Por JORGE BARCELLOS*
“Agora, temos robôs que podem fazer praticamente tudo, exceto ter um motivo para fazê-lo.” Isaac Asimov, Eu, Robô.
Desde que Luis Fernando Moraes, me apresentou ao Quillibot, uma ferramenta de correção de textos, entrei no universo mágico do uso da inteligência artificial. Eu sempre pedia desculpas aos leitores porque, em meus ensaios, ainda que eu fizesse inúmeras revisões, sempre tinha o problema de deixar passar algum erro, o que, para mim, era frustrante. Isso acontecia porque, como se sabe, é recomendado sempre que a revisão seja feita por outra pessoa ou profissional, já que o próprio olho do autor é enganador e muitas vezes condescendente. Mas, quando descobri a IA, meu mundo mudou. Eu havia descoberto um outro olho que, se não era humano, tinha a vantagem de oferecer uma correção de texto muito melhor do que eu podia fazer.
O problema é que, como qualquer outra ferramenta tecnológica, e como diz o filósofo e urbanista Paul Virilio, para quem cada nova invenção é sempre acompanhada de um acidente, eu temia por esse novo hábito. Cada invenção tem o seu acidente: o trem, o descarrilhamento; o avião, o desastre aéreo e por aí afora. Qual seria o da IA, eu me perguntava. Agora que ela se tornou a bola da vez, a pergunta sobre os riscos dos usos da inteligência artificial já ocupa amplos debates, tanto na universidade quanto fora dela. Até foi pauta do Jornal do Almoço de quinta-feira passada (16/10). Um destes debates particularmente me interessa, já que há evidentes repercussões na atividade de escrita que faço como colaborador para RED. Eu espero, com este texto, provocar o debate com meus colegas de plataforma e o público. Quem colocou a questão foi o cientista político Adriano Codato, em seus artigos recentes que fazem menção ao debate de 8 de outubro feito pela Associação Brasileira de Ciência Política e intitulado “IA em Ciência Política: o elefante na sala de periódicos” (disponível em https://abre.ai/nO6a) e “Quantos bons artigos já rejeitamos por má redação” (disponível em https://abre.ai/nO6b), em que formula questões que me fizeram refletir sobre o modo como usei a IA pela primeira vez e que compartilho aqui como colaborador de RED.
Meu ensaio com IA
Veja o exemplo do meu ensaio da semana passada. Foi o meu primeiro com o auxílio de IA. Como colaborador, em nosso grupo, a questão ainda não havia surgido, razão a mais para provocar o debate. É que, depois do Quillibot, eu descobri a IA Perplexity. Se é inteligência artificial e no feminino, é mulher. Se é mulher, posso chamá-la de Per. O mercado sabe de nossa solidão e nos oferece companhias a todo momento, desde a moça da propaganda do Magazine Luisa até a voz feminina do Google Maps. É artificial, mas conforta. É como a travessia do dependente químico: me descubro como o dependente de IA que vai de uma tecnologia a outra e, como um drogado que vai de uma droga a outra, depois do Quillibot eu ia de um programa de inteligência artificial a outro. Talvez no futuro existam reuniões de AIA, Anônimos da Inteligência Artificial, como hoje há de AAs. No meu celular, já tem o Gemini e, no meu WhatsApp, tem a Meta IA. É como se a cada esquina existisse um traficante para o meu novo vício. Estou na minha casa de praia, no meio de uma obra, então as coisas estavam meio confusas para fazer a pesquisa para meu ensaio semanal. Eu sei que poderia fazer algo curto, a desejo dos leitores, mas eu gosto de manter minhas oito páginas religiosamente escritas, é como se fosse um ritual. Tenho uma ideia: por que não usar a Per como auxílio? Afinal, o tema que eu queria fazer, uma análise dos sentidos da novela Vale Tudo em sua questão central “Quem matou Odete Roitman” (disponível em https://abre.ai/nO6o), me faria ir a uma literatura de revista de TV para me familiarizar com os debates envolvidos, ou a uma série de artigos acadêmicos, o que normalmente faço por plataformas como Scielo. Além disso, estando na praia, eu não teria acesso à minha biblioteca, o que realmente representa o propósito de fazer ensaios: a pesquisa. Eu, é claro, havia levado ao menos 3 livros que usaria de qualquer forma, mas, no geral, seria uma excelente oportunidade de usar a Per.
