo, são materiais vulneráveis, que se desagregam. E pergunta: “E se a sua desagregação fosse não apenas a face visível dessas obras, mas também a consequência do desmoronamento ou da decomposição da sociedade que o engendrou?” (p. 18). Confesso que essa hipótese é sedutora demais para não a acompanhar. Sei que a cultura empresarial, os imperativos do lucro, a cobiça dos compradores por prédios mais baratos faz com que os mandamentos de segurança cedam à necessidade de lucro.   Mas, pergunta Jappe, por que temos de construir tantos prédios? Já não é hora de fazer uma crítica ao seu uso massivo? Porque não voltar aos métodos tradicionais de construção, penso. Ele cita a afirmação do jornal inglês The Guardian, que não é de esquerda, que já qualificou o cimento como “o material mais destrutivo da Terra”. Fonte de lucro de alguns, é a perfeita realização da lógica do valor mercantil e, de fato, sem fazer piada, é o lado concreto da abstração capitalista: “Estamos com um número de construções humanas que pode literalmente entrar em colapso e ruir a curto prazo – deixando para trás horríveis destroços”, afirma Jappe.

Sinto remorso pela obra que estou fazendo: aquelas duas pilastras do muro estão colaborando para a destruição do planeta. Eu deveria ter optado por vigas de madeira como eram as antigas da casa, penso, mas agora é tarde, essa obsessão pela arquitetura moderna é a mesma que é criticada por Jappe. Ele retoma o fato de que o próprio Panteão de Roma foi construído com esse material, com cal, calcário calcinado num forno, areia e agregados diversos e água. Mas ele lembra que havia os concretos de terra, no caso adobe e taipa, também conhecidos desde a origem do mundo.  Mas há uma diferença entre o panteão romano e as construções atuais: enquanto aquele é de concreto, as demais são de concreto armado. O primeiro é milenar; o segundo, uma invenção do século XIX. É por isso que ele se vincula como o material de construção de base do capitalismo, e não seria possível erigir os arranha-céus atuais sem ele. É o uso da armadura em ferro que causa danos. Argamassa é a soma de agregados, areia, água e aglutinante; é hidráulico quando envolve pedaços de pedras e argilas cozidas, trituradas e areia, com aglutinante, porque pode pegar inclusive debaixo d’água. O concreto apareceu entre os romanos pelo acréscimo de pozolana à argamassa, “um granulado vulcânico extraído em Pozzuoli, perto do Vesúvio”, diz Jappe (p. 26). A argamassa liga as pedras, e o concreto romano as substitui. E a pedra artificial. Baudrillard ia adorar falar disso.

O concreto antigo e o moderno

O concreto antigo é apenas concreto; o concreto de Le Corbusier é concreto armado, pois tem uma armadura. Ele tem relação com o aperfeiçoamento de cimento, este sim vinculado à Revolução Industrial. Primeiro com John Smeaton, em 1775, depois com James Parker, em 1796, e finalmente com Louis Vicat em 1818. Os aperfeiçoamentos finalizaram quando Joseph Aspdin registrou em 1824 a patente do cimento Portland, baseado no clínquer, mistura composta por 80% de calcário e 20% de argila, levado ao forno de 1.450 °C. O cimento natural passou a ser um aglutinante e, posteriormente, com Isaac Johnson, desenvolveu-se o cimento verdadeiro Portland, que é mais duro que o original e permitiu a construção de grandes estruturas de concreto. Entretanto, o cimento natural ainda não era o concreto armado que conhecemos, o qual só se tornou possível graças às experiências de Joseph-Louis Lambot, que criou barquinhos feitos com argamassa e armação de grades de ferro que flutuavam, apresentados na Grande Exposição Universal de Paris de 1855, e que resultaram na patente de ferrocimento. Após, em 1867, Joseph Monier patenteou seu uso para reservatórios, escadas, pontes e casas. Entretanto, morreu pobre o inventor do concreto armado, então chamado de “Monieresein” (ferro Monier), que foi usado no Reichstag em Berlim (1884-1894).

Para a realização de grandes edificações, era preciso solucionar o problema da repartição das tensões, o que foi feito pelo engenheiro François Hennebique com seus métodos de cálculo do concreto armado e que provocam a dor de cabeça de qualquer candidato a engenheiro civil de nossas universidades. Ao contrário do seu uso inicial no passado, que, segundo Jappe, utilizava materiais de menor valor do que os tradicionais e não exigia qualificação dos operários. “É a marca de toda a epopeia do concreto armado: prescindir do conhecimento prático, ou savoir-faire, dos artesãos profissionais e economizar na qualidade dos materiais” (p. 31). Quer dizer, o concreto nasceu popular, serviu para regenerar bairros pobres, construção de casas para operários, mas ainda mantendo certa elegância da forma e conforto. E o que foi mais notável foi o elo que produziu entre a burguesia progressista e as “moradias para todos” (p. 32). Essa invenção, entretanto, teve um custo: substituir os métodos tradicionais de construção e mudar a face das cidades.

