O duplo padrão do Estadão: quando a coerência vira artigo de luxo

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Estadão incoerente

Por CASTIGAT RIDENS*

O Estado de S. Paulo gosta de vestir a toga da imparcialidade — aquela peça de museu que exibe com orgulho sempre que precisa ensinar lições de virtude republicana ao país. Mas basta comparar seus editoriais sobre Lula e Bolsonaro para perceber que, por baixo do traje cerimonioso, há um figurino bastante flexível. Flexível demais.

Voltemos a 31 de janeiro de 2019. Na época, Lula cumpria pena em Curitiba e pediu autorização para se despedir do irmão falecido. Um gesto de humanidade elementar, desses que o sistema carcerário brasileiro concede com frequência — ao menos quando se trata de pessoas que não têm ex-presidente do PT no RG. O pedido foi negado pela Justiça. E o Estadão? Não apenas aplaudiu a decisão como transformou o episódio em editorial pedagógico sobre a santidade da igualdade perante a lei. Fez questão de insinuar que qualquer tentativa de garantir um mínimo de dignidade ao petista seria uma afronta, um privilégio indevido, quase uma heresia cívica.

Era preciso, nas palavras do jornal, habituar-se à ideia de que o ex-presidente deveria “cumprir sua pena como todos os outros presos”. Nada de exceções, nada de humanidade, nada de flexibilizações. E mais: qualquer concessão seria, segundo o texto, “uma afronta ao princípio da igualdade”.

Ali, o jornal erguia o estandarte da rigidez moral: cela comum, sem choro nem vela.

Corta para 18 de novembro de 2025. Bolsonaro, condenado por tentativa de golpe de Estado, é preso. O que faz o mesmo Estadão? Troca o sermão sobre igualdade por uma ode à excepcionalidade. De repente, o jornal descobre que presos não são exatamente iguais e que um deles — justamente aquele que tentou subverter a própria democracia — deveria receber um “tratamento especial”, preferencialmente em ambiente domiciliar, protegido do convívio com a massa carcerária que, até ontem, era apresentada como parâmetro universal.

Como ex-presidente, Bolsonaro não pode ser tratado como um preso qualquer. O ideal, em razão de sua saúde precária, é que fosse condenado a cumprir pena em prisão domiciliar“, diz o texto de abertura do editorial.

Não se trata de discutir se qualquer preso — famoso ou anônimo — tem direito a condições dignas e atendimento médico. Isso é básico. O ponto é outro: a seletividade gritante. A régua moral não apenas muda de tamanho; muda de material, de uso e de destinatário.

Claro que todo preso — ex-presidente ou não — tem garantias legais razoáveis. Não se trata de defesa automática de “cadeia para todos” nem de negar cuidado médico ou humanização no cárcere. O ponto é: onde estava o princípio da aplicação uniforme da lei naquela vez? Quando a lei era demandada com rigidez intransigente, ela era uniforme. Hoje, a mesma lei se abate com luvas de pelica.

A cena beira o cômico. O jornal que, seis anos antes, erguera barricadas editoriais contra qualquer gesto minimamente humanitário em relação a Lula agora estende tapete acolchoado para Bolsonaro. Um ex-presidente, dizem, não deveria ser tratado como preso comum. Não deixa de ser curioso: o título honorífico só parece valer quando o ocupante do cargo compartilha a cartilha ideológica da casa.

A incoerência é tão explícita que nem exige análise sofisticada. Quando o réu é Lula, a lei é divina e imutável. Quando o réu é Bolsonaro, a lei transforma-se num origami maleável, dobrável conforme o vento político. Igualdade, para o Estadão, não é princípio — é recurso retórico, usado em dias de conveniência e esquecido na primeira contrariedade.

Mas seria injusto reduzir o episódio à mera contradição. O que se escancara é uma prática antiga: um setor da imprensa que reivindica neutralidade enquanto opera seletividade. Uma mídia que cobra coerência institucional do país, mas dispensa a própria. Uma voz que defende austeridade penal para uns e clemência redentora para outros — sempre seguindo a bússola de afinidades políticas, jamais de princípios.

E cidadãos com consciência democrática percebem. Percebem porque estão cansados de editoriais que mudam de tom conforme o figurino do réu. Percebem porque sabem que democracia exige regras estáveis, não editoriais moldáveis. Percebem porque, diferentemente do jornal, não tratam valores públicos como adereços removíveis.

Se o Estadão realmente acredita no que diz acreditar, deveria ao menos manter a mesma régua. Seria o mínimo. Mas como isso parece exigir mais do que a casa está disposta a entregar, fica a sugestão sincera: talvez fosse o caso de avisar no alto da página que os princípios editoriais estão sujeitos a variações climáticas. Não impediria a incoerência — mas ao menos reduziria o susto.

Leia aqui a íntegra do editorial do Estadão de 31 de janeiro de 2019

Leia aqui a íntegra do editorial do Estadão de 18 de novembro de 2025

*Castigat Ridens é um pseudônimo criado a partir da expressão ‘Castigat ridendo mores’, que significa “corrige os costumes rindo”, expressão clássica da comédia como forma de crítica social. O pseudônimo segue essa tradição.


Ilustração da capa: Reprodução de editoriais do Estadão – Fonte: Redes Sociais

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