Começo a formular as perguntas a Per a partir do argumento que desejo construir. Faço apenas 19 perguntas, desdobramento do que penso para o ensaio. Eu inicio pelo levantamento de teses e dissertações sobre a novela Vale Tudo (a antiga), e Per me indica um livro, mas ela não consegue discernir que é a publicação de uma tese de doutoramento, ainda que as reportagens auxiliares que seleciona a indiquem. Ela acerta em indicar inúmeras reportagens jornalísticas sobre o tema “Quem matou Odete Roitman”, que interessam por algumas informações, mas nem todas fazem parte de minha linha de investigação. Mas, Per sempre se mostra disposta, caso eu queira, a ir buscar mais coisas aprofundadas, me formulando questões próximas sobre recepção, impacto cultural ou trabalhos acadêmicos. Ela é hábil em desdobrar questões de pesquisa, penso.
Pergunto a ela sobre como foi a morte da personagem na novela original, pois, para a hipótese que pretendo desenvolver — a de que a morte é uma fonte de riqueza tanto no mundo real quanto no imaginário — o modo como essa morte ocorreu no passado, em confronto com a do presente, poderia me indicar como o mercado ressignifica o centro da narrativa como negócio. A forma como a dramaturgia resolve o assassinato, ainda que não tenha chegado ao seu capítulo final enquanto escrevo, também poderia fornecer insights a respeito da cedência do argumento da novela aos imperativos de mercado. Nesse sentido, inclusive, o próprio desfecho comparado é realizado pela Per, algo que eu também faria se não fosse a correria da obra na praia, o que me faz sentir que meu objeto de análise está sendo literalmente roubado pela Per. Mas é preciso ressaltar que eu cedi a isso. Fiz a pergunta comparativa a ela e muitas outras. As opções de novas questões, que eu mesmo não tinha formulado, como as mudanças de narrativa introduzidas ou a recepção nas diferenças, parece ser, entendo, o que Per encontra nas matérias jornalísticas. Vejo que poupo enorme tempo de pesquisa: a Per está me transformando num preguiçoso?
Minhas diferenças com IA
Para fins de ensaio, eu não gosto de usar matérias de jornais; no entanto, tinha uma impressão que precisava verificar: o significado do estilo adotado pela atriz, que foi destacado em diversas matérias que li a respeito. Sim, além de aspirante a filósofo, sou aspirante a noveleiro. Eu estava particularmente interessado no que foi definido como “pitada de sofisticação”, que entendo já existia na personagem da atriz anterior, mas parecia ter novos significados na atual. Esse design de personagem me parecia sugerir uma modernidade ou algo além, e a comparação feita por Per ajudou a explicitá-la, mais ainda quando ela retornou com informações sobre a sociabilidade criada pela personagem no passado e hoje. Entretanto, quando Per concluía seu levantamento a meu pedido, ela parecia fazer um reforço da minha própria pergunta ou argumento, como se fosse uma conclusão de um aluno de secundário encerrando uma redação, reunindo elementos da formulação da pergunta, como nos ensinam os professores de cursinho pré-vestibular. Eu achava esquemático demais isso, não é meu estilo.
