O Prefeito de chapéu de palha: o populismo antipopular de Melo

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De LUCIANO FEDOZZI*

Após anos de paralisia e suspensão das assembleias do OP em Porto Alegre,  desde o governo Marchezan até a pandemia de Covid-19, a Prefeitura resolveu retomar  a participação nas regiões criadas pelo Orçamento Participativo no início dos anos 1990.  As assembleias em cada uma das 17 regiões que compõem a divisão territorial da cidade  constituem historicamente a modalidade mais popular da participação no orçamento  público e na seleção das obras e projetos a serem priorizados em cada ano. Desde a  criação do OP as assembleias territoriais – e posteriormente as de caráter temático – adquiriram duas funções importantes: escolha dos setores prioritários e das obras que  devem receber os recursos em cada região e no conjunto da cidade (p. ex: saneamento,  habitação, saúde…), e a eleição dos representantes que devem compor as instâncias  permanentes de funcionamento do OP, na cidade e em cada região, respectivamente os  conselheiros municipais e os delegados regionais. A escolha de prioridades  orçamentárias e a seleção dos representantes populares ao Conselho do OP e aos  Fóruns de Delegados Regionais e Temáticos, originadas nas Assembleias de base,  mediante eleições diretas pelos indivíduos, demonstram a relevância desses momentos  cruciais na arquitetura da participação popular construída pelo OP em Porto Alegre.  

O OP de Porto Alegre cresceu e se consolidou nos anos 1990, a ponto de se tornar  uma referência nacional e internacional no campo das inovações democráticas e dos  modelos de boa governança. Foi reconhecido como a inovação que mais viajou no  mundo, estando presente hoje em todos os continentes e em países muito díspares em  termos políticos e econômicos. Todavia, sofreu um primeiro abalo no início dos anos  2000, na última gestão administrativa dirigida pelo PT, quando uma crise financeira  dificultou a manutenção da elevada taxa de execução das demandas populares até  então efetivada. Com a alternância do poder político, em 2005 em diante, ocorrida com  a promessa de manutenção do OP como uma conquista da cidade, por Fogaça  (PPS/MDB), o programa ingressou numa nova fase, não sendo mais considerado central  na gestão. À sua falta de resolutividade agregou-se a concorrência deste modelo popular  com outro projeto introduzido paralelamente a ele para promover a participação e o  atendimento de necessidades básicas das regiões, mediante parcerias do Estado e das  comunidades com setores privados, conforme noções próprias de governança. Além de  ilusórias, as parcerias da “Governança Solidária Local” falharam redondamente.  

O atendimento de demandas básicas por bem-estar urbano continuou  subvalorizado no período seguinte, concorrendo também, nos anos 2010, com a  priorização dos recursos para grandes obras no contexto dos megaeventos esportivos  do qual o Brasil foi anfitrião. Mais de 2.350 demandas aprovadas pelas comunidades das  periferias no OP acumularam-se sem execução pelo governo municipal, agora não mais  na situação de precariedade fiscal da Prefeitura, que recuperou a capacidade de ação  orçamentária e de novos investimentos com recursos próprios e externos.  

O enorme passivo de demandas populares – expressando a condição ainda  existente de precariedade em infraestrutura e serviços públicos dos territórios das  periferias – continuou se ampliando nos governos abertamente neoliberais de  Marchezan (PSDB) e de Melo (MDB), a partir de 2017. Nessa nova fase, o governo  Marchezan não escondeu suas preferências pela gestão privatista do New Public  Management e pela implementação do modelo de desenvolvimento urbano vinculado  às ideias neoliberais do empreendedorismo urbano e da “cidade-mercadoria”. Sem  poder extinguir a tradição participativa da cidade, Marchezan adotou o confronto com  as instâncias institucionais de participação, como a tentativa de retirar o papel de  controle social dos Conselhos Municipais, por meio de projeto de lei que previa esta  mudança da Lei Orgânica Municipal. A sua aversão à participação ficou celebremente  conhecida pela confissão pública que fez ao empresariado do setor comercial, algo que  entrará na história do pensamento elitista de Porto Alegre¹. De forma clara, tratava-se  de paralisar o OP, objetivo que foi viabilizado em 2017 com a ajuda de conselheiros  capturados pelos partidos tradicionais na Câmara de Vereadores e no Executivo. Isso foi possível porque o OP já estava descaracterizado, quando a fraca representação popular  abriu espaço para lideranças comunitárias pouco independentes e combativas.  