Outras informações curiosas de Jappe são que o concreto não era então para todo o prédio, não tinha a centralidade que tem hoje; ao contrário, era somente usado nas fundações das construções. Elogiava-se sua resistência ao fogo, o que é um erro, já que as armações deformam-se com o calor.  Sua aceitação assim foi demorada, somente nas partes menos visíveis, pois era um elemento popular por seu baixo custo. Destinava-se para construções para as massas: hoje eu observo os novos prédios com ele para os ricos. Isso, sim, é ressignificação. O povo que antes se aglomerava em construções de concreto era a classe popular; o que hoje o ocupa é parte das elites. No passado, o uso do concreto era algo visto como progressista no material; hoje, é elitismo; e, por isso, desde o ano de 1920, governos europeus o adotaram para programas de construções públicas. O concreto silenciava assim seus concorrentes, segundo Jappe: “as técnicas de alvenaria em tijolo mais ou menos armado, abundantemente utilizadas na Grã-Bretanha, na Bélgica e na Alemanha, durante o último terço do século XIX, assim como as maneiras de associar ossatura metálica e alvenarias, chamadas de catalã” (p. 37). E cita o exemplo mais notável, o de que nem mesmo o Empire State Building, concluído em 1931, e o mais alto da época, o utilizou. Sua ossatura era metálica, revestida de materiais como tijolos e concreto não armado para proteger do fogo. Penso que o concreto armou uma armadilha para as cidades, porque foi de demorada assimilação, partindo inicialmente de sua “integração lenta aos modos de construção tradicional, tanto no plano técnico quanto no da organização do trabalho” (p. 37).

Efeitos do abuso de concreto hoje

Somente no pós-45 vemos construções erigidas exclusivamente em concreto. Ao lado de meu modesto apartamento no bairro Petrópolis, está sendo construída uma obra. Falei dela antes. Ela promete me tirar a vista de trás de meu apartamento: eu vejo já se erguerem as colunas de concreto armado que sustentarão paredes e que terão como efeito retirar uma bela vista que tenho há mais de 20 anos. Do dia para a noite e sem direito a indenização. Ninguém fala da perda da visão que essas construções fazem em nossas cidades, essa redução da qualidade de vida de um a custa do dinheiro de outro. Cada nova construção nasce se esgueirando para ter a melhor vista ao preço de cegar a visão dos prédios do entorno.   Esse é um dos efeitos do que Jappe denomina de imperialismo do concreto armado, produto de sua transformação em material universal da construção de nossas cidades.Jappe cita o exemplo da Cement City, criada no distrito de Donora, no estado da Pensilvânia, composta por 80 casas de concreto construídas entre 1916 e 1917 para os funcionários da American Steel and Wire Company. E reflete sobre o fato de que, nas suas origens, o concreto não produziu nenhuma mudança ou associação estética como hoje, o que só aconteceu após ser absorvido pelo funcionalismo, construtivismo e racionalismo de arquitetos como Le Corbusier, e lembra que poucas obras originais do período inicial com concreto tinham ornamentos. Por isso muitas obras construídas com concreto armado tinham fachadas de mármore. O concreto, por muito tempo, nunca foi algo bonito; somente com algumas vanguardas artísticas, como o futurismo, foi considerado capaz de substituir a madeira, pedra e tijolo, como apregoa o Manifesto da Arquitetura Futurista, de 1914, cuja epígrafe abre este ensaio. Este manifesto é uma continuação do Manifesto por uma sociedade de proteção às máquinas (ou carros, já que a palavra italiana macchina designa os dois objetos), redigido pelo publicitário futurista Fedele Azari, e que estabelece as coordenadas do futuro que vivemos hoje: um mundo de concreto, abarrotado de carros, onde os prédios e os automóveis são considerados mais importantes que as pessoas.  “Eles não imaginavam o que estava por vir”, diz Jappe.

A conclusão é que vemos hoje à eliminação da diversidade arquitetural e a uniformização mundial com concreto armado, visto como “estilo internacional”. Eu lamento que este estilo também esteja chegando a Porto Alegre, com seus novos lançamentos de prédios que a transformam mais numa “cidade igual”, parafraseando Byung Chul Han. A indústria turística não avançou também por essa fome de identidade, de autenticidade? Ela é uma forma de reagir: nas cidades sem história, a população corre para o turismo das cidades históricas. O que produziu os problemas novos de xenofobia turística como conhecemos etc. Mas elas também agora estão se tornando iguais as demais pelos numerosos turistas que as frequentam. Há solução? Sem a mudança radical na sociedade capitalista neoliberal, não. Minha obra está finalizando e, após a leitura de Jappe, espero não me arrepender. É que esta não é uma resenha, é apenas um resumo dos dois primeiros capítulos, meu caro leitor, apenas para  convidar você continuar comigo uma leitura que promete.


Publicado originalmente Sler.

*Jorge Barcellos é graduado em História (IFCH/UFRGS) com Mestrado e Doutorado em Educação (PPGEDU/UFRGS). Entre 1997 e 2022 desenvolveu o projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal. É autor de 21  livros disponibilizados gratuitamente em seu site jorgebarcellos.pro.br. Servidor público aposentado, presta serviços de consultoria editorial e ação educativa para escolas e instituições. É casado com a socióloga Denise Barcellos e tem um filho, o advogado Eduardo Machado. http://lattes.cnpq.br/5729306431041524

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Foto de capa: Memorial do Legislativo | Foto: Joana Berwanger/Sul21

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Uma resposta

  1. Fantástico!! É isso, se não ENTENDERMOS como se faz, de onde vem, porque, etc, seremos engolidos por tudo. E ainda: acho que o concreto só tem garantia de 60 anos (v. queda do viaduto Paulo de Frontin)

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