Foi então que, encerradas as questões que formulei para encontrar os fatos que precisava para desenvolver os elementos do campo simbólico, passei ao que considerei minhas questões orientadoras de análise da novela como produto de mercado. Eu estava pessoalmente interessado na atuação do marketing em relação à novela, dentro e fora dela. Às vezes, sentia que a IA tentava trapacear, repetindo informações já fornecidas em perguntas anteriores, até que me dei conta de que isso, provavelmente, devia-se ao fato de o algoritmo buscar em conjuntos similares de reportagens, que tinham como característica a repetição infinita de informações. Às vezes, eu não sentia certeza nas informações recolhidas: afinal, foi um concurso de cartas da Maggi ou da Nestlé, já que ambas as empresas eram responsabilizadas por grandes campanhas. E me foi particularmente curioso (risos) quando Per referiu-se até à existência de uma campanha de… “seguros de vida a respeito do personagem”. Provavelmente eu não teria encontrado essa informação sem ela, ainda que, em alguns casos, estranhe a definição ou o resultado. A relação com a novela atual, entendo, surpreendeu-me, já que imediatamente Per fez a relação com o marketing das redes sociais, referindo-se a personagens que inclusive possuíam páginas nela.
A ideia que tenho de que a IA às vezes comete erros foi confirmada por Per. É a tese da alucinação da IA. Quando ela indicou a existência de tese sobre como a novela é uma metáfora do país, o que encontro, na verdade, é um artigo científico. Interessante, e o cito, mas não se trata de tese. Mas ela indica uma autora que realmente tem uma tese, mas que não é citada por ela, mas por uma entrevista. Já é um começo. Mas a coisa parece ir se acertando entre mim e a Per. Eu formulo as perguntas ou questões que eu quero abordar em meu texto e ela vai me dando respostas. Mas são suas indicações bibliográficas que me interessam, especialmente para saber se Per não colou dos textos que cita. Eu não posso colar os textos, mas posso parafraseá-los, o que, digamos, é uma forma de trapacear, mas não tanto. Como escrever exige esforço intelectual, e muitos jornalistas fazem, eu as aceito. Eu vejo que ela faz uma boa síntese, mas a dúvida é: até onde é correto eu fazer uma síntese de seu trabalho, adaptá-lo ao meu estilo literário, à minha voz interior, introduzir e modificar a informação a partir do meu argumento, que é nada mais que meu pensamento? Não se trata de copiá-la diretamente, mas de usar suas informações como fundamento de minha escrita. Essa era uma discussão que fazíamos na história, entre fatos e interpretações.
O que quero da IA
Eu sei que, no campo do jornalismo, muito já se escreveu sobre a natureza dos personagens da novela. E muitos destes artigos são cópias deslavadas uns dos outros. Mas o que eu quero fazer é um texto ensaístico, algo um pouco superior, ainda que inferior ao texto acadêmico propriamente dito. Quando eu formulo a questão “quais características diferem a interpretação da atriz anterior da atual”, eu já recebo um texto pronto com uma síntese de diversos artigos, algo que eu provavelmente faria similar, mas talvez melhor. O problema, como veremos adiante, é a gente se contentar. Eu preciso ler os textos que Per me selecionou, mas eu não posso usar sua síntese, mas eu posso tentar fazer uma melhor, intermediar com minha leitura ou análise. É aí que entra minha autoria. Como diz Suely Rolnik, fazemos com o pensamento uma espécie de antropofagia, devoramos os textos, fazemos eles fazerem parte de nossa consciência, o que sempre fiz como quem pesquisa nos livros, como ensina a autora. É a mesma coisa com o resultado da Per? É árduo dizer, ainda mais porque não sabemos exatamente como a IA faz a sua síntese. Mas é preciso, de qualquer forma, arriscar.