Foi neste contexto político que Melo assumiu a Prefeitura, em 2021, quando a  pandemia de Covid-19 o ajudou na suspenção das assembleias do OP até 2022.  Diferentemente do estilo tecnocrático de seu antecessor, entretanto, Melo percebeu  que a melhor estratégia não era a do confronto com o OP. Por um lado, a sua longa  carreira política local – em geral não identificada com os setores mais tradicionais e  conservadores da direita – foi suficiente para mostrar que a história do OP ainda é bem  guardada na memória social das comunidades das periferias, as quais ganharam um  status político inédito na disputa do conflito distributivo dos recursos. Melo é sabedor  do quanto esta memória tem potencial de ativação política na cidade. Por outro lado, como bom político, sabe que a simples extinção do OP teria um alto custo a pagar, tanto  local como nacional e até internacionalmente, já que o OP de Porto Alegre é saudado e  recomendado inclusive por instituições de financiamento, como o Banco Mundial (BIRD)  e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Melo certamente não quer entrar  para a história como o prefeito que acabou com o OP mais conhecido do Brasil e do  mundo. Diante desse custo político, a melhor estratégia é manter o OP, mas em banho  maria, sem poder real de influência nas prioridades orçamentárias, sem transparência,  sem controle social, sem critérios redistributivos para as regiões mais carentes de  infraestrutura e serviços. Enfim, um OP descaracterizado, um simulacro. 

Mantendo o OP assim é possível implementar o projeto de cidade orientado pelo  neoliberalismo urbano, sem sofrer grandes contestações e provocar confrontos com os  setores populares das periferias. Esta estratégia, mais inteligente e eficaz do que aquela  de Marchezan, está na base do populismo antipopular de Melo. O programa ultraliberal  de Melo é o mesmo de Marchezan, mas executado com a habilidade de um velho  político que transita nas periferias, cada vez mais adotando o estilo populista do  personagem simples de chapéu de palha que ele criou. O populismo, historicamente, se  caracteriza por uma prática de ação dirigida aos setores populares na condição de  subalternos do Estado ou da liderança, que assim lhes retira a condição de  protagonistas. No projeto populista, os setores populares das classes sociais estão mais  para um adjetivo das políticas, uma condição de objeto que lhes impede de almejar a  posição de sujeitos históricos das transformações. Nesse sentido, os setores populares  são dependentes da boa vontade do líder que tudo faz para reforçar a visão da política  como relações pessoais de favor. O líder populista tenta criar, assim, uma imagem de  identificação com os setores populares, como se fosse um dos seus, uma pessoa simples.  Esta identificação, entretanto, não age para elevar a consciência social sobre as  contradições da realidade e nem para afirmar a condição de portadores de direitos. É,  por isto, uma relação política de despolitização, que encobre compromissos  inautênticos com as classes e grupos dominados, sendo esses instrumentalizados na construção da hegemonia dos dominantes. Nas relações entre Estado e sociedade civil  é evidente que o populismo é antagônico à relação requerida pela noção de cidadania,  já que esta supõe uma condição de sujeitos com direitos igualitários e universalizáveis.

A retomada das assembleias do OP neste ano deixou claro, dessa forma, porque  o governo Melo representa o populismo antipopular. Entretanto, é preciso atentar para  o fato de que esta é uma contraface do projeto de implementação do modelo privatista  de cidade-mercadoria, modelo este que beneficia os setores ligados aos capitais  urbanos e imobiliários, e que é agradável aos olhos dos setores médios superiores, que  moram em bairros bem equipados e servidos pelo poder público. Senão, vejamos: a Prefeitura argumenta que não há recursos. Mas os dados oficiais mostram uma  recuperação da Prefeitura. Além disso, o argumento esconde o principal, que é como os  recursos existentes são utilizados hoje, ou seja, quais são as prioridades orçamentárias escolhidas pela administração, longe das decisões do OP, já que o conflito distributivo  sempre lida com o dilema dos recursos escassos diante das necessidades maiores.  

