O Preço da Dependência e da Submissão

translate

Imagem gerada por IA ChatGPT

Por ADÃO VILLAVERDE*

A cidadania brasileira e latino-americana não tem nenhum controle sobre os instrumentos que usa diuturnamente para ler, escrever, se informar, se comunicar, planejar suas coisas e também para realizá-las, se locomover, cuidar da sua saúde e tantas outras atividades que poderíamos nomear aqui, de forma quase exaustiva. Ou seja, desde a vida cotidiana, passando pelo trabalho e chegando às relações em sociedade, a dependência desses instrumentos é cada vez maior e mais ampla.

Aliás, esse também foi um tema que esteve como pano de fundo no seminário que realizamos há poucos dias na Universidad Nacional de Avellaneda (UNDAV), na Argentina, chamado “Tecnologías Convenientes para la Soberanía Latinoamericana”.

Como não temos a possibilidade de quantificar o valor que um país ou região paga pelo uso de instrumentos ou ferramentas de forma corrente e recorrente, sobre os quais não se tem nenhum controle, ainda que o exemplo possa ser reducionista e representar apenas uma pequena parcela do que estamos tratando, um recente trabalho com base em evidências concretas parece representar bem parte do preço que pagamos por essa dependência.

Refiro-me ao estudo recente realizado pela USP e UNB, com outras entidades, intitulado “Contratos, Códigos e Controles – A influência das Big Techs no Estado Brasileiro”, de vários autores, que revela a dimensão dos custos dessa sujeição. Só o setor público brasileiro gastou, com licenças de software, soluções de cloud, aplicações de segurança e serviços similares oriundos de corporações estrangeiras, cerca de R$ 23 bilhões entre os anos de 2014 e 2025.

E vejam que isso é apenas no setor público. Não estamos considerando a sociedade em geral. A naturalização dessas práticas de submissão tecnológica é tanta que perpassou governos e faz parte do mindset de parcelas significativas do que se denomina Quadros de Funções Públicas de Estado. E o mais grave: uma boa parte das lideranças políticas, partidárias, gestores e agentes públicos nem mesmo percebe a gravidade disso, sendo alguns até capturados por interesses que muitas vezes são mascarados ou não podem sequer ser explicitados ou “confessados”.

Tudo isso que este importante estudo revela nada mais é do que o verdadeiro pano de fundo das medidas tarifárias de Trump contra o Brasil. A preocupação com uma política de regulamentação dessas corporações estrangeiras e dos minerais críticos é a única forma de barrar os avanços desmesurados do que o grego Varoufakis chama de tecnofeudalismo, ou seja, a captura dos Estados nacionais pelas Big Techs, no que hoje ele denomina Cloud Capitalism.

Ou seja, chamando pelo nome, trata-se da negação da tão cara e fundamental soberania digital de um país. Confidenciando como cada vez mais central, a tão necessária sapiência e competência tecnológica só pode vir com a expertise e o domínio em softwares e hardwares, melhor forma de superar a dependência. Mas que, infelizmente, muitas vezes o nosso tão propalado “complexo de vira-lata” não nos permite.

Ao fim e ao cabo, o que está em jogo é se iremos deter capacidade de domínio ou expertise em um conjunto de tecnologias críticas para a independência e a soberania do país, como, por exemplo, tecnologias de alimentos, para transição energética (solar, eólica, nuclear), indústria de defesa etc., todas intensivas em chips.

No caso da soberania digital, trata-se da capacidade do Estado de exercer controle autônomo sobre seus dados, infraestruturas e decisões sobre tecnologia da informação. É como ser dono da sua própria “casa digital”, como refere o próprio estudo ao usar essa metáfora: “Você tem as chaves da residência”, portanto os fundamentos, os alcances e os limites de uso são definidos por você mesmo, ao invés de viver de aluguel sob regras impostas por outrem.

Hoje, os que mediam as interações sociais, políticas e econômicas, monopolizando inclusive a prestação de diversos serviços e políticas públicas e criando dependência de uma aplicação gerida por elas, não é o povo, soberanamente, mas sim algoritmos operados por grandes players globais. Aliás, os usuários locais não têm nenhum controle sobre as ferramentas que usam para se informar, se comunicar ou se organizar diariamente, como já referimos.