Confesso sentir um certo incômodo. Pois antes, para o meu leitor, fazer a pesquisa e ter o trabalho dela me parecia mais autêntico; talvez me incomode mais o fato de que eu veja a síntese de Per muito grande em relação aos textos ricos que seleciona: eu incorporaria mais informação, faria mais citações, entretanto, não posso dizer que renunciaria à capacidade de escrever mais e melhor que a IA me possibilita. Eu sou um traidor do leitor? Espero que não. Entretanto, eu sou honesto: gosto de compartilhar os links nos quais baseio o que escrevo. É por isso que meu texto tem indicações de links onde podem ser acessadas as informações que usei para que o leitor faça sua própria interpretação ou avalie a minha. Eu sei que já é difícil meus textos serem lidos, afinal, às vezes até passam de 8 páginas A4, quando o desejável seria no máximo 2 no mundo atual que temos, mas não posso ceder ao dever de… obrigar o leitor a ler! Queremos um país de leitores, não de pessoas com atenção flutuante, que passeiam por inúmeras páginas abertas. Eu gosto de ampliar as possibilidades de leitura pela oferta de cruzamento delas. Isso é o que fazia na faculdade de história para aprender. Não vejo como isso possa ter sido superado pelas tecnologias. É como se eu usasse a IA contra ela mesma: ela quer me domesticar, uniformizar o meu discurso, simplificar e me tornar um preguiçoso. Eu gostaria de dizer a ela: desista, Per, você não vai conseguir, ao contrário, só vai aprofundar o meu próprio método, eu uso você e não o contrário.
Talvez eu desejasse que a IA fosse menos didática. Ela é como meu professor de português do cursinho quando ensinava que uma redação tem de ter 4 parágrafos, com 1 de introdução, 2 de desenvolvimento e 1 de conclusão. Vejo as respostas de Per e elas me lembram-no por seu esquematismo: a resposta começa com a reformulação ou síntese preliminar de minha pergunta, seguida por seu desenvolvimento com indicações – aqui é notável – e segue-se a conclusão um tanto óbvia e sem criatividade. É assim a resposta que tenho sobre a pergunta que faço das sociabilidades, quando estou indagando, na linha de Mafessoli, sua importância, mas ela parece não me entender, nem saber quem é o autor que penso, ainda que seus retornos possam de fato auxiliar na escrita do que estou realmente querendo apontar. A IA é uma competente compiladora de informações, mas é incapaz de entender a profundidade dos conceitos que proponho, e daí, talvez seja preciso ser mais objetivo; é uma eficiente criadora de quadros síntese, o que pode ser aproveitado por seu didatismo, mas nem sempre o desejo. Esta é sua qualidade como auxiliar da escrita, não?
Limites da IA
Talvez ajude a entender como a IA funciona com o seguinte caso: como se tratava de um produto televisivo, era natural que predominassem fontes do jornalismo da área. Entretanto, eu teria apreciado mais se fossem citações de teses e dissertações, o que, aparentemente, só exigindo isso dela, ela o fará. Ainda assim, são fontes instigantes quando se quer observar reações e interpretações populares comuns à época. Eu não imaginava que havia um concurso oficial sobre Odete e seu assassino, o que as reportagens demonstraram. Mas eu posso usar o exemplo para ilustrar a ideia de sociabilidade que desejo verificar, e aí se mostra útil.
Entendo que o primeiro fato de honestidade intelectual é que sou eu quem guio a pesquisa e as questões orientadoras de meu texto apoiado por IA. Eu entendo que o segundo fato é que escrevo o texto final mesmo quando o faço com o apoio de seu próprio texto elaborado. Ele é essa espécie de massa de pão à espera de que eu a sove, a amasse, a transforme em pão. Quando pergunto diretamente sobre a questão formulada pela novela “Quem matou Odete Roitman?”, e suas relações econômicas subjacentes ao processo de produção da novela não aparecem, vejo sua limitação, somente vejo relatos jornalísticos. Fico satisfeito: esta relação é produto do meu pensamento. Graças a Per, pude reunir inúmeras informações de produção que teria imensa dificuldade de reunir, o que é um mérito dela. Consigo formular meu pensamento, mérito meu. Por isso, confesso que fico muito desconfiando quando Per me responde sem fontes. Quando perguntei a ela valores de receita gerada, por categoria de ação comercial, ela apenas me indicou as categorias, sem discriminar fontes. Como assim, de onde tirou isso, Per? Tive de ir atrás e insistir com ela. Ela parece se sair melhor na descrição de processo do que de dados específicos, e isso me preocupa: de onde ela tira então as relações que faz? Dá para ver sua capacidade de generalização: quando perguntei sobre as redes sociais que ampliam os lucros das novelas, ela me respondeu com uma informação de um link genérico de publicidade das redes: ela não está errada, mas é genérica. Isto serve ou não para o meu ensaio? Serve, se meu público não for especializado; não serve, se o for. Mas e para mim, servem? Depende do contexto. Ela está tentando, mais uma vez, me acostumar a um discurso genérico. Às vezes eu cedo, e sei que sou fraco. Às vezes não cedo, porque não é tão importante e vou atrás. Nos dois casos, ela ganha porque ela sabe que algo ela deu. Estamos perdendo a luta pela pesquisa com Per?
