Da REDAÇÃO, com base no artigo “O Que É o Bolsonarismo? Muito Além da Abordagem Sociológica”, de João Feres Júnior e Carolina Almeida de Paula, publicado na revista Dados (2025)*
Um debate que exige nova lente
O artigo de João Feres Júnior e Carolina Almeida de Paula reabre o debate acadêmico sobre o bolsonarismo ao questionar o domínio da chamada “abordagem sociológica”, que, segundo os autores, reduz o fenômeno a categorias como movimento social, identidade coletiva ou nova subjetividade conservadora, quase sempre apoiadas em pesquisas com baixa representatividade e forte dose de ensaísmo. Os autores sustentam que esse enquadramento, embora útil para descrever discursos, não explica o que há de mais robusto no fenômeno: seu alcance eleitoral e sua impressionante capacidade de mobilizar milhões de brasileiros em 2018 e 2022. Para avançar, os pesquisadores defendem que o bolsonarismo precisa ser compreendido como resultado de uma esfera comunicacional própria, heterogênea, fragmentada e muito mais ampla do que as redes sociais.
Os limites da abordagem sociológica
O estudo revisa trabalhos que caracterizaram o bolsonarismo como movimento social ou como expressão de novas subjetividades conservadoras surgidas em meio à crise política. Para os autores, falta a esses estudos uma conexão clara entre o suposto movimento social e a formação de opinião que levou Bolsonaro às urnas. Muitos dos trabalhos analisados utilizam amostras reduzidas – etnografias localizadas, entrevistas com poucas pessoas ou observações de eventos em São Paulo – e não explicitam como os dados foram coletados ou generalizados. Também são vagas as descrições sobre organização, hierarquia, recursos, mobilização ou sobre como esse “movimento” produziria adesão eleitoral. Os autores argumentam que, sem rigor metodológico e sem explicitar a mediação comunicacional, a categoria “movimento social” acaba funcionando mais como metáfora do que como explicação.
Um desenho de pesquisa mais representativo
Para superar essas lacunas, Feres Júnior e Almeida de Paula conduziram 24 grupos focais online, reunindo cerca de 240 participantes em seis capitais (Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Recife, Goiânia e Belém). Todos haviam votado em Bolsonaro no segundo turno de 2018, mas foram divididos em dois grandes perfis: os que mantêm apoio ao ex-presidente e os que se arrependem do voto. Essa segmentação permitiu observar com precisão como valores, percepções políticas e hábitos de consumo de informação se distribuem entre grupos distintos. O momento da pesquisa – maio de 2021, no auge das crises sanitária e econômica da pandemia – ampliou a nitidez das falas dos participantes, especialmente sobre vacinação, economia e confiança na imprensa.
Valores em disputa: família, gênero, segurança e militares
A pesquisa confirma que valores conservadores seguem sendo um pilar importante do bolsonarismo, sobretudo entre evangélicos. A defesa da “família tradicional” e a rejeição à chamada “ideologia de gênero” aparecem de modo recorrente. Muitos participantes acreditam de forma convicta em narrativas como o “kit gay”, supostamente distribuído em escolas durante os governos do PT, e fazem da Bíblia sua principal referência normativa. Um dado relevante do estudo, porém, é a diversidade interna: vários apoiadores fiéis discordam da maneira agressiva com que Bolsonaro trata temas de gênero, enquanto arrependidos rejeitam por completo o enquadramento moralista do ex-capitão. No tema da segurança pública, o grupo se divide: parte defende a ampliação da posse e porte de armas, enquanto outros, inclusive apoiadores, afirmam que a segurança é dever do Estado. Já a imagem dos militares é amplamente positiva entre bolsonaristas renitentes, que os veem como disciplinados, honestos e capazes de impor ordem. Mas a ideia de retorno da ditadura tem apoio minoritário, aparecendo apenas entre os mais radicais.
Pandemia, ciência e o papel da desinformação
A pandemia é o momento em que a pesquisa revela com maior clareza a penetração da desinformação entre eleitores fiéis de Bolsonaro. Muitos ligam a origem do vírus a interesses da China, minimizam a importância das vacinas ou defendem tratamentos sem comprovação científica, como cloroquina e ivermectina. Mesmo diante da mediação da pesquisa, que reforça a ausência de evidências científicas, participantes recorrem a médicos e conhecidos para sustentar convicções pessoais. Entre arrependidos, a indignação é profunda: veem omissão, atraso na compra das vacinas e negligência como elementos centrais da crise sanitária. A assimetria informacional – e a crença num conflito permanente de versões – aparece com força, alimentada por uma dieta comunicacional que relativiza a autoridade científica e jornalística.
Por que votaram em Bolsonaro — e por que alguns se arrependeram
Os autores mostram que a maioria dos participantes não conhecia Bolsonaro antes da campanha de 2018. Sua adesão se deu principalmente pela rejeição à política tradicional, pela promessa anticorrupção da Lava Jato e pela imagem de outsider. Em 2021, esse mesmo eleitorado se divide: os arrependidos citam a condução da pandemia, o comportamento incompatível com a Presidência e o caos administrativo; já os fiéis seguem atribuindo qualquer fracasso a inimigos externos — governadores, prefeitos, mídia, STF. Nas falas dos apoiadores renitentes, Bolsonaro permanece moralmente íntegro, mesmo diante de casos como o das “rachadinhas”, frequentemente relativizados como “coisas do filho”.
O mapa da informação: onde se forma o bolsonarismo
O ponto central do artigo está na demonstração de que a força do bolsonarismo depende menos de estruturas organizadas e mais de uma “esfera comunicacional bolsonarista”, formada por canais de TV simpáticos, redes de pastores evangélicos, grupos de WhatsApp, influenciadores digitais e comunicação direta do ex-presidente. Surpreendentemente, os autores mostram que muitos bolsonaristas ainda se informam pela televisão e por portais tradicionais, mas reinterpretam essas notícias a partir de filtros ideológicos fornecidos por fontes pró-Bolsonaro. A rejeição à Rede Globo é generalizada entre apoiadores fiéis, que preferem Record, SBT, CNN ou Jovem Pan. Já os arrependidos continuam a recorrer à Globo, ainda que a considerem tendenciosa. Essa ruptura da esfera comunicacional tradicional produz um ambiente de pós-verdade, no qual versões alternativas dos fatos convivem com desconfiança generalizada de todas as instituições de mediação — ciência, imprensa, universidades, partidos, Judiciário.
Esfera comunicacional, e não movimento social
A conclusão dos autores é contundente: o bolsonarismo não deve ser descrito como movimento social, nem como expressão de uma nova subjetividade conservadora. Ele é, acima de tudo, produto de uma arquitetura de comunicação que articula canais tradicionais e digitais, discursos religiosos, influenciadores, redes sociais e meios de comunicação alinhados à direita. Essa constelação garante a circulação de narrativas, valores e versões dos fatos que blindam Bolsonaro de críticas e mantêm sua base mobilizada, mesmo diante de escândalos, crises e contradições. O estudo sugere que, se o bolsonarismo sobreviver para além de Bolsonaro, será graças a essa infraestrutura comunicacional, e não a qualquer estrutura organizativa ou ideológica estável.
Ilustração da capa: Bolsonarismo além da sociologia – Imagem gerada por IA ChatGPT




