Por ANA INÉS ALGORTA LATORRE*
Após mais de duas décadas como um parlamentar obscuro, Bolsonaro tornou-se um presidenciável quando, no dia da votação pelo impeachment da Presidenta Dilma Roussef (em si mesmo, um golpe parlamentar), em seu voto, teceu loas ao torturador Brilhante Ustra. O deplorável ato levou à famosa cusparada desferida pelo então deputado Jean Willis, que motivou o recrudescimento das perseguições que este já vinha sofrendo, e seu posterior exílio. Tal cusparada revestiu-se de grande força simbólica, pois foi o primeiro ato de resistência ao que Bolsonaro viria a representar. Porém, a força desse ato não foi suficiente como para evitar, naquela altura, a consolidação do golpe parlamentar e a ascensão de Bolsonaro, dois anos depois, à Presidência da República, após o afastamento da eleição do candidato preferencial, por uma manobra de lawfare.
Com a ascensão de Bolsonaro, retornaram ao cenário político brasileiro várias figuras que haviam permanecido em papéis secundários desde o término da ditadura empresarial-militar em 1985. E o debate público passou a comportar as versões mais absurdas de teses negacionistas em diversos âmbitos, mas, notadamente, com relação à existência da ditadura e seus efeitos nefastos para a condução dos rumos do país, a partir de cruas violações aos direitos humanos. Com o retorno dos elogios à ditadura e dos discursos supostamente saudosistas, recrudesceram os índices de violência – passou-se a ter notícia de mortes em brigas por divergência política, aumento da violência contra a mulher, muitas vezes culminando em feminicídio, violência racista, aumento da letalidade policial (de regra sobre a população jovem e negra). Por outro lado, um grupo considerável da sociedade reclamava o retorno do regime militar como uma forma de garantir a segurança dos ditos “cidadãos de bem”, e chegaram a acampar na frente dos quartéis para pressionar nesse sentido.
É muito provável que tudo isto não tivesse acontecido se o Brasil houvesse tido uma Justiça de Transição após a democratização. No entanto, uma das condições impostas pelos militares na época em que deixaram o poder foi a de serem contemplados pela Lei da Anistia, como se em algum momento tivesse havido uma disputa entre lados iguais. Com a aprovação, pelo Legislativo, da referida condição, tanto os perseguidos políticos pela ditadura quanto os militares que perpetraram as perseguições, torturas e desaparecimentos forçados receberam a anistia. Mais adiante, esta disposição legal foi considerada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal. E, assim, ao contrário de países vizinhos que também passaram por ditaduras militares no período e ao final julgaram os militares pela violência de Estado que cometeram, no Brasil não foi implementada uma Justiça de Transição.
Passou-se, então, da ditadura à democracia, através de uma abertura “lenta e gradual”, quase uma concessão dos militares, sem que efetivamente tenha havido um processo oficial de responsabilização daqueles que, como representantes de um poder autoritário, cometeram perseguições, ameaças, torturas, desaparecimentos forçados, assassinatos, ocultação de cadáveres e de documentos, entre outros crimes de Estado. Além disso, não foram instituídos no Brasil sítios de memória onde a história desses acontecimentos fosse lembrada. Colocar vítimas e perpetradores na mesma posição acentuou a dissonância cognitiva da população, abriu espaço para o negacionismo do processo autoritário e levou a um silenciamento da sociedade sobre o que acontecera nesse período. O “virar a página” teve como efeito uma espécie de amnésia. Os generais da ditadura brasileira e outros de seus grandes ideólogos morreram idosos, sem responder a qualquer processo pelos atos cometidos, e muitas vezes até gozando de um certo prestígio social. As famílias deles seguem recebendo pensões generosas da União.
