O neoliberalismo titânico e as Olimpíadas multipolares

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Vaso grego antigo

Por WALTER MORALES ARAGÃO*

A espécie hominídea é peculiar. Dotada de linguagem e pensamento simbólico, tem grande capacidade de organização social e uma necessidade de explicações sobre o mundo em que vive. Emprega, para isso, animismos, crenças religiosas, teorias antigas, modernas ou contemporâneas e investigações científicas. Também adora jogos e brincadeiras, de modo similar a outras espécies com sistema nervoso desenvolvido.

Histórica e antropologicamente, todas as sociedades humanas têm seus jogos e esportes, os quais, além da finalidade lúdica, podem ter caráter profilático, de sociabilidade, comercial, político e até mesmo religioso. São exemplos os registros dos jogos sagrados dos astecas; a luta huka-huka, pertencente aos eventos do Kuarup, dos povos do Xingu; os jogos de bola palacianos da China imperial; as corridas a cavalo da Roma Antiga; as caçadas esportivas e por prestígio social, sejam africanas ou europeias, e tantos outros.

Destaco, neste quadro, os jogos olímpicos da Antiguidade grega. E isso pela associação nítida dos mesmos à visão de mundo daquela época e lugar. Eram jogos sagrados, dos quais se diz que chegavam a estabelecer tréguas, para sua realização, nas guerras eventualmente em curso entre as cidades-estado helênicas. O argumento aqui é que, analogamente, os Jogos Olímpicos modernos, nesta edição de 2024 em Paris, exibem traços da visão de mundo ora em curso. Mundo este, aliás, em crises múltiplas e conexas.

Os Jogos Olímpicos da Antiguidade cumpriam as funções típicas do pensamento animista de busca por explicações da realidade, acolhidas no âmbito da religião politeísta dos gregos. A aparente ordem reinante na natureza, entremeada de incidentes catastróficos eventuais, percebida pela compreensão humana daquela civilização agrária e mercantil, em suas escalas de tempo, foi explicada em termos agonísticos. Seria a expressão da vitória de uma ordem viabilizadora da vida – o cosmos – sobre uma era anterior dominada por forças violentas e desordenadas, o caos. Os deuses residentes no monte Olimpo venceram a guerra contra os titãs, as entidades também imortais e poderosas, mas irracionais, que produziam a agitação caótica. E essa vitória deveria ser relembrada e comemorada periodicamente através daqueles jogos sagrados.

Uma dimensão participativa estava também incluída. O cumprimento da obrigação ritual dos jogos era a contribuição humana à manutenção da ordem do mundo. Descumprimentos por certo acarretariam o retorno do caos e de seus prejuízos correlatos. Os vulcões, por exemplo, já conhecidos pelos europeus de então, eram explicados como titãs aprisionados, enterrados pelos deuses, mas que demonstravam esporadicamente sua força destruidora, sempre pronta para retornar.

E os Jogos Olímpicos de 2024? Por certo são uma imagem do mundo atual, em alguma medida. E, também por certo, muito mais profanos do que sagrados, apesar dos valores éticos (e estéticos e político-econômicos) envolvidos.

Celebram, hipoteticamente, uma visão de possível integração da humanidade durante as competições. Algum acordo pelo menos quanto às regras esportivas. O que não impede os boicotes e propagandas geopolíticas, como já visto em edições anteriores e também nesta.

Mas, se algo há, contemporâneo, semelhante ao caos dos antigos titãs é a hegemonia neoliberal que se estende desde o final do século XX a este início do século XXI, nalgumas décadas de “mundo unipolar” sob a égide dos EUA. Vê-se ali as forças desordenadas – como a promessa de Trump por mais uso de combustíveis fósseis em pleno pico do aquecimento global ou o novo (?) encantamento de europeus e estadunidenses pelo crescimento econômico advindo de maiores despesas bélicas. Ou ainda os “avanços” tecnológicos desregulados que ameaçam extinguir, em pouco tempo, a metade das profissões existentes e submetem todos a novas vigilâncias absolutistas.

Será a possibilidade de um mundo multipolar, indicada pelos BRICS, G20 e alianças Sul-Sul, o vislumbre de uma nova ordem mundial que permita a sustentabilidade da vida na Terra? Se tal ocorrer, será uma passagem que merecerá belos jogos que a celebrem pelas eras vindouras!

*Walter Morales Aragão é professor de filosofia e participante do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado de Direito.

Ilustração: Vaso grego antigo.

Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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