O Salário Mínimo e o Terror Fiscal dos Conservadores

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Por MARIA LUIZA FALCÃO SILVA*

O anúncio de que o salário mínimo em 2026 será de R$ 1.631 provocou imediato barulho no campo conservador. Não surpreende: a cada reajuste, repete-se a mesma ladainha sobre “colapso da Previdência”, “aumento insustentável do déficit” e “irresponsabilidade populista”. Mas a narrativa não resiste a uma análise mais honesta. O salário mínimo não é um luxo, é um direito constitucional, parte essencial da rede de proteção social brasileira, e também um instrumento de dinamização da economia.

Basta observar a realidade: nas pequenas cidades, sobretudo no interior, o que garante vitalidade ao comércio local são as aposentadorias e pensões vinculadas ao mínimo. O acréscimo de alguns reais no contracheque de milhões de famílias se transforma em consumo imediato, irrigando atividades que, de outro modo, estariam paralisadas. O salário mínimo tem, portanto, duplo papel: protege o trabalhador e funciona como política anticíclica em um país ainda marcado pela desigualdade e pelo desemprego estrutural.

O argumento de que esse reajuste ameaça a Previdência é falacioso. O impacto é real, mas absolutamente previsível e já considerado nas contas públicas. A Previdência não “quebra” por causa do salário mínimo, mas sim quando se tolera a precarização do mercado de trabalho, que reduz contribuições, quando se abrem exceções para setores privilegiados e quando se fecha os olhos para fraudes e renúncias bilionárias. O que falta é enfrentar as distorções e ampliar a base de financiamento, e não penalizar os mais pobres em nome de um suposto equilíbrio que nunca toca nos de cima.

O mesmo se aplica ao déficit. Há décadas, naturalizou-se a ideia de que qualquer gasto social é ameaça às contas públicas, enquanto os verdadeiros ralos do orçamento permanecem intocados. É preciso dizer com todas as letras: o déficit brasileiro está menos relacionado ao gasto com políticas sociais do que à combinação de juros exorbitantes e estrutura tributária regressiva. O peso da dívida pública não decorre de aposentados que recebem um salário mínimo, mas da transferência cotidiana de recursos do Tesouro para o rentismo financeiro. Enquanto isso, o sistema tributário continua cobrando pesadamente sobre o consumo popular e aliviando os mais ricos.

Se o país tivesse a coragem de enfrentar a questão tributária, muito da polêmica em torno do salário mínimo desapareceria. Não é utopia: bastaria alinhar o Brasil ao que já se pratica no mundo. Cobrar imposto sobre lucros e dividendos, algo que quase todos os países fazem, é uma medida básica de justiça fiscal. Ampliar as faixas progressivas do Imposto de Renda, de modo que quem ganha mais contribua mais, é outro passo óbvio. Rever isenções que beneficiam setores de alta rentabilidade e criar instrumentos de tributação sobre grandes patrimônios, heranças e fortunas são medidas que, longe de serem radicais, são o mínimo que se espera de uma democracia madura. O problema não é técnico, é político.

E política é o que não falta no debate. O governo, ao propor R$ 40 bilhões em emendas para acomodar sua base, mostra que recursos existem e podem ser realocados. Se há espaço para atender demandas fisiológicas, certamente há espaço para cumprir a Constituição e assegurar ganho real ao mínimo. O discurso da escassez, tão repetido, é seletivo: falta dinheiro quando se trata de salários, previdência ou assistência, mas sobra quando o tema são juros, renúncias fiscais ou emendas parlamentares.

Transformar o salário mínimo em vilão é um truque antigo, usado para esconder a verdadeira questão: quem paga a conta do Estado brasileiro? A resposta, até hoje, tem sido desfavorável à maioria. O trabalhador assalariado, o consumidor, o pequeno empreendedor são chamados a sustentar um sistema que poupa os mais ricos e recompensa o rentismo. O reajuste do mínimo, longe de ser ameaça, é oportunidade para recolocar esse debate em outro patamar.

O Brasil precisa decidir se continuará prisioneiro de um modelo fiscal que preserva privilégios e sacrifica direitos ou se terá coragem de construir uma tributação mais justa e eficiente. O reajuste do salário mínimo não é o problema; o problema é a recusa sistemática de enfrentar os verdadeiros nós da desigualdade. O resto é lero-lero fiscal, repetido à exaustão para intimidar a sociedade e manter intacto o pacto de privilégios que atravessa nossa história.


*Maria Luiza Falcão Silva é PhD pela Heriot-Watt University, Escócia, Professora Aposentada da Universidade de Brasília e integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É membro da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia (ABED). Entre outros, é autora de Modern Exchange Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies, Ashgate, England/USA.

Foto de capa:  Reprodução

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Respostas de 2

  1. O trabalho é “clean” e você vai direto ao ponto, Tema muito relevante mexe com a distribuição de renda.
    Aumento do salário mínimo melhora o bem estar dos mais pobres que consomem mais e estimulam o crescimento.

  2. O trabalho é “clean” e você vai direto ao ponto, Tema muito relevante mexe com a distribuição de renda.
    Aumento do salário mínimo melhora a renda dos mais pobres que permite o aumento do consumo e do bem estar estimulando o crescimento da economia.

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