Esse estado de coisas foi o que permitiu que Bolsonaro erguesse sua campanha presidencial sobre a imagem do torturador Brilhante Ustra, e capitalizasse as insatisfações de parte do povo na reivindicação de um novo golpe militar. Com multidões de manifestantes (a maioria idosos, que viram nas reivindicações de intervenção militar uma motivação para se integrarem à vida pública) acampados na frente dos quartéis e lançando suspeitas infundadas sobre o sistema eleitoral, Bolsonaro e seus cúmplices passaram a dar andamento à trama golpista. Tentaram de tudo: processos judiciais contra as urnas eletrônicas e as mais estapafúrdias alegações de fraude eleitoral, bloqueios e fiscalizações nas estradas para que os eleitores do adversário não chegassem a seu destino no dia da eleição, contestação do resultado, plano de golpe antes da diplomação do adversário eleito, e, por fim, já após a posse do novo Presidente da República, a tentativa de golpe do oito de janeiro, que incluía o plano de assassinato deste último, de seu vice e de um Ministro do Supremo Tribunal Federal.
A firmeza do Supremo Tribunal Federal foi o que permitiu que o processo de eleição e sucessão presidencial seguissse o rito democrático, e terminou por repelir o golpe do 08/01/2023. Naquele momento, um grande número de participantes da intentona foram presos, e muitos vieram a ser condenados. Na semana que passou, finalmente, tivemos o início do julgamento de Bolsonaro e seus cúmplices mais poderosos, os generais envolvidos na tentativa de golpe, todos sujeitos a condenações que poderão ultrapassar os trinta anos de prisão.
O Supremo Tribunal Federal, em seu papel de último bastião de defesa da Constituição e da democracia, vem agindo adequadamente, suportando as pressões da extrema-direita brasileira e até mesmo de forças imperialistas estrangeiras sem perder sua independência. O fato de que os atos atentatórios contra o regime democrático não fiquem impunes é carregado de simbolismo em uma nação que em tempos não tão distantes deixou de julgar os responsáveis pelos crimes da ditadura. O devido processo legal é o instrumento de que a sociedade dispõe para chegar a aplicar as sanções cabíveis pela tentativa de golpe.
Poder-se-ia afirmar que está ocorrendo, ainda que diferida, em momento muito posterior ao que teria correspondido, finalmente, uma justiça de transição com relação à ditadura. São outros crimes sob julgamento, e os sujeitos são outros. Porém, estes são os herdeiros da escolha política dos ditadores, os que se locupletaram eleitoralmente evocando a memória desses, os que pretenderam reprisar nos tempos atuais e em proveito próprio esse passado vergonhoso.
Se todos os dias as brasileiras e brasileiros podemos respiramos aliviadas por não estarmos sob uma ditadura nos dias de hoje, precisamos compreender a importância que assume o julgamento dos responsáveis pela trama golpista perante o Supremo Tribunal Federal.
j*Ana Inés Algorta Latorre é Juíza federal, membro da AJD, vice presidente do Copaju (Comitê Panamericano de Juízas e Juízes para os direitos sociais e a Doutrina Franciscana) e Diretora Executiva do IFBC (Instituto Fray Bartolomé de las Casas).
Foto de capa: Valter Campanato/Agência Brasil





Respostas de 3
Um texto necessário e corajoso. A autora expõe, com rigor e clareza, como a falta de uma verdadeira Justiça de Transição abriu espaço para que o negacionismo, o autoritarismo e a impunidade voltassem a assombrar o Brasil. Seu resgate histórico mostra que nada do que vivemos com Bolsonaro surgiu do nada: foi consequência direta de uma transição tutelada pelos militares e de uma elite cúmplice do esquecimento.
Que esse julgamento dos generais e cúmplices do golpe de 08 de janeiro seja, finalmente, o momento em que a justiça faça justiça — não apenas contra os executores, mas também contra os intelectuais e financiadores da trama golpista. A democracia só respira plenamente quando a impunidade não mais protege os que atentam contra ela.
Muito bom artigo. Argumentos e histórico. Cumprimentos à autora Ana Inês.
Espetacular essa abordagem da juíza Latorre. O Brasil precisa compreender a importância desse julgamento até porque os crimes da ditadura fora pra vala do esquecimento. Ditadura nunca mais!!!!