Conforme mostrou o Observatório do Orçamento Participativo (ObservaOP),  analisando os dados oficiais, a situação financeira da Prefeitura melhorou. Nos últimos  cinco anos, enquanto as despesas do município cresceram 12,6%, as receitas cresceram  20,4% entre 2017 e 2021, fazendo com que a prefeitura tenha superávits crescentes. Em  2021 o superávit foi de quase R$ 800 milhões e em 2022 foi de R$ 516 milhões. Outros indicadores fiscais também se destacam, como a queda dos gastos com pessoal, abaixo  do que estabelece a Lei de Responsabilidade Fiscal, e o pagamento das dívidas.  

Mas é na capacidade de realizar novos investimentos, ou seja, nos recursos que  podem ser alocados de forma discricionária, que ficam claras as prioridades do governo.  Em 2022 a Prefeitura investiu R$ 460 milhões, equivalente a cerca de 5% das despesas.  As projeções para 2023 são em torno de R$ 800 milhões, representando cerca de 8%  das despesas. Entretanto, desse total para investir em 2023, mais da metade serão  empréstimos para executar grandes obras na Área Central, Orla do Guaíba e no 4º  Distrito. Enquanto isto são destinadas migalhas para o OP, equivalentes aos míseros  2,1% e 1,8% dos investimentos nesses anos (R$ 10 milhões em 2022 e R$ 15 milhões em  2023), e isto para repartir entre as 17 Regiões e as 06 Temáticas. Além desses parcos recursos, foram executados apenas 20% do previsto em 2022, conforme noticiado  recentemente. Nas assembleias desse ano ao exibir em tela grande os R$ 20 milhões  que serão destinados ao OP em 2024, em nenhum momento é dada a informação do  quanto este dinheiro representa do total dos recursos previstos para os investimentos  projetados para o ano, porque o Prefeito teria que dizer que é pouco mais de 1%.  

Os investimentos vêm sendo realizados, mas não nas áreas mais necessitadas da  cidade. As periferias estão abandonadas porque a prioridade da Prefeitura é investir nos  bairros privilegiados, que já contam com urbanização, ou então em regiões em que se  pretende recuperar mediante expansão do mercado imobiliário, como no 4º Distrito e  na Orla do Guaíba. A Prefeitura está fazendo empréstimos priorizando grandes projetos  em áreas que já são favorecidas, como no caso dos R$ 60 milhões para melhorar a  pavimentação das ruas que já contam com infraestrutura. E R$ 548 milhões do Banco  Mundial para fazer grandes projetos na área central e no 4º Distrito. A pergunta da  cidadania que se impõe é esta: se a questão é fazer empréstimo, por que beneficiar  apenas os bairros de classe média e alta, onde as pessoas não usam chapéu de palha? 

Por que não um plano financeiro acordado com as comunidades para recuperar as mais  de 2.350 obras não executadas do OP que afetam dezenas de milhares de pessoas nas  periferias? Um pacto sério desse tipo poderia ser comemorado com muitos chapéus de  palha jogados ao ar. Os dados orçamentários mostram, por isso, porque o populismo de  Melo é antipopular, apesar do chapéu de palha usado pelo prefeito nas assembleias.  

A destruição do protagonismo que as classes populares haviam galgado na  história de Porto Alegre, por meio do OP, também vem ocorrendo com a retomada do  poder tradicional do Legislativo, como instituição da coalizão conservadora-autoritária elitista que governa a cidade. A saída de cena dos atores populares no conflito  distributivo local correspondeu à recuperação do poder tradicional exercido pela  maioria da Câmara de Vereadores. Não são apenas os projetos pró-mercado aprovados,  facilitando a desregulamentação da ocupação e uso do espaço urbano e beneficiando  empreendimentos que ferem a função social da cidade e a preservação ambiental. O  Legislativo ganhou seu quinhão na retomada das práticas clientelistas, com a adoção  das emendas impositivas do orçamento em 2019. Não surpreende que o Projeto tenha  sido de autoria de um ex-vereador cassado por abuso de poder econômico como  Secretário de Obras Municipal (SMOV), episódio que envolveu adulteração de ata sobre  obras supostamente definidas por moradores no OP, como indicou o Ministério Público Eleitoral². E não surpreende que hoje o mesmo ex-vereador dirige a Secretaria  responsável pelo OP e a política de participação do governo Melo. A premiação da  Câmara de Vereadores em valores para emendas impositivas corresponde a mais de três  vezes o valor para as obras do OP em 2023: são R$ 51 milhões contra os R$ 15 milhões.  