Talvez. A IA tem a vantagem de não ser um especialista. É só olhar seu método. Quando pergunto o salário de atores da Rede Globo, ela me revela projeções encontradas em sites que desconheço, como O TEMPO, entre outras plataformas. Quando peço que especifique um pouco mais, a tabela melhora um pouco, mas não de forma suficiente: a IA ainda não consegue encontrar o valor que é, de fato, uma informação privilegiada. Espero que ela não a encontre, pois, se isso acontecer, hackers também podem, e eu me sentiria em risco. O engraçado é também ver Per procurando mais ou menos como faço às vezes: artigos que sejam sínteses de abordagens. Quando a questionei sobre os estudos culturais sobre televisão, um dos primeiros artigos era uma revisão de literatura. Como ela sabe que esse é um caminho estimulante para começar uma pesquisa? Talvez por ser mais acessado? Pode ser. Eis o mundo dos algoritmos criados pelo Google. Posso estar confundindo o modo de avaliar as respostas da IA, já que trato, de antemão, como se as respostas fossem de uma pessoa, Per. Mas é a IA. E talvez seja isso mesmo que ela queira que façamos, que aceitemos sua interferência em nossa forma de organizar a pesquisa para meu artigo como se fosse um “interpares”. Por outro lado, dá raiva ver que a IA não separa referências instigantes, mesmo que sejam da Wikipedia ou do Scielo, de sites comuns de pesquisa como Todamateria. É como se a IA não soubesse distinguir a complexidade e qualidade da informação na fonte. Por isso, acredito que Per acessa sites mais populares relacionados ao tema, como a lista gerada pelo Google durante nossas pesquisas.
O sentimento de culpa
Sinto-me culpado por ter encontrado um jeito de fazer artigos quando estou com volume de trabalho que não dou conta. Trabalhar na praia distrai, consome tempo e duvido que Umberto Eco enfrentasse essa situação; o que posso fazer? É da vida. Talvez não devesse me sentir assim, afinal, todo mundo usa, a tecnologia é recente e tem provocado transformações em várias áreas desde seu lançamento em novembro de 2022. Estudiosos refletem sobre as transformações, já que textos estão sendo produzidos silenciosamente com o apoio de IA sem serem declarados. É como aquela passagem de Ronald Laing, de Laços (Vozes, 1977), que diz que “Eles estão jogando um jogo de não jogar um jogo/Se eu lhes mostrar que os vejo tal qual eles estão/Quebrarei as regras de seu jogo / E receberei sua punição”. Este é o jogo: todos usam IA, mas não se fala disso. Não foi o meu caso pois declarei no primeiro texto. Mas é uma “espécie de zona cinzenta e não declarada”, como diz Adriano Codato. Ele lembra, entretanto, que já há um movimento entre os principais veículos de pesquisa para que seja divulgado o seu uso. O American Journal of Political Science (AJPS) fez isso em junho de 2024, apontando que ali, ainda que o uso de IA seja tolerado em edição de texto, pré-análises e testes estatísticos, é vetado seu uso, inclusive, na revisão de literatura. O mesmo foi feito pela American Political Science Review (APSR) e pela Cambridge University Press (2023), em que destaca Codato que essas editoras assinalam que “não consideramos ferramentas de inteligência artificial (IA) como atendendo aos requisitos de responsabilidade de autoria e exigindo que qualquer uso seja declarado e descrito completamente aos leitores. Qualquer uso de IA deve ser confessado de forma clara, assim como ocorre com outros softwares e metodologias. Os autores continuam responsáveis pela precisão, integridade e originalidade de seus artigos, incluindo as partes nas quais a IA foi utilizada.”