É, portanto, a concentração do poder computacional do “Capitalismo das Nuvens”, somada à dependência de hardwares estratégicos e softwares essenciais, que compromete diretamente nossas autonomias decisórias enquanto cidadãos e também das nossas próprias empresas. Pois os datacenters, satélites, cabos submarinos, chips, algoritmos de recomendação, sistemas de inteligência artificial, plataformas de hospedagem, ferramentas de trabalho colaborativo e suítes de escritório estão todos sob controle de empresas privadas sediadas fora do Brasil. Tornando essas estruturas de dependência não apenas técnicas, mas também afetando a forma como pensamos os problemas econômicos, sociais e políticos em suas variadas esferas de alcance e atuação.

De onde, infelizmente, decorre a naturalização ou a aceitação de que questões complexas sejam “resolvidas” por soluções automáticas e algorítmicas oferecidas por essas empresas, sem nenhuma intervenção humana ou controle dos usuários. O que, sem sombra de dúvidas, empobrece e obnubila a esfera pública e desloca decisões importantes para ambientes digitais fechados, com enormes opacidades e sem nenhum controle social. E, por decorrência, essa condição de subordinação impõe obstáculos reais à formulação de políticas públicas e privadas nacionais, e sobretudo à proteção de dados sensíveis e à garantia de direitos fundamentais da sociedade.

Ainda mais numa época em que a digitalização já faz parte do cotidiano das pessoas, seja para agendar uma consulta na Unidade de Pronto Atendimento (UPA), na mobilidade urbana, para matricular um filho na escola, para pedir um benefício social ou para organizar um coletivo pelas redes sociais, algo hoje absolutamente corriqueiro.

No entanto, as ferramentas que mediam essas experiências não pertencem mais ao nosso Estado, nem a nenhum outro país ou região, como foi outrora. Tampouco a qualquer sistema político ou democrático que conheçamos, ou que possamos nominar e reconhecer como tradicionais. E pior: são manipuladas de fora, sem nenhum controle ou acompanhamento nosso. Ou seja, se a qualquer momento um botão ou uma chave forem desligados, estaremos frente a um “apagão digital”. E à mais absoluta subordinação, mesmo com todo o preço que pagamos por essa dependência, como revela o estudo que baseou esta reflexão.

Portanto, para finalizar, urge que, nestes tempos de avanço do denominado “capitalismo das nuvens”, dominemos e tenhamos expertise nos temas estratégicos e críticos do nosso tempo. É a única forma de nos inserirmos de forma altiva no cenário global, para realizarmos grandes negócios de interesse do nosso povo, avançarmos na nossa independência científico-técnica e, fundamentalmente, dominarmos as tecnologias convenientes com soberania geopolítica e de Nação, para consolidarmos um modelo de desenvolvimento sustentável, de modo a fazermos parte do seleto grupo de países e regiões que são ouvidos e respeitados hoje, neste complexo e desigual cenário mundial em que nos encontramos.

*Adão Villaverde é Engenheiro, professor de Gestão do Conhecimento e da Inovação da Escola Politécnica da PUCRS e consultor de semicondutores do Tecnopuc.


Imagem da capa: Gerada por IA ChatGPT


Tags:
soberania digital, Big Techs, tecnofeudalismo, capitalismo das nuvens, Estado brasileiro, dependência tecnológica, Adão Villaverde, políticas públicas, estudo USP UNB, controle de dados

Receba as novidades no seu email

* indica obrigatório

Intuit Mailchimp

Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia..

Gostou do texto? Tem críticas, correções ou complementações a fazer? Quer elogiar?

Deixe aqui o seu comentário.

Os comentários não representam a opinião da RED. A responsabilidade é do comentador.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

plugins premium WordPress

Gostou do Conteúdo?

Considere apoiar o trabalho da RED para que possamos continuar produzindo

Toda ajuda é bem vinda! Faça uma contribuição única ou doe um valor mensalmente

Informação, Análise e Diálogo no Campo Democrático

Faça Parte do Nosso Grupo de Whatsapp

Fique por dentro das notícias e do debate democrático