Por CAMILO VANNUCHI*
Edição especial e podcast celebram 40 anos do livro Brasil: Nunca Mais e reafirmam compromisso com a verdade.
O livro “Brasil: Nunca Mais” completa 40 anos nesta semana, com o lançamento da 43ª edição e da série em podcast Nunca Mais, uma iniciativa do Grupo Prerrogativas produzida pela NAV Reportagens para contar os bastidores da maior denúncia sobre tortura e outras violações de direitos já feita no país.
A obra apareceu nas livrarias em julho de 1985, sem qualquer divulgação. Por um ano e nove meses, manteve-se na lista dos dez livros mais vendidos do país: um feito para um texto que expunha as vísceras de um regime truculento recém-superado. Fazia apenas quatro meses que um civil ocupava a Presidência da República.
‘Brasil: Nunca Mais” levou quase seis anos para ser produzido. Envolveu um núcleo duro formado por advogados, religiosos, pesquisadores e jornalistas e um conjunto de colaboradores que participaram em fases distintas e de forma clandestina para reunir, reproduzir, analisar e resumir as cerca de 1 milhão de páginas que compunham 707 inquéritos retirados do Superior Tribunal Militar –quase a totalidade dos processos políticos que alcançaram a instância superior entre 1964 e 1979.
A iniciativa foi da advogada Eny Raimundo Moreira, mineira de Juiz de Fora radicada no Rio. O objetivo era não permitir que os militares queimassem os processos, repetindo o que havia ocorrido ao fim do Estado Novo. Em 1979, por ocasião da Lei da Anistia, Eny decidiu criar uma força-tarefa para retirar os processos e xerocá-los. Diante da abertura que se aproximava, muitos agentes da repressão não hesitariam em destruir as evidências dos crimes que haviam praticado. A maioria deles, imprescritível e inafiançável, conforme tratados internacionais de que o Brasil é signatário.
Eny virou e mexeu até conseguir o apoio do cardeal de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, e do reverendo Jaime Wright, representante no Brasil do Conselho Mundial de Igrejas, uma federação de igrejas protestantes com sede em Genebra. O advogado Luiz Eduardo Greenhalgh dividiu com Eny os méritos da viabilização do projeto e montou a primeira equipe, em São Paulo. Em Brasília, quem retirava os processos no STM e os devolvia 24 horas depois, conforme o prazo estabelecido pelo tribunal, era o também advogado Luiz Carlos Sigmaringa Seixas. Ele chegou a abrir uma firma de xerox para dar vazão à papelada sem chamar atenção. E, duas décadas depois, declinaria por duas vezes ao convite para integrar o STF, algo inédito. Dizia não estar à altura da missão.

O time foi coordenado pelo ex-ministro Paulo Vannuchi, ex-preso político, hoje membro do Comitê da ONU sobre Desaparecimentos Forçados. E contou com Leda Corazza, Ana Maria Camargo, Vanya Sant’Anna, Sônia Hipólito, Carlos Lichtsztejn, Cândido Pinto, Alice Yamaguchi e outros. As identidades de alguns serão reveladas somente agora, no podcast, como Avel de Alencar e José do Egito Sombra, responsáveis respectivamente por fotocopiar e microfilmar os processos.
Ao cabo de cinco anos de pesquisa e sistematização, o grupo chegou a números alarmantes, todos pinçados de documentos oficiais. Foram listados nominalmente 444 torturadores, 242 centros de tortura utilizados pela repressão e 125 desaparecidos políticos. Era tanta coisa a ser denunciada que os coordenadores entenderam que não bastava preservar os arquivos, segundo a ideia original: era preciso divulgar o conteúdo.
Em meados de 1984, terminada a análise dos materiais, os jornalistas Frei Betto e Ricardo Kotscho foram chamados para selecionar o que havia de mais absurdo naquelas páginas e produzir uma versão enxuta, em forma de livro. É esse documento-síntese que comemora 40 anos e chega à 43ª edição, todas pela Vozes.
Em 2025, lembrar o projeto Brasil: Nunca Mais é celebrar a coragem e o compromisso com a verdade que moveram seus autores numa época em que a intimidação era a regra. É também uma forma de reafirmar a defesa da soberania nacional, do Estado de Direito e de processos judiciais realmente justos. E repetir, com a mesma convicção, o repúdio a toda tentativa de golpear a democracia.
Publicado originalmente em Folha de S. Paulo.
*Camilo Vannuchi é Jornalista e escritor, é doutor em ciências da comunicação (USP) e autor do podcast Nunca Mais e foi membro da Comissão da Verdade da Prefeitura de São Paulo.
Foto de capa: 5ª Caminhada do Silêncio pelas Vítimas de Violência de Estado, em Sâo Paulo – Marlene Bergamo – 6.abr.25/Folhapress