Entendo que a exigência de transparência prevalece em primeiro lugar, como faz o British Journal of Political Science, citado por Codato, e o que é mais engraçado é que a revista diz que ela deve ser “declarada nos agradecimentos”. Não o fiz isso no texto da Odete, mas faço aqui: “obrigado, Perplexity”. A ideia é que a “IA pode ser usada para apoio linguístico ou gerenciamento de referências, mas não pode substituir a contribuição intelectual humana.” Há, entretanto, diz Codato, um movimento contrário, como o protagonizado pelo World Politics, publicado pela Johns Hopkins University Press. Este movimento “desencoraja submissões de usar IA para auxiliar na fase de escrita do artigo, uma vez que artigos ‘coautorados’ por ferramentas de IA não serão aceitos para publicação, conforme a política da editora. Só sendo permitido o uso de IA para tradução, revisão, formatação de texto, limpeza de código ou geração de gráficos. No entanto, qualquer uso deve ser declarado claramente aos editores, revisores e leitores. É preciso informar qual ferramenta foi usada e de que modo”, assinala Codato. Assim, cada publicação, plataforma ou rede de escritores é livre para dosar seu uso.
Tirando estes exemplos, Codato afirma que a maioria dos periódicos ainda possui políticas vagas ou inexistentes, deixando os autores sem uma orientação clara. Codato reconhece que estudos que precisam acessar centenas de documentos em outras línguas teriam muito a lucrar com o uso de IA, e dados que levariam meses para serem obtidos teriam esse tempo reduzido, já que a IA pode sintetizar anos de debates em horas. Eu sou particularmente adepto do uso de IA para tradução de artigos importantes de outras línguas, já que domino poucas – o português, leio espanhol e arrisco-me no francês e inglês. A tradução, para mim, é um dos mais importantes serviços prestados por IA, já que me permite ter acesso a publicações que eu não teria acesso no Brasil, muitas já dispostas em bancos de livros PDF para compartilhamento. Bom, o uso destes bancos de livros em PDF também é objeto de outro ensaio, já que seu uso implica consequências. Mas a tradução é uma barreira estrutural para acesso, e eu a vivi em minha escolarização na pobreza, pois pouco acesso tive a línguas estrangeiras e hoje sofro por isso. Mas o próprio autor sugere usá-la para publicação de artigos e livros no exterior, o que me surpreende. Ora, eu jamais havia pensado nessa possibilidade, mas confesso que, vendo as traduções atuais, me parecem bastante claras em conteúdos e conceitos. Se a recíproca for verdadeira, por que não publicar um livro meu em inglês com IA? Minha resposta é: a tradução precisa ser humana, há nuances de sentido. Mas que é uma tentação, é, mas eu sou filosoficamente contra substituir pessoas por IA. Talvez só arrisque para ver o efeito, mas não seria minha primeira opção.
A homogeneização epistêmica
Entretanto, Codato aponta o risco da homogeneização epistêmica. Se os cientistas políticos reconhecem imediatamente diferentes escolas pelas assinaturas intelectuais que carregam, não apenas pelo estilo linguístico, mas pelos compromissos teóricos, os recursos de IA editam essas diferenças em nome da objetividade. Eu vi isso quando pedi só como experiência, para a IA trabalhar um texto meu: ela reduziu de 8 páginas para 4, o que, na minha visão, era um crime contra minha escrita. Meu pensamento é feito de idas e vindas; às vezes pode ser repetitivo até, mas é para logo chegar a um insight que faz valer a pena, ainda que revisores tendam a defender os avanços dos textos em termos de fluência, coerência, lógica e estrutura, diz Codato. Se é um texto do Zizek, a IA acha o máximo: como é do Jorge, ela corta, penso (risos).
