O grande espetáculo da auto-imunidade: veja como votou seu parlamentar

Por CASTIGAT RIDENS*

Se ontem tivéssemos assistido a uma peça de teatro, teríamos uma cena clássica de autor que escreve, se dirige e atua ao mesmo tempo. A PEC da Imunidade (ou Blindagem, ou Impunidade — nome fantasia à parte) foi aprovada na Câmara dos Deputados com um enredo tão audacioso que beira o surreal: criar uma classe especial de cidadãos — parlamentares — que ficariam, em muitos casos, acima da lei comum.

E, em nome da pluralidade de absurdos e sob a controversa alegação de que é preciso manter “as pontes de negociação na Câmara”, até mesmo 12 deputados do PT votaram a favor da criação dessa casta blindada. Pelo visto, quando se trata de autoproteção, o arco de alianças vai do Centrão a nomes da centro-esquerda sem o menor constrangimento.

Contradições dignas de prêmio

Vamos destacar alguns dos momentos onde a coerência foi pedir arrego:

1. Voto secreto: tiraram, voltaram, adulteraram
   — Na madrugada, foi aprovado o texto-base em segundo turno da PEC sem previsão de voto secreto.
   — Logo em seguida, reapareceu um destaque (emenda aglutinativa) que restabeleceu a votação secreta para autorizar processos criminais contra deputados e senadores e prisões em flagrante por crime inafiançável.
   — Ou seja: “não quero voto secreto”, votaram “sim voto secreto”, depois disseram que a votação anterior não refletiu a vontade da maioria porque alguns estavam “dormindo”. Teatro puro.
2. Regimento, Constituição, regras desaparecidas
   — O artigo 60 da Constituição Federal estabelece que “a matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa”.
   — Pois bem: o dispositivo do voto secreto havia sido rejeitado (ou derrotado) numa votação — não alcançou quórum para manter o voto secreto.
   — Mesmo assim, reapareceu por meio de emenda aglutinativa para “restabelecer” exatamente o que havia sido rejeitado. Ou seja: violação clara do próprio regimento e da Constituição que proíbe essa reanálise ou reapresentação em mesma sessão legislativa de elemento rejeitado.
3. Objetivo cristalino: autoproteção
   — O texto da PEC exige agora autorização prévia da Câmara ou do Senado para que o STF processe deputados ou senadores criminalmente.
   — Crimes gravíssimos, como homicídio, estupro, tráfico de drogas — em flagrante crime inafiançável — dependendo de autorização da Casa respectiva, possivelmente com voto secreto.
   — Também amplia foro privilegiado para presidentes de partidos políticos. Um gesto singelo de apreço à velha política.
4. A categoria de cidadãos especiais
   — Se já existia imunidade, prerrogativas e foro privilegiado em certas funções, esta PEC avança para garantir que parlamentares, e até presidentes de partido, em muitos casos, não respondam por crimes comuns ou sejam processados sem aval político. Isso significa criar um tratamento jurídico diferenciado — uma “casta de vantagem” ou uma “zona de não-penalização” para quem detém poder.
   — Imagine: o cidadão comum, se cometer crime, é investigado, processado, julgado em instância comum. O deputado ou senadora corrupta, se quiser, aguarda autorização da sua Casa — talvez voto secreto — para prosseguir. A lógica é: poder com responsabilidade apenas até certo ponto; depois, blindagem.

Possíveis consequências perversas

Conforme disse algum parlamentar da oposição, não é teoricamente impossível que essa PEC incentive que pessoas ligadas ao crime organizado disputem cadeiras no Legislativo para garantir sua própria imunidade. Se o processo criminal depende de autorização do próprio Congresso, com voto secreto, onde está o freio para o abuso?

Além disso:

• Poderá impedir que parlamentares sejam responsabilizados por corrupção, desvio de verbas — inclusive do orçamento secreto — abuso de mandatos, ou por crimes hediondos.
• Incentiva sensação de impunidade generalizada, descrédito no sistema de Justiça, enfraquecimento das instituições — até do Judiciário e do Ministério Público.
• Desestimula o voto consciente: se cidadão/sabe que o representante pode legislar em causa própria para não responder criminalmente, por que ainda votar acreditando em mudança?

Conclusão amarga

A aprovação dessa PEC não é um simples erro político: é um escárnio institucional com a democracia. É uma manobra de self-service legal, onde aqueles que deveriam estar submetidos à lei criam exceções para si.

Se quisermos seguir sendo uma república minimamente decente, o Senado, o STF, a sociedade civil e os movimentos de cidadania terão de reagir. Protestar, denunciar, judicializar. Se não, vamos amanhecer num país onde “sou corrupto, mas sou protegido”.

Veja o voto de cada deputado

*‘Castigat Ridens’ é um pseudônimo criado a partir da expressão latina ‘Castigat ridendo mores’, que significa ‘corrige os costumes rindo’ ou ‘critica a sociedade pelo riso’, muito usada no contexto da comédia como instrumento de crítica social.”

Foto da capa: Hugo Motta (Repub-PB): deputados e senadores querem “blindagem” contra investigações do STF. Foto: Lula Marques/Agência Brasil

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PEC da Impunidade, voto secreto, autoproteção parlamentar, blindagem, Constituição, regimento interno, corrupção, crime organizado, democracia brasileira, STF, Câmara dos Deputados