Por LÉA MARIA AARÃO REIS*
Não é primeira vez que um grande jornal dos Estados Unidos entra em uma séria rota de colisão com governos instalados na Casa Branca. Aconteceu em 1971, com o The Washington Post, o The Post, como é denominado com familiaridade pelos leitores, desafiando o governo Nixon que mentia sobre a guerra do Vietnã. E este ano, acontece novamente com o Wall Street Journal, multado em dez bilhões de dólares pelo governo Trump 02, por ter publicado imagem sugerindo uma relação de amizade pessoal do presidente dos EUA com o célebre pedófilo Jeffrey Epstein.
Cada vez mais, a população daquele país aponta uma semelhança e uma evidência problemática em métodos grosseiros e na visão de mundo autoritária de Trump e de Nixon.
O primeiro caso, o do The Post versus Nixon, hoje é História. E é nele que Steve Spielberg esmiúça em The Post – A Guerra Secreta, filme de 2018*, que se detém na briga feroz da então proprietária e editora do jornal na ocasião, Katharine Graham, o seu editor executivo, Ben Bradlee e Daniel Ellsberg, do Departamento de Defesa dos EUA, o qual entregou o documento ao New York Times e ao The Post. O presidente republicano mentia para o mundo anunciando o sucesso da fase final da guerra do Vietnã, uma guerra que, na verdade, agonizava em favor dos kongs – os vietcongs do norte da península vietnamita.
O episódio ficou conhecido como Pentagon Papers, relatório vazado de quatorze mil páginas, que expôs informações super confidenciais sobre o envolvimento da conspiração dos EUA durante 20 anos na região, quando essa ainda era a Indochina francesa. O Pentagon Papers foi o início da queda e renúncia do governo Nixon poucos anos depois, com o caso Watergate.
Os roteiristas do filme de Spielberg, competente e sustentado pelo sempre bem montado suspense, que é a marca original do cineasta, se inspiraram em três livros de memórias sobre o assunto. Personal History, de Katharine Graham, A Life, de Ben Bradlee, e The Inconvenient Truth, de Daniel Ellsberg.
Um outro ponto forte de The Post é a atuação espetacular de Mary Streep fazendo Katharine Graham, a viúva herdeira do jornal, sem alguns dos maneirismos habituais da atriz. E o de Tom Hanks, se esforçando para ofuscá-la, embora correto, mas sem o conseguir. É de Hanks/Bradlee a frase decisiva: ‘’O controle político se desgovernou’’, quando ele começa a tomar conhecimento da veracidade incontestável do material vazado. Ou: ‘’O único direito inalienável que temos é o de publicar a matéria’’, diante da hesitação do jornal e do New York Times de dar o passo decisivo em direção à verdade.
Bradlee foi responsável também pela investigação que culminou, dois anos, depois no caso Watergate.
O diretor de fotografia desse importante documentário que nos remete aos dias de hoje, com as vendetas do autoritário governo Trump 02, é o polonês Janusz Kamiński, um dos mais assíduos colaboradores do cinema de Spielberg. Oscarizado, ele trabalhou em A Lista de Schindler, O Resgate do Soldado Ryan e Minority Report e é um dos mestres em transformar imagens realistas em drama funcional.
Vale ver (ou rever) esse documentário no qual se confere as mentiras deslavadas que por vezes a mídia não se envergonha de ecoar, premeditadamente. Como, no caso, por exemplo: ‘’Nós progredimos na guerra em todos os sentidos’’, repetindo o que a Casa Branca afirmava, com cinismo. Por outro lado, nos jantares dos bilionários grã-finos, acionistas do jornal, a considerada nata da elite de Washington, o slogan hipócrita: ‘’ Qualidade e lucro, sempre juntos’’.
Assim como ocorre hoje, eram praticados os boicotes mais fúteis da Casa Branca na direção de determinas mídias adversárias, como proibir repórter de um jornal na cobertura do casamento da filha de Nixon.
A reprise de evento republicano similar, em abril deste ano, foi a de proibir as agências de notícias Reuters e Bloomberg News de cobrir coletivas rotineiras programadas pela presidência Trump. Uma semana antes, o governo perdera uma ação judicial movida pela Associated Press, que também se viu excluída do grupo, porém entrou com ação judicial e ganhou.
Em tempo: foi a atuação do The Post, seguindo o New York Times, com Katherine Graham, Ben Bradlee e suas equipes quem projetaram o jornal da capital dos Estados Unidos, até então um jornal local, em jornal nacional como hoje ele é.
Já o incansável Spielberg não pára e traz novidade: seu próximo filme, Disclosure, uma ficção científica, tem estreia prevista para 2026.
Léa Maria Aarão Reis é jornalista.
lustração de capa: Divulgação