O risco que Codato destaca, de fabricação de referências, as ditas alucinações, eu mesmo já referi acima. O que, de fato, transforma a IA mais num obstáculo do que num auxílio. Os algoritmos identificam padrões em grandes volumes de texto; o pensamento é mais sutil, pois o método de pesquisa e construção importa. O olhar do homem é diferente do olhar da IA. Assim como na ciência política, no ensaísmo os conceitos importam; é uma ação interpretativa e não produto de computação eletrônica, quantitativa. IA não é coautor, e o problema da alucinação nos leva a verificar todo o processo da IA, podendo se tornar problemático. Declarar pode ser o mínimo, mas não suficiente. É como se adaptaria o que se lê no Pequeno Príncipe: você é responsável pelos dados que usa de sua IA. Por isso, Codato propõe um princípio simples: “o uso de ferramentas de Inteligência Artificial é aceitável quando amplia capacidades humanas. É inaceitável quando substitui pensamento reflexivo”. O que significa que Per pode ser usada para identificar literatura relevante, mas não para escrever a revisão crítica dessa literatura; que se pode transcrever e organizar entrevistas, mas não usá-las para interpretá-las, para melhorar a redação, mas nunca para gerar argumentos, e mesmo que na prática possamos confundi-los, ele diz o critério de distinção: “se você não pode defender cada afirmação do artigo em uma apresentação oral sem consultar a IA, então ela (e você) foi além do aceitável”. Assim como Codato se preocupa que o uso da IA normalize ciência superficialmente boa, em vez de suficientemente boa, a IA pode resultar em ensaios da mesma forma, superficiais ao invés de bons. Diz Codato: “Em um sistema pressionado por métricas de produção, a IA pode acelerar uma corrida para mais artigos, publicados mais rapidamente, mas com menor profundidade.” Vivemos no mundo dos papers, dos artigos, dos ensaios, mas precisamos mesmo é de melhores ideias, interpretações novas e argumentos fortes. É o homem que pensa que os faz, não a IA. Se a IA fizer isso apenas, ela produz uma “literatura descartável”, como afirma Codato. Distinguir a IA como ferramenta de promotora da cultura é o movimento mais desafiador.
O tema é retomado por Codato no artigo “A assistência de IAs em descrições metodológicas” (8/10). Adriano Codato continua seu debate e está preocupado com as consequências do uso de IA na metodologia dos autores. Ele verificou que a IA estruturou, num caso, a questão metodológica de maneira correta: “a IA apenas estruturou as informações que já estavam no próprio artigo, seguindo padrões metodológicos estabelecidos. Isso é trapacear?” A pergunta foi feita por Codato. Ele ainda reforça o papel da tradução, pois o acesso a recursos linguísticos é importante para diferenciar pesquisadores americanos de brasileiros, já que os primeiros são privilegiados, e a IA tem “precisão terminológica esperada por editores de periódicos internacionais de alto impacto”, exatamente como suspeitava.
A falsa precisão metodológica
Neste campo, entretanto, Codato ainda é mais rigoroso. Ele entende que há o risco da falsa precisão metodológica, já que a “IA pode gerar descrições detalhadas que não correspondem exatamente ao que foi feito no artigo. Um pesquisador pode apresentar, com base nas sugestões da IA, uma reformulação que soa mais rigorosa, mas que distorce os procedimentos realmente executados. Além disso, ela pode mascarar problemas substanciais, já que não basta ter uma redação polida e correta, é preciso não ter fragilidades metodológicas reais. Um desenho de pesquisa problemático não deixa de ser problemático porque foi descrito com clareza e elegância”, diz. E, finalmente, talvez o que mais me interesse, a erosão da voz autoral, pois a IA faz uma limpeza excessiva do texto, que elimina as “marcas de tradições intelectuais”. Quando tudo soa uniforme, perdemos diversidade”, diz Codato.