Dando prosseguimento ao projeto elitista-privatista em Porto Alegre, o círculo  se fecha com as práticas autoritárias nas políticas setoriais. Se por dentro do OP Melo  opera o seu desempoderamento, encoberto pelo discurso da insuficiência de recursos,  por fora dele sobram relações clientelistas, em especial nas pequenas ações realizadas  nos territórios mais carentes, onde se amplia a imagem da simplicidade do prefeito do  chapéu de palha. Entretanto, impossibilitado de adotar esta mesma estratégia nas  instâncias participativas das políticas setoriais, diante de uma representação civil menos numérica e mais seleta em renda e escolaridade, que atua nos conselhos municipais, o  prefeito vem partindo para o ataque visando suprimir estas instâncias de participação,  na saúde, educação, transporte e agora pela intenção de retirar o poder do Conselho  Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (CMDUA), instância muito  importante de participação da sociedade na definição do regime de desenvolvimento  urbano. O projeto neoliberal de cidade pretende assim dar o golpe final na democracia  participativa porque encontra ali resistências às políticas privatistas e excludentes.  

A implementação do projeto neoliberal da cidade-mercadoria e do city  marketing – que pretende ser um divisor de águas na história urbana da cidade – precisa ganhar o apoio da maioria de eleitores para se prolongar no tempo, daí porque as  estratégias do chapéu de palha, do populismo antipopular, são dirigidas aos setores das  periferias visando a construção da hegemonia do modelo pretendido para a cidade.  Melo e os agentes dos capitais urbanos sabem que as periferias podem decidir o futuro  do projeto, e que a memória social do OP ainda é grande e pode ser ativada. Mas a  implementação do projeto neoliberal nas políticas públicas esbarra na resistência das outras instituições participativas construídas desde 1985 em Porto Alegre, como os  Conselhos Municipais. Daí porque, nesse ponto, o populismo é substituído pelo  autoritarismo, já que Melo, seguindo Marchezan, pretende fazer a cidade regredir ao regime pré-democracia. Entende-se, assim, a aliança entre Melo e o bolsonarismo.  

Porto Alegre precisa resistir à destruição da democracia participativa  arduamente construída desde a redemocratização do país. E para isto é necessário que  as comunidades das periferias, os movimentos sociais, as organizações sociais dos  setores populares que mais precisam das políticas inclusivas sejam protagonistas da  resistência e da construção de alternativas hegemônicas na cidade. Protagonismo este  necessário para que uma coalizão pluripartidária, diversificada e plural recoloque Porto  Alegre no caminho de sua história democrática e popular a favor da maioria do seu povo.  


* Professor de Sociologia da UFRGS,  Coordenador do Observatório do Orçamento Participativo (ObservaOP), Pesquisador do Observatório das Metrópoles. 

¹Não será ninguém mais do que a elite da comunicação, a elite empresarial e a elite política que farão as  reformas tão necessárias. Delegar isso ao ‘Seu João’ e à ‘Dona Maria’ é irresponsabilidade”. (Nelson Marchezan Jr., prefeito de Porto Alegre, 30/11/2017, entrega do 34º Troféu Carrinho Agas. Disponível em: https://sul21.com.br/cidadesz_areazero/2017/12/o-joao-e-maria-tem-que-participar sim-conselheiros-municipais-rejeitam-projeto-de-marchezan/

²Justiça eleitoral determina cassação do mandato do vereador Cássio Trogildo (PTB). Juiz sustenta que  Trogildo está inelegível até 2020. https://gauchazh.clicrbs.com.br/politica/noticia/2019/05/justica eleitoral-determina-cassacao-do-mandato-do-vereador-cassio-trogildocjw6uzri5004o01qtkmkpzjeq.html (27/05/2019)

Imagem da Assembleia do OP Lomba do Pinheiro/2023.

Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaositered@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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