Por MARCOS ALMEIDA PFEIFER*
Desde há muito se escuta, mas neste ano tem sido muito frequente o pessoal ouvindo “Boas Festas” do grande compositor baiano, negro, Assis Valente.
Ela é um clássico das canções natalinas há muitas décadas, minha mãe cantarolava “eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel”. Através de uma melodia doce, bonita, bem elaborada e despretensiosa, o músico baiano propõe fortemente uma crítica social e um componente existencial; no primeiro faz referência à infância pobre do Brasil da época, composta em sua maioria de crianças negras e de origem indígena, cujo marcador de segmentação social permanece até hoje, quase em 2026. A infância pobre, que também traz crianças brancas, segue tendo sua grande maioria composta de crianças negras. E o fato que o compositor trouxe à época e para nossa desolação continua atual, é de que muitas crianças esperaram e o Papai Noel não veio: crianças marcadas, muitas pela violência e abuso no lar, pela vulnerabilidade social, mas a maioria pela desiguldade socioeconômica, em que o brinquedo esperado, por mais simples, não tenha chegado, e isso, vem permeando várias gerações de crianças brasileiras.
A música, como eu gosto de chamar, e a marchinha, como ela foi “classificada”, composta em 1932, tem ainda o componente existencial do adulto que busca, muitas vezes no Natal, o brinquedo perdido na infância, que resulta em si na felicidade, substantivo e sentimento que buscamos pelo meio da obtenção material, como um mero ideal estabelecido pela sociedade de consumo – e em tempos de redes sociais, incluindo este espaço onde escrevo e compartilho estas linhas – se torna uma necessidade de estar no topo em todos os momentos, espaços e segmentos da vida moderna. Num outro, entre os infindáveis sentidos que a felicidade pode representar para nós, ou de algum modo flertar com ela, como navegantes da vida, é o de deixar as coisas se estabelecerem, pelo seu próprio fluxo, e acessando o amor, o perdão e a humildade, possamos receber mais visitas dela em nossa vida. Senti-la (a felicidade).
“Papai Noel, vê se você tem
A felicidade pra você me dar
Eu pensei que todo mundo
Fosse filho de Papai Noel
E assim felicidade
Eu pensei que fosse uma
Brincadeira de papel”.
Porém, como a música em sua letra propõe, é de olharmos diretamente para a dor de nosso país estruturalmente racista, e a para a nossa própria dor (falo por mim buscando romper medos, barreiras, preconceitos, acendendo a luz na sombra).
Muito agradeço aqui aos meus pais, tias, tios, primos, que me proporcionaram Natais memoráveis, de criança que recebeu afeto, conforto e brinquedos. Agradeço aos meus ancestrais e suas variadas origens. Agradeço às pessoas as quais a vida me oportunizou o encontro, para aprender sobre o sofrimento e a dor, que tive de saber longe de casa. E da alegria partilhada na coragem e apoio mútuos, na boa vontade.
Não esqueçamos, o Papai Noel durante muito tempo foi aquele senhor branco de rosto rosado, aparecendo nas histórias, revistas, livros, filmes e peças publicitárias, alimentando o meu imaginário e creio, de muita gente em nosso país, de ser aquele homem branco vindo do frio “encantado” do Hemisfério Norte a realizar sonhos, alimentar a felicidade, ilusória, transitória, para uns mais permanente e, para outros, inexistente dessa época do ano.
Àquelas e àqueles que cultivam o Natal pela óptica do mundo ocidental inseridos no imaginário lúdico e por vezes necessário como um sentimento de esperança de dias melhores, têm ainda na sua mente e construção cultural, o Papai
Noel que é contado nas histórias e mídia de forma hegemônica. Porém, podemos incorporar neste “encanto natalino” os diversos papai noéis negros da América do Norte, a histórias de natalidade e divindade de civilizações africanas, orientais e indígenas da América do Sul, que consagram o amor universal pela diversidade dos povos da Terra, como o aniversariante do Dia, nos ensinou.
E ainda, lembrar, aqui no Brasil, que neste e nos últimos anos, a canção natalina entre as mais repetidas, ouvidas, tocadas e cantadas foi “Boas Festas” de Assis Valente, músico, compositor, negro, baiano, escrita há 93 anos.
Numa percepção que devemos conhecer e integrar histórias de todos os povos, origens, cores, raças e culturas da humanidade, em meio à necessidade que se faz em desconstruir a estrutura racista em nosso país, constatando que uma canção paira e traz alento aos corações no período natalino há quase um século, podemos dizer: o Papai Noel no Brasil é negro.
*Marcos Almeida Pfeifer é jornalista, poeta e Servidor Público.
Foto de capa: IA




