Por SOLON SALDANHA*
Estive pensando: qual seria a característica universal e mais marcante do homem dito contemporâneo? E me deparei com uma triste realidade que, juro a vocês, não é decorrente de qualquer pessimismo, mas da simples observação. Aquilo que mais nos aproxima e iguala hoje em dia é a nossa enorme capacidade de produzir lixo. Ou, como muitos chamam por puro eufemismo, resíduos. Pouco importa onde se esteja no planeta, nossa raça, religião, gênero ou ideologia, todos geramos uma assombrosa quantidade dele, todos os dias. E isso só piora, porque o volume não para de crescer e a destinação é cada vez mais difícil.
Caso não se consiga mudar padrões de produção, consumo e descarte, a geração de resíduos sólidos – considerando-se apenas aqueles de ordem domiciliar – vai crescer 80% no mundo todo, até o ano de 2050. Isso significa que, em 25 anos, passaremos de 2,1 para 3,8 bilhões de toneladas ao ano. O que pode ser ainda pior, devido ao aumento da população e a melhora do poder aquisitivo. Estes dados constam no relatório Global Waste Management Outlook 2024, apresentado durante a realização da Assembleia das Nações Unidas para o Ambiente, em Nairóbi, a capital queniana.
Terrível é que isso tudo causa impactos negativos não apenas no solo, nos rios e no mar – no ar também, quando incinerado –, com a poluição crescente e descontrolada afetando sobremaneira a saúde humana. Atinge também o clima, uma vez que amplia a emissão de gases de efeito estufa, como o metano que escapa nos lixões, repercutindo outra vez na nossa qualidade de vida. Ou sobrevivência. No caso do Brasil, em 2022 foram gerados perto de 80 milhões de toneladas de resíduos domésticos sólidos, mas a coleta acolheu apenas 93% disso. E pelo menos 40% do total coletado segue para destinos não apropriados. Na América do Sul este índice é de 34%, mostrando o quanto estamos atrasados inclusive em relação aos nossos vizinhos.
Porto Alegre, por exemplo, produz cerca de 1,1 mil toneladas de lixo por dia, em condições ditas “normais”, sem considerar-se períodos especiais. Desse total, apenas 50 toneladas são encaminhadas para reciclagem, com pelo menos outras 250 – que poderiam também ser aproveitadas para este fim – sendo descartadas de forma inadequada. Por aqui, a gestão deste problema tem sido desastrosa. Isso pode ser visto em situações e momentos como aquele da escolha da empresa Plural para assumir a coleta automatizada na cidade. O seu dono estava envolvido em fraude em licitações nos Estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais, o que deveria servir de alerta, mas isso sequer foi levado em conta. O sistema de coleta por ela adotado, com a colocação de contêineres nas ruas, não resolveu nada. Ao contrário, foi decisivo na contribuição de mais lixo em calçadas no entorno. Com o equipamento em sua maioria quebrado e degradado, passaram a culpar os catadores pelo problema. Saída mais fácil do que admitir a coleta seguidamente irregular nos seus prazos e os transtornos causados pelos caminhões ao trânsito, por recolhimento em momentos incômodos.
Agora novos contêineres estão sendo colocados no Centro Histórico e nos bairros Cidade Baixa, Praia de Belas e Menino Deus. São 450 no total, pintados de verde e exclusivos para o lixo reciclável, automatizando também a coleta deste material. Essas novas estruturas estão ao lado dos atuais recipientes para orgânicos. Isso deve incentivar o descarte correto, em tese. E, como grande “avanço”, foi informado que nos novos existe um sistema que impossibilita a entrada de pessoas na busca do que possam vender. Mas, já aconteceram casos de gente presa nos acessos, na tentativa de recolher latinhas, vidros e plásticos. A degradação humana, com desvalidos que nos são invisíveis no dia-a-dia tendo que sobreviver com as moedas que ganham vendendo aquilo que se descarta. Eles próprios, descartados pelo sociedade.
Ao invés de um acordo com as associações de catadores – existem pelo menos quatro delas na capital gaúcha –, o que a empresa que venceu a “licitação” talvez esteja tentando é trazer para si também a vantagem desta comercialização, não se contentando em ser bem paga pelo serviço de recolhimento. Ou seja, até mesmo um tênue retorno social está sendo inviabilizado. E, não podemos esquecer, todos nós pagamos uma taxa anual para custear o que ela faz, junto com o IPTU.
Em meados do ano passado, o Governo Federal anunciou uma série de ações que implicam em investimentos e programas conectados com o universo de catadoras e catadores. O objetivo era fortalecer e estruturar suas associações e incentivar a criação de cooperativas. O Programa Cataforte teve aporte de R$ 103,6 milhões e incluiu também um grande esforço no sentido de implementar coleta seletiva acompanhada por impactos positivos socioeconômicos.
Nessas horas não consigo deixar de ver o prédio onde moro como um bom e mau exemplo, ao mesmo tempo. Temos espaço apropriado e uma série de recipientes para lixo orgânico, recolhimento de óleo, de papelão, pilhas e vidros em separado, além de pessoal treinado para atender os moradores. No entanto, quase todos os dias encontro coisas como garrafas PET e caixas de isopor junto ao resto de alimentos, entre outros absurdos. Isso fica entalado na minha garganta, do mesmo modo que aquele cidadão – a foto ilustra esta publicação – em novo e “revolucionário” contêiner na nossa Zona Central.
*Solon Saldanha é jornalista e blogueiro.
Texto publicado originalmente no Blog Virtualidades.
Foto de capa: Reprodução do Instagram meninodeuspoars