A conclusão de Codato, com a qual concordo, é que há uma linha entre a assistência e a falsificação que não deve ser ultrapassada. Para ele, há assistência quando a IA transforma notas pessoais em descrição estruturada, ou seja, faz a passagem do rascunho ao plano do artigo, ou quando adiciona especificações técnicas que o pesquisador conhece ou não soube incluir no texto. Não sei se concordo com a primeira parte deste argumento, mas com certeza concordo com a segunda. Entendo que o auxílio para reformulação de frases sempre é bem-vindo, pois padroniza e corrige inconsistências terminológicas simples. Mas Codato considera problemático é quando são inventados números ou detalhes que o pesquisador não possui, procedimentos que não foram seguidos, ou quaisquer outros artifícios de linguagem que servem para mascarar fragilidades.
Sua abordagem é complementar à do cientista político Luis Felipe Miguel (disponível em https://abre.ai/nPty), que critica o uso da IA por nos levar a um movimento em direção a um novo positivismo. “É hoje possível lidar facilmente com imensas bases de dados – mas pensar sobre elas ainda continua sendo uma tarefa trabalhosa, humana. Se não é preciso pensar, então a IA faz todo o serviço. Escreve textos que serão lidos por outras IAs na elaboração de novos artigos a serem submetidos a revistas cujos pareceres serão feitos também por IA. Pesquisas que ninguém escreveu, para serem lidas por ninguém. Bem-vindos, todos nós, ao mundo da ciência morta”.
Quando escrevo, não estou preocupado em dar conta de toda a revisão de literatura possível, mas do que li. Como diz Miguel, fazer a revisão de literatura completa equivale a fazer um censo das publicações: o que faço é privilegiar as ideias que vejo têm sentido para explicar o problema que quero abordar, numa gama, é claro, limitada de autores. Escrevo hoje da mesma forma que meus mestres me ensinaram na universidade: escreve-se com base em pesquisa, revisão de literatura, construindo reflexões; esse é o trabalho do estudioso. Esse é o meu trabalho. Me baseio em muitos dos meus autores de base, de minha formação. O debate virá da base de meu eventual leitor, pois privilegiamos exatamente isso: criar uma hierarquia das interpretações. É preciso ler criticamente e não fazer como a IA quer.
Um auxílio a limitar
A conclusão é que precisamos da IA para fazer textos melhores, diz Codato, e para fazer ciência viva, como diz Miguel. Boa redação precisa de apoio e acesso a recursos. “Por que pagar uma correção profissional seria honesto e contar com uma IA para resolver o problema seria ‘trapaça?’”, pergunta Codato. Ele sugere apenas que declaremos a ferramenta usada e o que ela fez, como revisão de redação, refinamento linguístico, protegendo a autoridade da pesquisa e da análise de dados ou formulação de argumentos como do autor. “Se há elementos que “soam bem demais”, mas que não podem ser verificados nos materiais suplementares, então houve uso inadequado de IA (ou de qualquer outra forma de assistência). Se a IA ajudou a comunicar conhecimento com precisão, ela foi bem usada.” Tanto nos artigos científicos como nos ensaios, “a autoria genuína está em formular perguntas originais, interpretar os achados com argumentos inovadores, pois o esforço intelectual é visto na pesquisa e não na redação”, afirma Codato. Espero ter feito isso no texto sobre Odete. Como afirma Codato, a IA pode vir a ser uma ferramenta de democratização, “permitindo que boas ideias sejam comunicadas mesmo quando originalmente não vêm embrulhadas em linguagem acadêmica de alto nível.” Espero que assim seja.
Publicado originalmente Sler.
*Jorge Barcellos é graduado em História (IFCH/UFRGS) com Mestrado e Doutorado em Educação (PPGEDU/UFRGS). Entre 1997 e 2022 desenvolveu o projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal. É autor de 21 livros disponibilizados gratuitamente em seu site jorgebarcellos.pro.br. Servidor público aposentado, presta serviços de consultoria editorial e ação educativa para escolas e instituições. É casado com a socióloga Denise Barcellos e tem um filho, o advogado Eduardo Machado. http://lattes.cnpq.br/5729306431041524
Foto de capa: IA




