O Império da Proibição: A Gênese Política da Guerra às Drogas

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The War on Drugs - Imagem gerada por IA ChatGPT

(Série “A Guerra às Drogas: o preço da proibição” — Artigo 2 de 5)

Da REDAÇÃO

A história da proibição das drogas é, em essência, a história da forma como o poder se estrutura em torno do controle dos corpos, dos comportamentos e dos mercados.
Embora a retórica oficial fale em “proteger a saúde” e “combater o tráfico”, o que se consolidou no mundo pós-Segunda Guerra foi um sistema global de controle político e econômico, liderado pelos Estados Unidos, institucionalizado pela ONU e aplicado de maneira desigual, principalmente sobre os países do Sul global.

As origens: moralismo, colonialismo e controle

As primeiras leis antidrogas modernas surgiram no fim do século XIX, nos EUA e na Europa, carregadas de preconceitos raciais e morais.
O ópio foi associado aos imigrantes chineses; a cocaína, aos negros do sul dos EUA; e a maconha, aos mexicanos e caribenhos. A proibição foi, desde o início, uma política de controle de minorias e comportamentos desviantes.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o cenário internacional mudou: os EUA emergiram como potência hegemônica e passaram a exportar seus valores e modelos normativos.
A ONU, recém-criada, tornou-se o canal institucional dessa exportação. É nesse contexto que surgem os três grandes tratados internacionais que ainda regem a política global de drogas:

  • 1961 — Convenção Única sobre Entorpecentes: consolida e unifica tratados anteriores, define listas (“schedules”) de substâncias e obriga os países a criminalizar produção e comércio fora de fins médicos e científicos.
  • 1971 — Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas: estende o controle a drogas sintéticas, como anfetaminas e alucinógenos.
  • 1988 — Convenção contra o Tráfico Ilícito: endurece sanções penais, cria instrumentos de extradição e de repressão financeira, institucionalizando o combate global ao tráfico.

Essas convenções moldaram um regime internacional proibicionista, centralizado na ONU e vigiado pelo International Narcotics Control Board (INCB), que até hoje monitora a conformidade dos países.

A “War on Drugs” e o poder dos Estados Unidos

Em 1971, o presidente Richard Nixon declarou oficialmente a “guerra às drogas”. O ato inaugurou uma nova era: o problema passou a ser tratado não como questão de saúde pública, mas como ameaça à segurança nacional.

O ex-assessor presidencial John Ehrlichman, décadas depois, admitiu que a política antidrogas servia a objetivos políticos: “Queríamos associar os negros e os hippies às drogas. E então poderíamos criminalizá-los.”
Mesmo com controvérsias sobre a literalidade dessa frase, o contexto é inegável: a “War on Drugs” consolidou um instrumento de controle social interno.

Sob Ronald Reagan (anos 1980), o discurso moralista e punitivo atingiu o auge. A aprovação do Anti-Drug Abuse Act (1986) instituiu penas mínimas obrigatórias e a famosa razão 100:1 — que punia com a mesma pena (5 anos) quem fosse pego com 5 gramas de crack ou 500 gramas de cocaína em pó.
O resultado foi devastador: explosão do encarceramento de jovens negros e latinos, com impacto duradouro até hoje.

A exportação do modelo repressivo

Com o avanço da Guerra Fria, os EUA transformaram a política antidrogas em ferramenta de influência geopolítica.
A América Latina virou o principal campo de batalha — e também de experimentação.

Nos anos 1980 e 1990, países como Colômbia, Bolívia, Peru e México foram submetidos a planos de “cooperação militar e policial” para erradicação de cultivos e combate ao tráfico.
O mais conhecido deles, o Plan Colombia (1999–2000), canalizou bilhões de dólares em ajuda norte-americana para operações de repressão — com uso intensivo de herbicidas, extermínio de comunidades rurais e fortalecimento de forças armadas locais.
O saldo foi paradoxal: a produção de cocaína não caiu significativamente, mas o poder militar e político das elites repressivas aumentou.

No Brasil, o modelo foi importado quase sem mediações.
A partir dos anos 1990, consolidou-se um paradigma militarizado da segurança pública, em que a “guerra às drogas” justificou execuções sumárias, invasões de favelas e encarceramento em massa.
As periferias urbanas tornaram-se, literalmente, campos de batalha internos.

Um sistema que se alimenta do próprio fracasso

O proibicionismo é uma máquina que prospera na própria ineficácia.
Cada aumento da repressão leva à elevação dos preços, o que aumenta o lucro dos traficantes e incentiva novas rotas e produtos.
Os governos, em resposta, intensificam o combate — e o ciclo se retroalimenta.

Os beneficiários são múltiplos:

  • O complexo da segurança pública e militar, que recebe orçamentos crescentes.
  • O crime organizado, que lucra com a escassez.
  • O sistema financeiro, que lava bilhões de dólares todos os anos.
  • E setores políticos conservadores, que exploram o medo para obter votos.

O custo humano e social, porém, é incalculável.
A “guerra” nunca foi contra as drogas — foi contra pessoas específicas, em territórios específicos, com cor e classe social bem definidas.

As fissuras do consenso

Nos anos 2000, começaram a surgir fendas no edifício proibicionista.
Relatórios da própria ONU reconheceram que as metas da Convenção de 1988 — “eliminar ou reduzir significativamente” a oferta até 2008 — não foram cumpridas.
Ao mesmo tempo, experiências alternativas (Portugal, Uruguai, Canadá, alguns estados dos EUA) mostraram que a regulação pode reduzir danos, violência e gastos públicos, sem provocar explosões de consumo.

Essas experiências inspiraram o movimento atual de revisão global da política de drogas, que começa a tratar o tema como questão de saúde pública e de direitos humanos, e não mais como guerra.

A política que virou dogma

A gênese da guerra às drogas revela que seu objetivo original não era proteger a saúde pública, mas disciplinar sociedades e consolidar hegemonias.
O proibicionismo tornou-se um dogma político, sustentado por interesses econômicos e pelo medo.

Hoje, diante de um século de fracassos e de milhões de vítimas, o desafio não é apenas reformar leis, mas reconhecer a natureza política dessa guerra — e desarmá-la.


No próximo artigo:

“Cárcere e punição: os mínimos obrigatórios e o encarceramento em massa”
Como a política penal antidrogas transformou a justiça criminal em um instrumento de exclusão social e racial — e por que os EUA e o Brasil se tornaram campeões mundiais de prisões.


Ilustração da capa: The War on Drugs – Guerra às Drogas – Ilustração gerada por IA ChatGPT


Leia também os artigos anteriores da série:

Série Especial: A Guerra às Drogas — o Preço da Proibição

A guerra às Drogas e o Preço da Proibição — Artigo 1

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